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Paisagens montana, 1856

O Poeta e o pintor: Sena e Turner. Questões de ekphrasis. (Parte 1)

Encerrando o mês em que os museus são mundialmente celebrados, aqui trazemos uma revisitação ao particular "museu" de Jorge de Sena — as suas Metamorfoses — em especial ao seu "Turner". Guiados pela mão ensaística de Barbara Aniello, cuja erudição nos aponta fascinantes caminhos, certamente passaremos a ler com maior proveito os 41 versos do tão pictórico poema seniano dedicado a esse gênio da pintura.

 

Turner

(1) No silêncio da névoa em que os ruídos passam
(2) como num prisma a luz se decompõe,
(3) é de oiro a fímbria dos reflexos brandos
(4) na vibração suspensa de águas pardacentas
(5) que vultos incendeiam de adejantes velas
(6) e galhardetes que como elas pandos
(7) o são de um vento apenas prenunciado
(8) na esfriada profusão de um céu marinho
(9) sobre cidades pétreas dissolvidas
(10) em escadarias a que atracam nuvens,
(11) o tamisado Sol, fogueiras, luz da Lua.

(12) Ondeantes vultos (que sinuosos, frios,
(13) entre si deixam quais rasgões da névoa
(14) a própria névoa que os compõe rasgada)
(15) janelas são ante zimbórios, prados,
(16) ante arvoredos outonais tranquilos,
(17) cuja verdura é de oiro requeimada
(18) na fumarenta limpidez crepuscular
(19) de tardes ou manhãs que se confundem
(20) na mesma humanidade sem contornos,
(21) apenas força e sombra como barcos
(22) a deslizar sem mastros e sem velas
(23) que ao alto pandas transparentes pendem
(24) na alaranjada e glauca ressonância
(25) do vaporoso estuário onde as marés
(26) se adensam de lembradas tempestades
(27) do largo mar em vagas de grisalha espuma,
(28) enquanto rio abaixo vão fornalhas
(29) hiantes e encardidas, pontes, e um coxim
(30) de que Veneza e as galés de Ulisses
(31) são horizonte e cálida elegância.

(32) Que silêncio de luz vista de frente,
(33) olhada contra as cores aquém das formas,
(34) aquém das vibrações que se transmutam
(35) em superfícies e em volumes tensos!
(36) Como se espalha em nódoa sobre a tela
(37) uma cegueira penetrante e ávida
(38) que a tudo vai roendo em marulhar de mundos!
(39) E, para além deste sereno estrépito
(40) que em vórtices congela a tenuidade,
(41) não há mais nada. Nem pintura resta.

Jorge de Sena, Lisboa, 19-20 de Junho de 1959 [1]
 

Ut pictura poesis? O intercâmbio entre as artes irmãs e a tácita analogia entre poesia e pintura, declarada por Horácio na sua Ars Poetica, abre, no caso da arte contemporânea, algumas interrogações. A poesia é equivalente à pintura? A pintura é semelhante à poesia? Segundo a interpretação de Horácio por Lessing, as duas artes não são confrontáveis, mas sim incomparáveis. Pela sua natureza sincrónica, o pictórico pertence ao espaço, tal como o poético, diacrónico, pertence ao tempo.

A discussão sobre a pretensa igualdade ou desigualdade entre pintura e poesia desencadeia no século XVI uma interminável discussão acerca da questão do paragone tra le arti. Entre uma “pintura como poesia muda”, uma “poesia como pintura cega” e uma “música como figuração das coisas invisíveis” abre-se uma longa competição para o primado entre as artes. Mas como a diferença prevê e remete à analogia, começa aos poucos a traçar-se, além de uma autonomia, também uma circularidade entre as artes irmãs, que desenvolvem um diálogo recíproco numa dialéctica da passagem. Leonardo, pintor, poeta e músico, apresenta-se como defensor desta especificidade das artes, mas promove também o intercâmbio, à luz da descoberta da arte como meio de investigação cientifica, instrumento da matemática, da geometria, da física e da filosofia. Se a competição prevalece na teoria e estética da arte entre os séculos XVI e XVIII, o intercâmbio e o sonho-utopia de uma Obra de Arte Total anulam, na fusão ideal de todas as artes, o tema da luta pelo primado.

A velha divisão entre artes do espaço e artes do tempo é hoje superada. O século XX impôs a necessidade de uma nova reflexão sobre o tema do Paragone tra le arti. O advento da quarta dimensão e do espaço-tempo no Cubismo e Futurismo, para não falar no Cinema e nas Artes Performativas, cancelaram os saberes adquiridos sobre a questão.

Do ponto de vista da psicologia da percepção, a pintura e as artes figurativas não são mais consideráveis “artes do espaço”. De facto, o tempo utilizado pelo fruidor na contemplação dos objectos estéticos e a consideração cronológica dos factos históricos, bem como das correntes artísticas e das figuras dos criadores que as precedem e as seguem é algo que pertence à dimensão temporal da obra de arte. Ao mesmo tempo, a música e a poesia, desde sempre consideradas artes temporais, ganharam uma dimensão e extensão visual, graças às novas tecnologias, à música electrónica, à dança interactiva. Foram sobretudo as Vanguardas do início do século XX a indicar o caminho para uma ruptura da divisão tradicional entre as artes e para uma viragem dos pontos de vista do artista, da obra e do espectador:

Lo spazio non esiste più […] Le sedici persone che avete intorno a voi in un tram che corre sono una, dieci, quattro, tre: stanno ferme e si muovono; vanno e vengono, rimbalzano sulla strada, divorate da una zona di sole, indi tornano a sedersi, simboli persistenti della vibrazione universale. […] La costruzione dei quadri è stupidamente tradizionale. I pittori ci hanno sempre mostrato cose e persone poste davanti a noi. Noi porremo lo spettatore al centro del quadro.[2]

Se o Renascimento abre um abismo entre o ver e o ler/ouvir, o século XX colmata esta fissura com a compenetração entre os diferentes sentidos, até à reunião parcial e esporádica de todas as artes no ideal sinestésico.

Abrem-se ainda outras fecundas reflexões sobre a questão da ekphrasis.

O vocábulo grego, composto por ek (da) e phrazein (falar), indica literalmente um “falar de”, “falar sobre”, processos típicos da descrição, tal como lembra Dionísio de Halicarnasso na sua Ars Retórica. A fortuna do termo tem sido acompanhada por Carlos Ceia no seu E-Dicionário de termos literários:

(O termo ekphrasis) tornou-se um exercício escolar para aprender a fazer descrições de pessoas ou lugares. O locus classicus na literatura épica é a descrição do escudo de Aquiles feita por Homero (Ilíada, 18, 483-608). Virgílio seguiu o mesmo modelo para a descrição do escudo de Eneias na Eneida (8, 626-731). Um outro tipo de ekphrasis concentra-se em descrições epigramáticas de pinturas e estátuas, como La galeria de Marino e muita poesia emblemática. O termo alemão Bildgedicht corresponde praticamente ao conceito de ekphrasis, neste sentido de descrição de uma obra de arte (pintura ou escultura). Os poetas românticos recorreram amiúde a este artifício, tendo ficado célebre, por exemplo, a "Ode on a Grecian Urn", de Keats. Naturalmente, o recurso às descrições particulares está presente em muita poesia contemporânea, sobretudo a partir do momento em que a poesia se tornou cada vez mais próxima da prosa narrativa. Na literatura portuguesa, o livro Metamorfoses (1963), de Jorge de Sena introduz um tipo de poesia descritiva que tem como objecto de contemplação toda a obra de arte visual. Este tipo de descrição plástica, não limita o conceito de ekphrasis a uma simples e passiva exposição dos dados observados, mas conduz-nos a um exercício reconstrutivo do que foi examinado, querendo interferir subjectivamente nas qualidades do objecto. O poeta ecfrástico raramente se contenta com uma descrição objectiva do que observa, quando tem a possibilidade de comunicar livremente o seu próprio gosto. A Secreta Vida das Imagens (1991), de Al Berto, ou Depois de Ver (1995), de Pedro Tamen, podem ilustrar o lado dinâmico da ekphrasis. [4]

Vale a pena suspendermos por um instante a questão estética e indagarmos como Jorge de Sena se serve da ekphrasis, desta arte de descrever a arte.

Ocultando o termo ekphrasis, que provavelmente o grande humanista conheceria, o poeta chama as suas Metamorfoses “repercussões poéticas das outras artes”, definindo assim a origem, o campo e o alvo da sua investigação.

No postfácio destas vinte e oito obras, volta a definir os seus poemas, escritos entre 1958 e 1962,[5] “peregrinações sobre objectos pictóricos, escultóricos ou afins”.[6] Jorge de Sena declara que a necessidade de escrever a partir das artes começou em Inglaterra. O desejo definido, ainda que impreciso, de responder à sua vocação ekphrástica nasceu pela primeira vez em Londres, onde, como diz o poeta, o anseio de “meditar poeticamente sobre determinados objectos estéticos”, se tornou necessidade, pressão, urgência.

O que acontece de singular nos poemas de Sena é que a ekphrasis ultrapassa os estreitos limites da descrição. Sena passa o limiar entre descrição e nova criação, abrindo o caminho a novas fronteiras poéticas. Longe de meras descrições, as meditações poéticas de Sena parecem “segundas criações” a partir do modelo inicial. Mais ainda. Sena colhe a vida “que palpita e vibra” [7] por trás destas peças de Museu e restitui-lhes uma existência nova e metamórfica. Passando pela alquimia do seu fazer poético, os objectos estéticos ganham uma nova vida e um novo sentido, graças àquela “comovente historicidade da natureza humana”[8] que desperta no poeta a emoção da escrita e, neste caso, da re-escrita. Os poemas não explicam as imagens, mas são uma segunda imagem, uma obra figurativa paralela que colhe, a partir do seu modelo, o seu sentido profundo e, sobretudo, a sua vida secreta. Num “cruzamento líquido de olhares” [9] – os seus e os da obra de arte – Sena relembra como tudo começou numa sala empoeirada do Museu Britânico.

Estas “meditações aplicadas” são na realidade autónomas – tal como são autónomos os poemas musicais da outra série, A arte da música, que forma com Metamorfoses uma espécie de díptico – sugerindo leituras independentes das reproduções a que se referem.

Se Londres foi responsável pelo primeiro despertar de uma vocação ekphrástica em Sena, o protagonista da Tate Gallery, William Turner, é visitado e revisitado longamente durante o seu séjour em 1958. [11]

Face ao pintor, Sena escolhe o caminho da enumeração. Aliás é o próprio poeta a esclarecer no postfácio que o poema Turner “não diz respeito a nenhum quadro determinado, mas à impressão que o pintor me causou em bloco, destacando-se, deste bloco, alguns pormenores dos seus quadros”.[12] Por acumulação, através de uma série de enjambements do primeiro até ao quadragésimo-primeiro verso, Jorge de Sena folheia a sua longa galeria de imagens turnerianas.

O poeta parece seguir o raciocínio de Goethe na introdução à Teoria das Cores, separando e recompondo as temáticas e os tópicos turnerianos, tal como sugere o escritor:

The desire of knowledge is first stimulated in us when remarkable phenomena attract our attention. In order that this attention be continued, it is necessary that we should feel some interest in exercising it, and thus by degrees we become better acquainted with the object of our curiosity. During this process of observation we remark at first only a vast variety which presses indiscriminately on our view; we are forced to separate, to distinguish, and again to combine; by which means at last a certain order arises which admits of being surveyed with more or less satisfaction. [13]

Dos indícios senianos, o crítico de arte é tentado a ir arqueologicamente à procura de vestígios turnerianos nas entre-palavras e nas entre-linhas do escritor e, consequentemente, descobrir o “correlativo objectivo” das suas elucubrações. Esta leitura enumerativa é sem dúvida uma primeira e justa abordagem interpretativa. Mas a enumeração de Sena face a Turner é uma aparente enumeração.

Atrás dos temas, das cores, das atmosferas turnerianas, listadas na poesia, esconde-se uma meta-leitura toda a decifrar. Traçam-se caminhos intertextuais, trajectos de reenvios internos, leituras encobertas. Na sua re-escrita, o poeta percorre todos os temas, as cores, as atmosferas turnerianas: desde a névoa às marés, das velas ao sol, da presença-ausência humana à paisagem arquitectónica e histórica. Todos os temas, as cores, as atmosferas, os tópicos pictóricos de Turner estão aqui metamorfoseadas por palavras.

Aproximemo-nos para ver em detalhe tais rastos da presença turneriana na poesia de Sena.

Versos senianos   —>    Pinturas turnerianas

No silêncio da névoa em que os ruídos passam
como num prisma a luz se decompõe, —> Mountain Landscape, 1840-5 e Mountain Scene with Lake and Hut, 1840-5, Tate Gallery, Snowstorm, 1842

é de oiro a fímbria dos reflexos brandos
na vibração suspensa de águas pardacentas
—> Entre os inúmeros quadros, veja-se: Peace-Burial at Sea, 1842, Tate Gallery

que vultos incendeiam de adejantes velas
e galhardetes que como elas pandos
o são de um vento apenas prenunciado
na esfriada profusão de um céu marinho
—> Yacht approaching the coast, 1845-50, Tate Gallery

sobre cidades pétreas dissolvidas —> Ponte delle Torri, Spoleto, c. 1845 Tate Britain; The Thames above Waterloo Bridge, c.1830-5; Distant View of London, from Wilson Sketchbook, 1796-7

em escadarias a que atracam nuvens, —> A Beech Wood with Gypsies round a Campfire, c.1799-1801

o tamisado Sol, —> Sun Setting over a Lake, c. 1840; Angel Standing in the Sun, 1846; Sunrise between Two Headlands (s.d.)

fogueiras, —> The Fighting Téméraire tugged to her last Berth to be broken up, 1838, The Burning of the Houses of Parliament 16th October, 1834, 1835; Eruption du Vesuve 1817.

luz da Lua. —> Moonlight, a Study at Millbank exhibited 1797. Snow Storm: Hannibal and His Army Crossing the Alps, 1812. Keelmen Heaving in Coals by Moonlight, 1835

Ondeantes vultos (que sinuosos, frios,
entre si deixam quais rasgões da névoa
a própria névoa que os compõe rasgada)
—> Light and Colour (Goethe's Theory) – the Morning after the Deluge, Moses Writing the Book of Genesis, 1843.

janelas são ante zimbórios, prados,
ante arvoredos outonais tranquilos,
cuja verdura é de oiro requeimada
na fumarenta limpidez crepuscular
—> Aeneas and the Sibyl, Lake Avernus c. 1798, Childe Harold's Pilgrimage; Mortlake Terrace, the Seat of William Moffatt, Esq.; Summer's Evening, 1827; Nemi-See 1828

de tardes ou manhãs que se confundem
na mesma humanidade sem contornos,
apenas força e sombra como barcos
a deslizar sem mastros e sem velas
—> Slavers throwing overboard the Dead and Dying — Typhoon coming on ("The Slave Ship") 1840

que ao alto pandas transparentes pendem
na alaranjada e glauca ressonância
do vaporoso estuário onde as marés
se adensam de lembradas tempestades
do largo mar em vagas de grisalha espuma,
—> Shade and Darkness – the Evening of the Deluge, 1843; The Evening of the Deluge, c. 1843

enquanto rio abaixo vão fornalhas
hiantes e encardidas, pontes, e um coxim
de que Veneza e as galés de Ulisses
são horizonte e cálida elegância.
—> The Dogana (Customs Office) and San Giorgio Maggiore, 1834 The Grand Canal, Venice, 1835; Venice – Maria della Salute, 1844; Ulysses deriding Polyphemus – Homer's Odyssey, 1829

Que silêncio de luz vista de frente,
olhada contra as cores aquém das formas,
aquém das vibrações que se transmutam
em superfícies e em volumes tensos!
—> Sun Setting over a Lake, c. 1840

Como se espalha em nódoa sobre a tela
uma cegueira penetrante e ávida
que a tudo vai roendo em marulhar de mundos!
—> Sunrise with Sea Monsters, 1845

E, para além deste sereno estrépito
que em vórtices congela a tenuidade,
—> Snowstorm, 1842

não há mais nada. Nem pintura resta. —> Norham Castle, Sunrise, c. 1845; Moonlight c. 1840. Toda a série de aguarelas da Tate Britain do album Skies Sketchbook, veja-se entre os outros: Study of Sky, c. 1816-18; Boats at the sea, c. 1830.

Não só Sena evoca os conteúdos iconográficos da pintura (a névoa, o mar, os barcos, o Sol, a Lua, a cidade, a história), mas também penetra na técnica turneriana, citando a pincelada poderosa, vorticosa (v.40) e ondulante (v.12), referindo as dissolvências (v.9), a decomposição da luz do sol (v.11), mencionando as linhas adejantes (v.5), os nós, através dos quais o pintor acumula e sobrepõe as cores entrelaçando-as em determinadas zonas (vv. 26 e 36), chamando a atenção para a qualidade da cor, por vezes requeimada (v.17), fumarenta (v.18), por outras vaporosa (v.25), espumada (v.27).

As mesmas imagens do turbilhão, do vórtice, das forças em gestação e criação do Universo remetem a uma cosmogonia da luz que brilha inequivocamente nas telas turnerianas. Nos versos senianos, as alusões ao quente (vv. 5, 11, 17, 28, 31, 32) e ao frio (vv. 1, 8, 25, 40), ao movimento rotatório (40) e ao contra-movimento da fixidez (40), à osmose entre um aquém e um além dum diafragma que se torna membrana, véu, filtro, tamis (vv. 33, 34 e 39), que é ao mesmo tempo a pupila do artista e a tela, tudo isso não pode ser casual e é sem dúvida fruto duma memória evocativa e enumerativa das tantas telas do pintor.

Turner era célebre por ser um pintor difícil, complexo, por vezes incompreensível, um homem que quebrou todas as regras clássicas. Em 1816, Hazlitt elogia-o como “le plus grand peintre paysagiste actuellement en vie”, mas critica as suas obras mais audazes “par trop de perspectives aériennes abstraites, représentant moins les objets de la nature que le milieu à travers lequel ils sont vus”. A pintura de Turner era reprovada com glosas brutais como estas: “de l'eau savonneuse et du lait de chaux”, “oscillation entre l'absurde et le sublime”. Incompreendido e audaz, Turner continuava o seu caminho solitário, enquanto só John Ruskin defendia a sua íntima “fidelidade à natureza”, mas sem o poupar com ferozes reprovações sobre as suas nuvens-perucas. Em 1827 um crítico inglês comparou Turner a um cozinheiro que abusava da sua especiaria preferida, o curry, pondo-o em todos os seus pratos (clara alusão à predilecção pelo amarelo, e ao estudo da luz alaranjada). O próprio Pierre-Auguste Renoir zombava dos quadros de Turner, qualificando-os como "pâtisserie", mas Camille Pissarro admirava-o fortemente, indicando-o como precursor do Impressionismo.

Dissipador de todos os aspectos concretos da realidade, Turner preludia à abstracção. No seu envolvimento panteísta dos quatro elementos – ar, terra, água e fogo – tece atmosferas de luz e cor, de som e mar, chegando ao limiar do despojamento absoluto, em que só há uns vestígios de pinceladas apenas entrelaçadas que não remetem a nenhum ponto de referência do real, antecipando a abstracção lírico-geométrica dum Kandinskij ou dum Mondrian. Dizia Hazlitt que ele era um “peintre des éléments”, mas o crítico não era capaz de ver nisso mais do que um defeito, enquanto, pelo contrário, esta era uma das suas grandes e excepcionais qualidades.

Jorge de Sena, sentindo tudo isto, escreve versos alusivos aos quatro elementos:

No silêncio da névoa  [Água-Ar]
como num prisma a luz [Fogo]
é de oiro a fímbria dos reflexos brandos
na vibração suspensa de águas pardacentas [Água]
que vultos incendeiam de adejantes velas [Fogo]
e galhardetes que como elas pandos
o são de um vento apenas prenunciado [Ar]
na esfriada profusão de um céu marinho [Ar]
sobre cidades pétreas dissolvidas [Terra]
em escadarias a que atracam nuvens, [Ar-Água]
o tamisado Sol, fogueiras, luz da Lua. [Fogo]

Ondeantes vultos (que sinuosos, frios, [Água]
entre si deixam quais rasgões da névoa [Água-Ar]
a própria névoa que os compõe rasgada)
janelas são ante zimbórios, prados,
ante arvoredos outonais tranquilos,
cuja verdura é de oiro requeimada
[Fogo]
na fumarenta limpidez crepuscular [Fogo]
de tardes ou manhãs que se confundem
na mesma humanidade sem contornos,
apenas força e sombra como barcos
a deslizar sem mastros e sem velas
[Água]
que ao alto pandas transparentes pendem [Ar]
na alaranjada e glauca ressonância
do vaporoso estuário onde as marés
[Água]
se adensam de lembradas tempestades
do largo mar em vagas de grisalha espuma,
enquanto rio abaixo vão fornalhas
[Água – Fogo]
hiantes e encardidas, pontes, e um coxim
de que Veneza e as galés de Ulisses
[Água]
são horizonte e cálida elegância. [Fogo]

Que silêncio de luz vista de frente, [Fogo]
olhada contra as cores aquém das formas,
aquém das vibrações que se transmutam
em superfícies e em volumes tensos!
Como se espalha em nódoa sobre a tela
uma cegueira penetrante e ávida
que a tudo vai roendo em marulhar de mundos!
[Água]
E, para além deste sereno estrépito
que em vórtices congela a tenuidade,
[Ar]
não há mais nada. Nem pintura resta.

Para além da leitura visual da obra de Turner, para além da interpretação técnico-poética das suas temáticas, Jorge de Sena colhe as fases evolutivas do iter pictórico turneriano. Além da enumeração dos quadros, o poeta traça, desde o 1º até ao 41º verso, por assim dizer, a metamorfose de Turner em quanto pintor. Trata-se duma metamorfose na Metamorfose. O microcosmo da poesia e o macrocosmo da colectânea poética espelham-se, como um quadro no quadro. O escritor constrói uma arquitectura interna, em miniatura, no interior da grande e arquitectónica construção das Metamorfoses. Como lembra William Gaunt,

Il n’existe pas d'exemple plus extraordinaire de l'évolution d'un artiste que celui de Joseph Mallord William Turner (1775-1851). Des limites étroites de la tradition topographique de l’aquarelle anglaise, il s’éleva jusqu'aux régions à peine explorées de la poésie et de l'abstraction visuelles. Au terme de cette métamorphose, le jeune auteur de dessins architecturaux rehaussés de couleur, dans le style fin dix-huitième, devint le coloriste dont la magie évoquait de somptueuses visions iridescentes, le peintre du tragique et de la fatalité – et surtout, le génie des éléments, dans le sens que les Anciens donnaient à ce terme: la terre, l'air, l'eau, le feu. [16]

A selecção feita por Sena, na sua galeria pessoal das imagens turnerianas, procede dos quadros mais figurativos, Paisagens montana, 1856 [fig. 1] e Cena de montanha com lagoa e refúgio, 1856, Tempestade de neve, 1842, até aos mais abstractos: Norham Castle, Sunrise, cerca de 1845 [fig. 2], Moonlight cerca de 1840, toda a série de aguarelas da Tate Britain do album dos céus, Skies Sketchbook, em particular Study of Sky cerca de 1816-18 e Boats at the sea, cerca de 1830.

Emolduradas entre estas duas etapas da evolução artística do pintor, as outras obras surgem na inspiração e na memória do poeta como graus decrescentes da metamorfose de Turner, de paisagista a abstraccionista, da sua inicial pesquisa topográfica e histórica à completa e imprevisível abstracção, alcançada num ante-tempo surpreendente e admirável.

Turner, no breve arco da sua vida – tal como Sena, no breve espaço desta poesia – percorre todas as conquistas da experimentação. Das pesquisas sobre as propriedades luminosas das cores, conducidas com audaciosa liberdade de expressão, chega rapidamente ao vácuo, ao oco, ao nada. Partindo da luz, Turner abeira-se da não-matéria, da pura energia. E aqui assistimos ao milagre de uma pintura que antes encontrava todo o material de que precisava na natureza, no mar e no céu, nas nuvens e nas tempestades e, numa segunda fase, atingirá o sublime como única fonte de inspiração, atingindo uma estética que, prescindindo do dado visual, renuncia à natureza e às suas seduções. Turner parte do pitoresco topográfico e paisagístico e chega ao sublime abstracto e luminoso. As cores, soltas, livremente flutuam na tela, como em muitos exemplos dos livros de aguarelas da década dos anos ‘40.

O percurso fenomenal de Turner é comparável, como lembra Edward Lockspeiser, ao de um músico que na juventude compõe no estilo de Haydn e Mozart e na maturidade escreve obras de música electrónica, alcançando a terra-de-ninguém da música contemporânea.

Obcecado pela luz, pelo pôr-do-sol, pelo luar, pelo Fogo, fascinado pelo sublime infinito das distensas marinhas, chega à abstracção. Ut pictura, musica.

Some of Turner’s strange compositional devices themselves suggest musical counterparts. Instead of leading the eye to a central vanishing point, in the manner of establishing a tonal centre, he strove to embrace, in Norham Castle or the Petworth pictures, an ever-wider scene and to introduce extraneous diversions. Composers use a similar procedure in bitonality or polytonality consisting of the juxtaposition of tonal planes. Turner’s later works were created within what seems to be a hollow sphere or a void. His double and foreshortened per¬spectives were used with a great sense of drama and fantasy and in a manner far in advance of his time. This drive to abstraction could only have been undertaken in painting since music is by its nature abstract. His later works, particularly his water-colours called by his biographer A. J. Finberg Colour beginnings, anticipate the technique of present-day tachistes. Colour seems to be flung on with a palette knife and these late water-colour sketches have the qualities of action painting. [17]

Como foi possível? No meu entender, a chave está na descoberta de Goethe por Turner e na sua consequente investigação dos contrastes de sombra e de luz. Goethe fez de Turner um pintor romântico, um artista pré-abstracto, no limiar do informal, incompreendido pelos contemporâneos.

Quando nos debruçamos sobre a Teoria das cores de Goethe, tal como fez em 1840 Turner, muitos enigmas parecem dissolver-se. Ao confrontarmos os versos senianos com os temas da Farbenlehre, logo se revela aos nossos olhos um universo de símbolos pictóricos turnerianos, filtrados pela teoria de Goethe. Surpreende constatar como Sena descobriu as raízes cientifico-esotéricas da sua inspiração. Descobriu-as, sem as citar, as fontes da metamorfose do pintor. Fonte de Turner é, sem dúvida, Goethe. Esta profunda compreensão de Turner, por parte de Sena, à luz da obra teórica goethiana, ainda não foi observada pela bibliografia que consegui reunir até agora.

Este poema – aparente catálogo das obras de Turner, que tem, na colectânea A Arte de Música, o seu paralelo em Chopin, um inventário – esconde, na realidade, um díptico. Ou seja, numa leitura atenta, todo o poema pode reduzir-se a duas telas: Light and Colour (Goethe's Theory) – the Morning after the Deluge, Moses Writing the Book of Genesis, 1843 [fig. 3], e Shade and Darkness – the Evening of the Deluge, 1843 [fig. 4].

Em Shade and Darkness – the Evening of the Deluge, Turner experimenta as cores frias, em contraste luminoso e emocional com as cores quentes do outro quadro, tal como Goethe descreve na sua Farbenlehre. Tal oposição não se traduz só numa investigação física da cor, mas também numa pesquisa metafísica, espiritual, nos sentimentos opostos derivados da percepção psicológica dos pigmentos quentes e frios.

Turner escolheu o tema bíblico do dilúvio como perfeito exemplo do ciclo catástrofe-regeneração. A força dos elementos, Ar, Água, Terra e Fogo é aí expressa através duma pincelada vorticosa, densa e material, quase palpável. Esta característica de condensar em certas zonas da tela grumos de cores espessas, quase sólidas, nos limites do informal, tornando a pintura quase material, é expressa por Sena com a imagem dum vapor que se vai adensando, evocando na memória as águas em tormenta:

do vaporoso estuário onde as marés
se adensam de lembradas tempestades

A mesma técnica pictórica turneriana com a sua textura espessa, por camadas sobrepostas, no limiar do sólido, entra no jogo de acumulação semântica e táctil de Sena, associando-se a expressões palpáveis, concretas.

Em Light and Colour (Goethe's Theory) – the Morning after the Deluge, Moses Writing the Book of Genesis, Turner explora todas as variações luminosas emitidas e absorvidas pelo espectro. É uma explosão das qualidades visuais e tácteis da luz: o brilhantismo e o calor.

O formato circular destas telas quadradas, originariamente octogonais, imprime aos quadros um movimento frenético, rotatório e turbilhante, típico do dinamismo da luz. Na noite apocalíptica do dilúvio, este círculo é atravessado por um vôo de pássaros, retractados/pintados num gesto arqueado, parecendo fugir à tempestade. No dia da ressurreição da catástrofe, o círculo toma, assim, a forma de uma espiral alongada, numa perspectiva feita de sombras que gradualmente se aclaram até à luz. Dentro de uma cúpula luminosa desta igreja celeste, surge Moisés sentado sobre uma nuvem cintilante enquanto, mais em baixo, emerge uma serpente, símbolo de salvação e aliança, pacto divino entre Homem e Deus.

E disse o Senhor a Moisés: Faze-te uma serpente ardente, e põe-na sobre uma haste; e será que viverá todo o que, tendo sido picado, olhar para ela.
E Moisés fez uma serpente de metal, e pô-la sobre uma haste; e sucedia que, picando alguma serpente a alguém, quando esse olhava para a serpente de metal, vivia.
[18]

O triunfo da vida depois do dilúvio bíblico, com Moisés que escreve o livro sagrado e a serpente como símbolo da nova aliança, torna-se uma celebração do retorno do sol que é aqui saudada como profética antevisão da ressurreição de Cristo e da futura salvação do Homem no último dia do Juízo Universal.

E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. [19]

O tema da morte, enfrentado pela tela escura do díptico, apresenta-se como paralelo visual da sagrada escritura:

Porque eis que eu trago um dilúvio de águas sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra expirará. [20]

Ainda uma comparação entre Antigo e Novo Testamento:

E, como foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem. Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca. E não o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do homem. [21]

Mas o elemento iconográfico da serpente esconde mais um paralelo entre Turner e Goethe. No Conto da serpente verde, o escritor alemão narra as rocambolescas metamorfoses do belo animal, alquímico transformador de metais, que alcança, na polaridade inicial, depois ter explorado os conflitos dos opostos, através do percurso entre os quatro elementos, a transfiguração total, tornando-se, no final, pedra filosofal, pura luz, união do Todo em Um.[22] O conto, de cariz esotérico, tem um sentido simbólico profundo. A serpente levantada sobre o bastão torna-se um símbolo oculto, na mística ligada ao Tau, como revela o antiquíssimo texto Uraltes Chymisches Werk, escrito pelo pseudo-Eleazar [fig. 5].

A serpente, responsável pela caída dos progenitores, torna-se aqui símbolo de virtude curativa, elixir mercurial, salvação pré-cristã.

O tema da catástrofe e do dilúvio percorre transversalmente as Vanguardas Europeias, levando pintores como Kandinskij à abstracção. Entre 1912 e 1914, o aspecto negativo da catástrofe e o aspecto positivo da revelação, do caos ao cosmos, revela-se em artistas fortemente ligados às componentes místico-religiosas, em temáticas da luta entre luz e trevas, entre bem e mal, entre vida e morte. À espera de uma restauração de uma nova dimensão espiritual, esta viragem à abstracção é legível em obras como Formas em lutas, 1914, de Franz Marc e em Composição VI, 1913; Composição VII, 1913; Quadro claro, Quadro com margem branca, 1913 Improvisação Dilúvio, 1913 de Vasilij Kandinskij que enfrentam temas semelhantes aos de Turner: o Dilúvio, o Apocalipse, o Juízo Final. [23]

Voltando ao tema do formato circular presente nesta série de quadros, é útil relembrar que também Goethe, nas suas experimentações, se serve duma espécie de câmara obscura, utilizando o mesmo expediente do círculo.

90

We have before noticed the impression of a luminous object on the retina, and seen that it appears larger: but the effect is not at an end here, it is not confined to impression of the image; an expansive action also takes place, spreading from the centre. [24]

95

Several cases seem to indicate a circular action of the retina, whether owing to the round form of the eye itself and its different parts, or to some other cause. [25]

Em particular, no que diz respeito ao díptico acima referido, Turner abraça, na minha opinião, algumas das experiências feitas por Goethe.

Para a utilização da câmara obscura, do círculo e das cores deslumbrantes e cinzentas, leia-se:

DAZZLING COLOURLESS OBJECTS

39

If we look at a dazzling, altogether colourless object, it makes a strong lasting impression, and its after-vision is accompanied by appearance of colour.

40

Let a room de made as dark as possible; let there be a circular opening in the window-shutter about three inches in diameter, which may be closed or not at pleasure. The sun being suffered to shine through this on a white surface, let the spectator from some little distance fix his eyes on the bright circle thus admitted. The hole being then closed, let him look towards the darkest part of the room; a circular image will now be seen to float before him. The middle of this circle will appear bright, colourless, or somewhat yellow, but the border will at the same moment appear red.

After a time this red, increasing towards the centre, covers the whole circle, and at last the bright central point. No sooner, however, is the whole circle red than the edge beings to be blue, and the blue gradually encroaches inwards on the red. When the whole is blue the edge becomes dark and colourless. This darker edge again slowly encroaches on the blue till the whole circle appears colourless. The image then becomes gradually fainter, and at the same time diminishes in size. Here again we see how the retina recovers itself by a succession of vibrations after the powerful external impression it received. [26]

Quanto à impressão das cores sobre a retina, esta provoca uma consequente imagem circular, semelhante às tardes e às manhãs, anteriores e sucessivas ao dilúvio turneriano.

42

But this remarkable phenomenon no sooner excites our attention than we observe a new modification of it. If we receive the impression of the bright circle as before, and then look on a light grey surface in a moderately lighted room, an image again floats before us; but in this instance a dark one: by degrees it is encircled by a green border that gradually spreads inwards over the whole circle, as the red did in the former instance. As soon as this has taken place a dingy yellow appears, and, filling the space as the blue did before, is finally lost in a negative shade. [27]

Esta vitalidade e reactividade da retina sugerirá a Sena uma longa série de oxímoros, como leremos mais adiante:

48

The impression of coloured objects remains in the eye like that of colourless ones, but in this case the energy of the retina, stimulated as it is to produce the opposite colour, will be more apparent. [28]

O emprego, no díptico de Turner, das atmosferas vaporosas e aquosas encontra uma explicação teórica nesta ulterior experiência goethiana:

287

If, again, philosophers ascribed the phenomenon of a stronger or weaker refraction, not indeed wholly, but in some degree, to the different density of the medium, (as purer atmospheric air, air charged with vapours, water, glass, according to their increasing density, increase the so-called refraction, or displacement of the object;) so they could hardly doubt that the appearance of colour must increase in the same proportion ; and hence took it for granted, in combining different mediums which were to counteract refraction, that as long as refraction existed, the appearance of colour must take place, and that as soon as the colour disappeared, the refraction must cease. [29]

Tais provas sobre a acção e reacção das cores levam Goethe, e por consequência Turner, à descoberta dos halos redondos e luminescentes que se formam à volta das aparições do sol em certas horas do dia.

91

That a nimbus of this kind is produced round the luminous image in the eye may be best seen in a dark room if we look towards a moderately large opening in the window-shutter. In this case the bright image is surrounded by a circular misty light. I saw such a halo bounded by a yellow and yellow-red circle on opening my eyes at dawn, on an occasion when I passed several nights in a bed-carriage. [30]

Inútil sublinhar mais uma vez a perfeita consonância em relação à iconografia do dilúvio das duas telas da Tate Gallery.

Voltando ao poema de Jorge de Sena, descobrimos um primeiro indício da matriz goethiana, no verso n. 2:

prisma de luz que se decompõe

A Farbenlehre de Goethe fala no prisma e, em polémica com Newton, descobre o famoso círculo cromático, ligado à imagem teosófica dos dois triângulos entrelaçados com os vértices opostos, inscritos num anel que reúne todas as cores do espectro. O triângulo com o vértice para cima aponta para as cores primárias e o com o vértice para baixo indica as secundárias [fig. 6].

Isaac Newton tinha realizado, em 1665, experiências com prismas, descobrindo a qualidade compósita da luz branca e realçando as qualidades físicas das cores. Ao contrário, em Goethe, o branco é uniforme e as cores têm qualidades simbólicas e místicas.

Goethe olhara para uma parede branca, através de um prisma, e não vira as cores do arco-íris, mas apenas a luz branca da parede. Esquecera-se de que Newton tinha feito a sua experiência com um raio de luz estreito e tinha projectado a luz decomposta na parede. Os amigos apressaram-se a explicar o seu erro: olhando para a parede branca através do prisma, as diversas cores decompostas provêm de áreas várias da parede e sobrepõem-se, de forma que se vê de novo a sua soma, ou seja, a luz branca. No entanto, Goethe não ficou convencido e procedeu a outras experiências que, julgava, confirmavam o erro de Newton. Olhou através do prisma para um papel metade branco e metade negro e apenas viu uma coloração na zona de limite entre o branco e o negro. Deduziu que a cor era provocada pela transição da luminosidade para a escuridão, afinal segundo a velha e ultrapassada teoria de Anaxímenes e Aristóteles. Não percebeu que as cores supostamente em falta correspondiam à zona negra do papel. Esta e outras experiências que Goethe levou a cabo com obstinação e sem ouvir os conselhos dos cientistas levaram-no a conceber uma nova teoria da cor. Newton era apenas um charlatão e ele, Goethe, iria revolucionar a física. «Não tenho orgulho no que fiz como poeta», escreveu, «mas sou o único neste século que conhece a verdade na difícil ciência das cores». A história haveria de o apreciar de forma precisamente inversa. [31]

Turner foi um dos primeiros artistas a perceber perfeitamente o problema da cor e da não-cor e a pô-lo em prática. Com esta afirmação, Turner distancia-se de Newton “O branco é a união ou composição da luz, enquanto a mistura das nossas cores materiais se torna o oposto, negritude”.

Quando Turner leu as teorias de Goethe, inspirou-se nelas, mas não aceitou todas as suas conclusões. Pintando o famoso díptico, explorou precisamente a questão do círculo das cores, como provam o formato circular das telas e a utilização das cores quentes – “efémeras” (amarelo) e “esperançosas” (vermelho) – e das cores “ameaçadoras” (azul). O fim da vida e o seu reinício, a catástrofe e a regeneração, são aqui confrontados ao espelho, uma em frente à outra, sem omitir as notações psicológicas e místicas que a natureza física e científica das cores pressupõem.

No seniano “prisma de luz que se decompõe” concentram-se, assim, todas essas memórias das descobertas e das polémicas à volta da cor no tempo de Goethe e que o próprio Turner absorveu, partilhando com o escritor alemão a escolha da qualidade sensitiva e afectiva da cor.

Se Newton realçava o carácter quantitativo da cor, Goethe falava nos aspectos qualitativos.

Quanto a Sena, a sua aparente enumeração dissolve-se ao considerarmos os seguintes versos-chave:

na mesma humanidade sem contornos,
apenas força e sombra como barcos

Em rigor, estes resolvem-se em dois hemistíquios:

                                         sem contornos,
apenas força e sombra

Como um sulco, estes hemistíquios dividem o poema ao meio, não deixando de aludir às matrizes esotéricas goethianas. O poema Turner ocupa o décimo quinto lugar da série ekprhástica. A meio caminho entre a Gazela de Ibéria e o Sputnik [32], ele parece fazer as funções de charneira, determinando uma harmónica correspondência entre a parte e o Todo, entre o microcosmo do dístico e o macrocosmo do poema. De facto, um inequívoco espírito unanimístico percorre a iconografia turneriana, presidindo à origem da dissolução das formas, visando a abstracção expressa por Sena no verso conclusivo: nem pintura resta.

A este propósito escreve Goethe no seu Fausto:

Como um dentro de outro se entrama
E um só Todo se amalgama!
Como flúem e refluem celestes energias,
A se estenderem mutuamente as áureas pias!
Com surtos prenhes de bálsamo alento
A terra imbuem, fluindo do firmamento,
Vibrando pelo Todo com harmonioso acento!

E esclarece-se, mais uma vez, nesta alusão à panteísta dissolução no Todo:

Cada um separadamente queria desaparecer
para se reencontrar a si mesmo no infinito

Seguimos o desenrolar do poema, à luz da teoria das cores goethiana.

Parafraseando Goethe que escreve no seu prefácio,

Indeed, strictly speaking, it is useless to attempt express the nature of a thing abstractedly. Effects we cans perceive and a complete history of those effects would, in fact, sufficiently define the nature of things itself. We should try in vain to describe a man’s character, but let his acts be collected and an idea of the character will be present to us. The colours are acts of light; its active and passive modifications. [33]

Sena, na tentativa de expressar a essência da pintura turneriana, presta atenção primeiro aos efeitos, depois ao carácter e, enfim, atinge a essência da arte pictórica, utilizando uma espécie de teologia negativa, descrevendo a pintura por aquilo que não é. Através dos contrastes, das antinomias, dos oxímoros, o poeta chega à descrição pela não-descrição, à ekphrasis pela não-ekphrasis. Nesta dialéctica dos opostos, que platonicamente remete à teologia negativa, recuperada pela patrística cristã, nascem uma série de oxímoros e de antíteses. A ekphrasis seniana chega, assim, ao ponto de conseguir o máximo desafio: descrever o indescritível.

Enquanto modalidade de tradução inter-semiótica, a ekphrasis, no caso de Sena, reinventa a re-escrita poética, escolhendo a paradoxal aposta de descrever sem dizer, de definir o indefinível. Somente assim, Sena consegue alcançar o universo poético turneriano, que escapa a todas as fixações. Deste modo, através dos seus oximoros e das suas antíteses, Sena consegue “pintar” o contraste, presente no díptico.

Sena parte do primeiro verso, citando o silêncio e aludindo ao branco da névoa

No silêncio da névoa

Quase a meio refere

Na alaranjada e glauca ressonância

E assim inicia a última estrofe

Que silêncio de luz vista de frente

Esta iridação do branco às cores e das cores ao branco, associando o branco ao silêncio no maravilhoso oxímoro da “glauca ressonância”, o poeta aponta para a obra teórica de Goethe. Do Tudo ao Nada, do branco às cores e retorno, este percurso seniano–turneriano é um caminho iniciático na esteira de Goethe. Sabemos graças a Goethe que o branco não é ausência colorida, mas sim união potencial de todas as cores do íris. Do mesmo modo, o silêncio não é privação musical, mas potencial presença de todos os sons.

A reflexão sobre o som e a cor é enfrentada por Goethe em outros espaços da sua escrita.

Cor e som de maneira alguma podem ser comparados, embora ambos remetam a uma fórmula superior, a partir da qual é possível deduzir cada um deles. Ambos são como dois rios que nascem na mesma montanha, mas devido a circunstâncias diversas correm sobre regiões opostas, de modo que em todo o percurso não há nenhum ponto em que possam ser comparados. [34]

O discurso é válido também para Philippe Otto Runge, pintor e teórico romântico alemão que, como Goethe, vê no âmbito da oitava musical, um registro de tons frios e quentes [fig. 7].

Por outro lado, Adolf Hölzel amplia o círculo cromático de Goethe, dividindo-o em seis partes e transformando-o em doze cores. Ele cria, assim, obras abstracto-musicais a partir do conceito de harmonia, conceito autónomo face ao objecto da obra de arte, como no caso de Fuga sobre o tema da Ressurreição, 1916 [fig. 8].

A correspondência entre pintura e música funda-se, por Goethe, na teoria platónica da Harmonia das Esferas. As diferenças entre som e cor pressupõem outras analogias sinestésicas. Lemos no Prólogo do Fausto:

Sol entoa sua velha canção
Entre os cânticos rivais das esferas irmãs,
Seu caminho predestinado vai trilhar
Através dos anos, em retumbante marchar

A passo de dança, sugerindo uma espécie de carola apolínea, com estas esferas interligadas pela claridade e pela sonoridade, Goethe fala da “luz que cresce mais clara e um som crescente, clangor de trompetes e tubas em fanfarra”.

A obra teatral O som amarelo, 1912 de Kandinskij associa o trompete à cor áurea. Uma mesma iconografia da luz, relacionada com este instrumento de sopro, encontra-se no tema kandinskijano do Juízo Universal e do dilúvio, além da série das suas composições e improvisações, como na famosa Impressão III, Concerto, 1911 [fig. 9].

 

 

*Artis – Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 7-8 (2009), p. 407-435.