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Indesejados: entre o rigor histórico e a evocação interpretativa.  

1. O Indesejado:

As expressões em destaque no título foram registradas por Jorge de Sena no posfácio, escrito em 1949, à peça O indesejado, cuja redação se deu de dezembro de 1944 a dezembro de 45. Além da coincidência óbvia a apontar, escrita da peça e fim da 2ª Guerra Mundial, há que se destacar a consciência do autor, manifesta no posfácio ulterior, de que escreve para o seu tempo, mas que, na linguagem e na mentalidade dos personagens, procurou “um discreto compromisso das épocas a aproximar” [1]. Em defesa da tragédia, cuja concepção enuncia de forma pormenorizada, Jorge de Sena, vincula o texto a um sentido histórico rigoroso na reconstituição do passado, ainda que registre a ressalva: “não, é claro, [em] todas as situações dramáticas” [2]. A peça encena o destino “trágico” de D. Antônio (1531-1595), Prior do Crato e neto del rei D. Manuel (reinado: 1495-1521) que, com a morte do Cardeal Infante D. Henrique (1578-1580), vê-se na contingência malograda de se tornar rei de Portugal. 4 atos marcam momentos da vida do monarca falhado e só no primeiro está na pátria.

Quando se pensa no complexo contexto que culminou com o que chamamos de União Ibérica, pano de fundo significativo para a peça, é preciso levar em consideração que, antes do desastre de Alcácer Quibir, a política matrimonial de Portugal e Espanha apontava para esse desfecho. Exemplos disso são os casamentos do príncipe Afonso, filho de D. João II (1481-1495); os três de D. Manuel; o de D. João III (1521-1557) e tantos outros protagonizados por infantes e infantas dos dois reinos. O reinado do Cardeal D. Henrique, subseqüente ao desaparecimento de D. Sebastião (1557-1578), abre um debate que alça candidatos amparados em diferentes princípios de legitimidade. Filipe II de Espanha; D. Catarina de Bragança; o Duque de Parma; o Duque de Sabóia e finalmente D. Antônio, o filho bastardo do infante D. Luís e protagonista de Jorge de Sena, são os que se apresentam. Desses, os mais fortes eram os dois primeiros, Filipe e Catarina, por conseguirem bem organizar ações em prol de seus interesses. Destaco no caso da segunda, a peça Allegações de direito…, da autoria de juristas de Coimbra. Foi esse um tempo de fortes debates jurídicos, fecundo para a discussão de idéias, mas a vitória esteve ao lado de quem reuniu as condições materiais para alcançá-la: exército, homens e dinheiro.
D. Antônio foi aclamado rei pelo povo de Santarém em julho de 1580. Mas, antes já mobilizava expedientes para fazer a sua causa bem sucedida, com limitados recursos e com a oposição evidente do Rei Cardeal. Não cultivou relações ruins com os régios primos, Filipe II e Sebastião. A oposição ao primeiro se aguçou obviamente com a disputa pelo trono. Também não gozou D. Antônio da condição de rei por muito tempo, pois pouco mais de um mês depois de sua aclamação, a derrota de Alcântara o meteria na clandestinidade e entre as peças menos prestigiadas do xadrez internacional. O texto de Jorge de Sena se inicia um pouco antes desse desastre, com a notícia do avanço do Duque de Alba. Nesse primeiro ato, sobressai a mácula de origem do Prior do Crato, que, embora o afastasse do trono, aproximava-o do antepassado ilustre D. João I. Aliás, Sena reencena um acontecimento marcante de Fernão Lopes, o cronista da dinastia de Avis, quando leva o Prior à janela para acalmar o povo, tal qual o Mestre de Avis, depois do assassinato do Conde Andeiro [3]. Além do avanço do poderio castelhano, da evocação do primeiro rei de Avis, sobressaem outros elementos que também fundamentam a declarada adesão histórica da peça. D. Antônio foi um homem de muitas mulheres, um galanteador, e que teve a sua causa em princípio sustentada pelo poder municipal, Lisboa foi a sua base. É preciso lembrar que, em diversos momentos da história portuguesa, os concelhos se oporão de forma contundente a encaminhamentos que resultaram de políticas nobiliárquicas, fundadas na linhagem e no parentesco. Tal foi o caso da crise de 1383-1385 e de Alfarrobeira (1449). No primeiro, de atuação e, no segundo, de indiferença…
Ainda que sobressaia na peça o desejo de rigor histórico, o mesmo Sena, desafiando o anacronismo, como a Literatura pode bem fazer, põe na consciência de D. Antônio ao longo dos 4 atos o questionamento do seu papel, neste caso um recurso que funciona como meta-reflexão dramática:
No 1º ato: “E sou tão frágil eu, nesta aventura,/ que só por ambição ainda flutuo…(…) E ambicioso, eu, que nem o vejo, nem vejo o meu direito” [4];
No 2º ato: “Será verdade que eu me reconheço/ em tudo o que me dizem? Que não sou/ senão a imagem de quanto ouço a quem/ de mim venha falar-me? Ou é verdade aquilo que vou sendo e já não sou?/ Deus faz-me dia-a-dia…”[5] e “Morrem também os que o Destino esquece?!” [6];
4º ato: “Eu fui um sonho mau de independência./ É certo que nem todos me sonharam. (…)/ Mas Portugal, um dia, será livre,/ sem vós, sem muitos que virão depois,/ porque ser livre é mais que a liberdade,/ porque é impossível que o não venha a ser!” [7].

Nesse último segmento, misturam-se a consciência do Prior a ele atribuída pelo artista do século XX e o desejo do autor de se aproximar do público português a quem a peça se destinava [8]. Segundo o próprio Sena, no pos-fácio de 1949, de ato em ato, as tragédias sobrepostas e canalizadas na figura sofrida do Prior operariam “a transfiguração dialética da História espectacular em História significativa” [9].
No segundo ato, está D. Antônio na Ilha Terceira, em 1582, depois de outra derrota. Nesse tempo, Filipe II estava, por sua vez, já em Portugal, chegara de forma solene no ano anterior, e lá ficaria até 83. Nesse segundo ato, sobressaem questões a respeito das forças de apoio do Prior do Crato, são os desafios humanos para sustentar uma causa que soçobra… O desgosto de Duarte de Castro se manifesta de forma crua, a esfriar ainda mais as já arrefecidas condições para fazer de D. Antônio rei efetivo: “Também/ a terra portuguesa vós não tendes,/ nem ela vos conhece, e é minha e vossa” [10]. O mesmo Duarte de Castro evidencia a volatilidade da fidelidade ao Prior, ele, que tudo sacrificara por D. Antônio, também foi capaz de traí-lo. A rendição da Ilha Terceira chega em 1583.
Com outra decepção, abre-se o terceiro ato. Em julho de 1589, o Prior do Crato tentara regressar a Portugal com apoio inglês, motivados ele e seus novos amigos pela derrota da armada espanhola no ano anterior. Mas D. Antônio deve ter se apercebido, sem que essa declaração represente anacronismo, o preço do apoio dos hereges… Instalado em Londres, já em novembro de 89, declara com amargura que o povo o tinha esquecido…: “ – Não. Nada resiste./ Somos um resto de vontade: e esta,/ por querer tanto, se esqueceu do mundo,/ se ultrapassou, enquanto a vida cumpre/ alguns dever’s e acaba mansamente…/ Não é já o mesmo povo” [11]. O tempo transforma faces e vontades, talvez o povo fosse o mesmo, sem o ser… Oito anos eram passados desde a entrada triunfal de Filipe II da Espanha. Mais afeito às bravatas de um D. Sebastião, D. Antônio poderia ter considerado improcedentes os temores do primo Filipe que, em 1576, tentara com vigor dissuadir o rei de Portugal da partida para África… Como afirma Joaquim Romero Magalhães, “A política interna portuguesa não sofre[u] interrupções [com o vice-rei o cardeal Arquiduque Alberto de Áustria]. Como única novidade de monta na organização do aparelho judicial há a criação da Relação do Porto, velho pedido dos povos da Beira, Trás-os-Montes e Entre Douro e Minho” [12]. O povo, ao ver D. Antônio, “vinha à porta olhar, dizer adeus, sorrir… Nem talvez isso!…/ E que eu lhes não pedisse o coração,/ lhes não pedisse a vida nem os filhos.” [13].
Enquanto a decepção escorre, Diogo Botelho revela a difícil situação do Prior em terras estrangeiras: “Sabeis que nada temos, que nos falta/ não já dinheiro para expedições,/ mas para termos de comer, senhor” [14], ao que o Prior reconhece: “Eu vivo como rei de Portugal” [15], declaração ambivalente de afirmação de vontade e de realidade diminuída… “E não me queixo” [16], ainda mais depois do afastamento do próprio filho Manuel, cooptado por Filipe II. Na sua partida, o Prior rememora os que já foram, mas reiventa o conceito de saudade quando o desdobra em um futuro de possibilidades malogradas: “A saudade não é do que já foi,/ nem é do como foi, porque a saudade/ é do que nós, mais tarde, imaginamos/ poder ter sido. É do não feito. É do/ inacabado em tudo. Eis a saudade” [17].
D. Antônio morreria em Paris em agosto de 1595, contexto do último ato da peça. Na abertura do ato e em sua voz, manifesta-se novamente a relação com o pai da sua linhagem, D. João I. Desta vez, porém, a relação se faz de forma invertida, enquanto Aljubarrota (1385) provou a viabilidade como rei do homem que até pouco tempo antes só tinha sido um bastardo hesitante; Alcântara expulsara o Prior do reino e o condenara a ser esperança frustrada e errante. Em carta ao rei da França, em um momento também pouco propício a demandas, como foi o da sucessão de Henrique III para Henrique IV, o Prior do Crato pede pelos seus a quem deixava “sem abrigo” [18]. Versos camonianos cortados e um lamento por não ter tido qualquer Bandarra movem-se na boca do Prior pronto para o último suspiro. Antes ainda, a coroação extemporânea e fantasma. Depois da morte, entretanto, a verdade atestada pelos médicos franceses, o Prior havia enganado a todos (não o teria primeiro a si mesmo?): “ce n’est pas un coeur Royal, parce qu’il n’a pas, sur la troisième diagonale descendante, la petite croix si significative” [19].
Segundo Ronaldo Menegaz [20], a leitura da tragédia de Jorge de Sena deve ser realizada em atenção a três contextos. O primeiro deles seria o da resistência à ditadura salazarista; o segundo diz respeito ao tema tratado: o Prior do Crato como um verdadeiro mito anti-sebastianista e, por fim, um terceiro, de apelo mais universal, que se remete ao homem, o que aproximaria a peça aos textos existencialistas. O segundo enquadramento, embora mais particular, ligado à cultura portuguesa, provocaria o terceiro, na medida em que Jorge de Sena faz do Prior um cidadão do mundo, mostrando nele o homem. Seguindo o raciocínio de Menegaz, para concluir sem ele, é a evocação histórica a chave da ambivalência particular/universal com a qual Sena joga.
Ora, a tragédia de Jorge de Sena que reconta o mito anti-sebástico sem intermediários, através das ações mesmas dos personagens, favorece uma reflexão sobre história e memória, nos termos que Jacques Le Goff já propôs: “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” [21]. Ao recorrer à História para recriá-la em atenção ao que sucedeu, aos dilemas que ficaram, aos do tempo do autor e ao seu desejo de comunicar-se com o público, Sena beneficia, como mote, a evocação de outros indesejados que o destino rigoroso esqueceu de sepultar [22]. Alguns deles são, até o Prior do Crato: D. Sancho II (1223-1248); os irmãos Castro, filhos de Pedro I de Portugal e Inês e D. Jorge (1481-1550), filho de D. João II.

 
2. Os outros:

No alvorecer do século XIII, o 4º monarca português precisava lidar com os problemas advindos de uma mudança na estrutura familiar da nobreza, operada pouco antes. A sucessão cognática, que igualava os filhos e fracionava as heranças, é substituída pela agnática, que privilegiava os primogênitos. Na Península Ibérica, o excedente de buliçosos secondogênitos foi canalizado para a Reconquista, assim como outros reinos o fariam, dirigindo seus cavaleiros com igual motivação para as cruzadas. Entretanto, no reinado de Sancho II, esse projeto de reconquista de terras aos muçulmanos começara a dar sinais de esgotamento e a deflagrar uma pressão social no reino difícil de ser dirimida por um monarca que as fontes mostram como inconstante. Aliado aos problemas com a nobreza, o monarca português enfrentou queixas do clero que reverberaram até Roma, em tempos de substancial fervor da Teocracia Papal. Ainda sim, a deposição do monarca, em 1245, não foi uma decisão intempestiva do Papa Inocêncio IV, houve antes uma série de admoestações para um rei que afinal alcançara Tavira em 1239, pilhando cidades ibéricas almoádas [23]. Oliveira Marques afirma que o monarca foi “incapaz de prosseguir na política centralizadora que os novos tempos sugeriam – mas com assomos de dirigismo exagerado, como o revelaram as leis de desamortização que promulgou –, Sancho II, mal aconselhado e flutuante nos favoritismos, submeteu-se, ora aos ricos-homens da antiga nobreza, ora a representantes de novas categorias senhoriais” [24]. Enquanto isso, criava-se, aos cuidados da tia-avó (ninguém menos que a poderosa Branca de Castela), o infante Conde de Bolonha. Em casa do santo rei francês, o secundogênito que foi fazer a vida longe do ninho cai nas graças do Papa e volta à casa portuguesa como Regedor e Defensor do Reino para, com a morte de Sancho II em Toledo, em 1248, tornar-se Afonso III.
Deixemos por ora os irmãos Castro e falemos de D. Jorge, filho bastardo do Príncipe Perfeito D. João II. O que faltava a Sancho II em matéria de decisão efetiva sobrava no filho de Afonso V, disciplinador da nobreza [25]. Mas, entre um e outro: dois séculos; uma nova dinastia; uma monarquia que se despedia da feudalidade e instituições cada vez mais sólidas. No conflito com os Braganças, dois mundos em confronto e é a monarquia a vitoriosa. Trabalhoso na administração do reino, João II foi, entretanto, menos feliz na garantia da continuidade da sua linhagem. Sorte teria o seu primo Manuel, cognominado em seu século com essa evidência [26]
D. Jorge [27] foi educado em princípio pela tia, a infanta Joana, mas depois do falecimento desta, foi conduzido à corte de seu pai. A morte do meio irmão legítimo, o infante Afonso, colocava-o em evidência, ao que o pai percebe, pois o entrega ao Conde de Abranches. Em 1492, recebeu os Mestrados de Santiago e Avis e, no testamento do pai, havia a previsão para o recebimento do 3º, de Cristo (João II instara D. Manuel a conseguir a nomeação do filho junto ao Papa). Nada disso foi feito, sequer D. Jorge casou com a filha mais velha do Felicíssimo, como o pai também tinha solicitado, aliás D. Manuel realiza o casamento do primo…, com uma donzela da Casa de Bragança justamente… Termina sua vida no ostracismo, mas sua descendência varonil dá origem à prestigiada Casa de Aveiro.
O que teriam em comum com o Prior os indesejados acima, incluídos os Castros de quem ainda é preciso falar? Em comum, sobretudo, as histórias, narrativas que os fizeram indesejados. Sobre Sancho II, poderíamos citar a Crónica de D. Sancho II de Rui de Pina; a Monarquia Lusitana de Frei Antônio Brandão ou ainda a Crónica dos sete primeiros reis de Portugal; sobre D. Jorge, a Crónica del rey Dom João II também de Rui de Pina e a Crónica do Felicíssimo rei D. Manuel de Damião de Góis. Ora, os enredos ou intrigas que “inventamos” são meios de reconfigurar a nossa experiência temporal [28]. “Entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana [há] uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural” [29]. Mas hoje é preciso destacar que se a narrativa, com sua racionalidade própria, constrói sentidos, ela “só convence quando o constructo significativo (…) por ela configurado, torna transparentes e cognoscíveis a ausência, a lacuna ou a negação de sentido nos conteúdos interpretados do passado experimentado” [30], sobretudo no âmbito da apresentação da pesquisa histórica. A narrativa, outrora espantada pelos Annales, paradigma historiográfico de grande prestígio no século XX, voltou mesmo entre seus herdeiros… tanto enquanto fonte privilegiada, quanto como resultado do trabalho do historiador. Por isso, especialmente para falar dos “indesejados” Castro, é preciso lembrar do texto que os fizeram assim, falo das narrativas de Fernão Lopes (1385-1460).
O cronista português da dinastia de Avis precisou de um grande enredo para ensombrar o favorito na crise de 1383-1385, o infante D. João de Castro [31]. Sobre Beatriz, Fernão Lopes deixara Leonor Teles tirá-la de cena; já D. Dinis, o guarda-mor da Torre do Tombo transformou em rei fugaz e cavaleiro andante. Mas é com D. João que o cronista lida com mais dificuldades. Sabemos que Lopes compila excertos de possíveis crônicas que se perderam e este pode ter sido o caso do episódio dos amores do infante com D. Maria Teles, irmã da rainha Leonor na Crônica de D. Fernando [32]. Nele, a estrutura se espelha no texto maior, com um prólogo (CDF, XCVIII); caracterização do infante protagonista, suas aventuras e seus amores (CDF, XCIX até CIII) e o desfecho, marcado pela mudança da sorte, exílio e reconstituição da sua Casa no reino vizinho de Castela (CDF, CIV até CVI).
D. João de Castro era formoso, amigo de fidalgos, grande cavaleiro e muito amigo do Mestre de Avis, com quem vivia os ordenamentos e jogos da vida cortesã. O pai de ambos havia estabelecido que estivessem sempre juntos, porque não sabia a qual dos dois estava destinado um futuro ilustre. Para além, entretanto, da preferência explícita do rei Pedro por D. João de Castro, sobrevém no texto do primeiro cronista português o tratamento de infante dispensado apenas aos filhos do rei tidos do casamento com D. Constança Manuel obviamente e do casamento alegado com D. Inês (CDP [33], XXVIII). Excluído está, portanto, o Mestre de Avis. Em uma cena dominada pelos Teles e pelos Castro, o infante João é o alto senhor de muitos vassalos, com um futuro que poderia incluir o próprio trono, isto se não tivesse atravessado primeiro o caminho dos Teles, soberbamente associados ao trono pelo casamento de D. Fernando com D. Leonor; depois, a ambição de D. Juan de Castela.
O assassinato de D. Maria Teles [34] é a alternativa que se apresenta ao infante de acesso ao trono, mas, logo, D. João de Castro vê revelado o engodo do seu desejo de honra e proveito. Sua decadência é física (o infante e seus vassalos conhecem a pobreza), moral e social, pois, mesmo perdoado pelo rei D. Fernando, perde o seu prestígio e se vê ameaçado por aqueles que se movimentavam para vingar a morte de Maria Teles. A única alternativa que se lhe afigurou para o resgate pessoal foi a fuga para Castela. Aliás, na 3ª fase da guerra entre os reinos vizinhos, Fernão Lopes põe o filho de Inês ao lado do rei cismático a devastar e a pilhar as terras que outrora constituíam o seu senhorio…, mas esconde o que o cronista castelhano Pero Lopez de Ayala não deixa passar, que o Mestre de Avis mandara confeccionar uma bandeira em que figurava o infante Castro a ferros, no início da sua demanda como Defensor do reino [35]

 
3. Conclusão:

Nas narrativas construídas a partir do foco do vitorioso encontram-se vicissitudes que arredaram certos personagens do centro do poder. Histórias que têm por objetivo preservar do correr fugidio do tempo a memória social. A evocação desses indesejados a partir do mote oferecido por Jorge de Sena favorece o questionamento da verdade singular. Como lembrou Helena Barbas em texto sobre as relações entre História e Literatura em Jorge de Sena, “a história – como as outras ciências – é verdade e ficção em simultâneo” [36], porque se estabelece a partir de uma interpretação, fundada, todavia, em documentos que são inquiridos de forma científica, ainda que esse conceito de ciência precise ser bem especificado, e numa relação de proximidade com o vivido, não sobre a imaginação, embora ela esteja necessariamente presente. Ora, se “Em Sena, a história é olhada como ponto de confronto necessário ao presente e ao real e o recurso ao passado histórico [se manifesta] como desejo de vencer o tempo”, como a mesma autora provoca, as histórias, entre verdades e ficções, respondem negativamente à dúvida amarga do Prior do Crato: “Morrem também os que o Destino esquece?!”.

 
Notas:

[1] SENA, Jorge de. O indesejado (2ª ed.). Porto: paisagem Editora, 1973. p.168.

[2] Idem, p.167.

[3] CDJ, I, Capítulo XI. (LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Porto: Livraria Civilização, s/d. V.I e II)

[4] SENA, Jorge de. Op. Cit., p.23.

[5] Idem, p.60.

[6] Idem, p.86.

[7] Idem, p.139.

[8] Idem, p.163.

[9] Idem, p.167.

[10] Idem, p.82.

[11] Idem, p.97.

[12] MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Filipe II (I de Portugal)” in MATTOSO, José (dir.), MAGALHÃES, Joaquim Romero (coord). História de Portugal. V. III – No Alvorecer da Modernidade (1480-1620). Lisboa: Estampa, 1993. p.567.

[13] SENA, Jorge de. Op. Cit., p.92.

[14] Idem, p.99.

[15] Idem, p.100.

[16] Idem.

[17] Idem, p.112.

[18] Idem, p.131.

[19] Idem, p.159.

[20] “O Indesejado, de Jorge de Sena: O Rei que foi apenas um homem” em http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/Revista/6Sem_24.html (acesso em 28 de setembro de 2009).

[21] LE GOFF, Jacques. “Memória” in ROMANO, Ruggiero (dir.) Enciclopédia Einaudi. Memória – História. V. I. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. p.47

[22] “Morrem também os que o Destino esquece?!” – p.86. (SENA, Jorge de. O indesejado (2ª ed.). Porto: paisagem Editora, 1973.)

[23] Sobre a crise que alçou Afonso III ao trono português e a sua obra legislativa, conferir: FERNANDES, Fátima Regina. Comentários à Legislação Medieval Portuguesa de Afonso III. Curitiba: Juruá, 2000.

[24] OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal. Lisboa: Presença, 2001. p.43.

[25] MAGALHÃES, Joaquim Romero. “D. João II” in MATTOSO, José (dir.), MAGALHÃES, Joaquim Romero (coord). Op. Cit., p.513.

[26] Damião de Góis chama-o Felicíssimo.

[27] Sobre D. Jorge, conferir o verbete com seu nome do Dicionário de História de Portugal, V. III, dirigido por Joel Serrão. Figueirinhas: Porto: Lisboa, 1990. p.405 e 406.

[28] RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa (Tomo I). Campinas: Papirus, 1994. p.12.

[29] Idem, p.85.

[30] RÜSEN, Jörn, Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. p.170 e 171.

[31] Sobre esse filho de Inês de Castro escrevi “D. João de Castro (1352-1397): herói de uma crônica perdida” em Anais do VII EIEM – Encontro Internacional de Estudos Medievais. Idade Média: permanência, atualização, residuidade. Fortaleza: Rio de Janeiro: UFC, 2009.

[32] LOPES, Fernão. Crónica de D. Fernando. Porto: Livraria Civilização, s/d.

[33] LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro. Porto: Livraria Civilização, s/d.

[34] Do casamento com Maria Teles, ficou um filho, ignorado completamente por Fernão Lopes. É D. Fernando de Eça que teve, por sua vez, muitos filhos, dos quais a Monarquia Lusitana apresenta 4: D. João, D. Fernando, D. Garcia e D. Catarina. Desta, Frei Manuel dos Santos nos dá mais notícias, foi abadessa do Real Mosteiro de Lorvão da Ordem de São Bernardo, onde governou muitos anos e fez grandes obras.

[35] 2º capítulo do VI ano do reinado de D. Juan I de Castela. AYALA, Pero Lopez de. Crónica del rey Don Juan, primero de Castilla é de Leon in Biblioteca de autores españoles desde la formación Del lenguaje hasta nuestros dias. Cronicas de los reyes de Castilla desde Don Alfonso el Sabio, hasta los católicos Don Fernando y Doña Isabel. Colección ordenada por Don Cayetano Rosell. Madrid, 1953. Tomo II.

[36] BARBAS, Helena. “A poesia olhando a História (com ecos de Álvaro de Campos)” in Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, número 2, Julho-Setembro de 1998. p.89. Texto acessível também pelo site: http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=902&Itemid=69