Sobre a Correspondência entre Jorge de Sena e João Gaspar Simões

O mais recente volume de correspondência tendo Jorge de Sena como protagonista — aquela trocada com João Gaspar Simões, organizada por Filipe Delfim Santos e lançada em Lisboa em fins de maio/2013 — mereceu a recensão assinada pelo Prof. George Monteiro abaixo transcrita, na sua tradução em Português. No original, em Língua Inglesa, pode ser lida na edição de 9 de julho de 2013 do Portuguese American Journal.

 

Jorge de Sena / João Gaspar Simões, Correspondência 1943-1977.

Org. Filipe Delfim Santos, Lisboa: Guerra e Paz, 2013, 261 pp.

 

Em minha opinião foi particularmente adequado que o lançamento público deste livro tivesse ocorrido no Grémio Literário, essa venerável instituição fundada em Lisboa, segundo se diz, por Eça de Queiroz: há mais de 40 anos, ou para ser mais exato no verão de 1980, fui convidado para lá almoçar por João Gaspar Simões, que eu conhecera três anos antes em Providence, Rhode Island, quando ele foi orador convidado no Simpósio Internacional de Estudos Pessoanos da Brown University, que decorreu entre 7 e 8 de outubro desse ano. Comemos praticamente sozinhos, no grande salão do restaurante do Grémio. Ele pediu desculpas pela falta de comensais. Pouco depois, para ser mais preciso a 15 de julho, eu tentaria marcar o evento num curto poema intitulado “Rua Ivens, n.º 35”:

 

Dizem-me que o Grémio Literário
fervilha de memórias;
e o quadro no bar,
discretamente exibindo o grupo
de seus fundadores (com seus nomes
lembrando aquelas
personalidades) amplamente
testemunha seus inícios,
sua durabilidade. É famoso,
também, por Eça e outros.
“Mas os escritores não estão
mais vindo aqui, só eu”, diz-me
Gaspar Simões.
“Eu não sei para onde eles estão
 indo agora”. Ele se resigna. [1]

 
Se o Grémio ainda estava enfrentando tempos difíceis, seis anos após a revolução de 1974, na mesma situação encontrava-se esse último dos moicanos, Gaspar Simões. Ambos eram vistos como resquícios de um passado que seria melhor esquecer, ou pelo menos não evocar. Porém, ambos resistiram. Gaspar Simões continuou fiel à missão que há muito assumira ao serviço da cultura portuguesa, especialmente da literatura. Exemplo disso é o modo como promoverá ainda a publicação da tradução inédita que Pessoa fizera de A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne: quando, em uma visita posterior a Lisboa, ao pesquisar os papeis da Pessoana da Biblioteca Nacional, deparei com o datiloscrito dessa tradução, o primeiro a quem relatei minha descoberta foi Gaspar Simões, telefonando-lhe de imediato e perguntando-lhe se conhecia aquele texto. Disse-me que não, mas que deveria absolutamente ser publicado. Ligou-me pouco depois para me informar que já tinha reportado minha descoberta à editora Dom Quixote, e que eles estavam muito interessados na publicação, devendo eu telefonar-lhes — e assim fiz. O resto é história, como se costuma dizer, pois o livro foi publicado em 1988 e ainda está à venda.

Gaspar Simões visitou os Estados Unidos pela primeira vez em 1977, para participar como orador convidado no Simpósio Internacional de Estudos Pessoanos, a convite do Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University. Por muito tempo acreditei que fora aí que Sena e Simões se haviam reencontrado, após longos anos de distanciamento (esses “anos de afastamento” são repetidamente evocados nesta obra [128, 132, 153]). Porém, e tal como o presente livro me veio revelar, o primeiro reencontro teve lugar em Coimbra uns quatro meses antes, durante as comemorações do cinquentenário de fundação da revista presença. Na sequência do Simpósio Pessoano de Providence, Gaspar Simões visitou a Costa Oeste, onde, por iniciativa de Sena, proferiu conferências em diversas universidades, incluindo a Universidade da Califórnia em Santa Barbara, onde Sena era diretor de departamentos ou cursos. Seria o último encontro deles, Sena morreria em 4 de junho de 1978.

Imediatamente após a morte de seu marido, Mécia de Sena assumiu voluntariamente a gigantesca tarefa de manter viva a memória de Sena e de seus enciclopédicos contributos para a literatura, cultura e história portuguesas. Haveria que publicar livros e manuscritos inéditos, a par de novas edições de sua poesia, ficção e ensaios.  “[E]stou em Londres para fazer o mesmo que fazia em Santa Barbara,” explicou ela a Gaspar Simões em fevereiro de 1980, “ou seja, dedicar-me inteiramente à publicação da obra do Jorge, agora num ambiente, em certos aspectos, mais estimulante. Há seis ou sete livros no prelo (já em provas) pelo que a presença do Jorge será constante ainda por muitos anos futuros, uma vez que uns outros tantos, pelo menos, estão já em esquema preparatório.  E está longe de ser tudo, mesmo sem infindável arca.  Assim eu tenha vida, saúde e lucidez para realizar esta monstruosa tarefa” (168-69).  A alusão à famosa arca que continha o espólio pessoano é significativa, já que Mécia de Sena tinha um plano para ampliar o contributo de Jorge de Sena para a literatura e a cultura portuguesas: seguindo o exemplo dos intelectuais anglo-saxônicos, ela iria publicar, não uma antologia das cartas do marido ou um volume que todas coligisse, mas sim uma série de volumes de correspondência nos quais apresentaria monograficamente o carteio trocado entre Sena e as personalidades mais significativas de seu tempo. Convicto do seu valor histórico e literário, Jorge de Sena conservara sistematicamente cópias das cartas que enviara. Em maio de 1978 escreveu a Gaspar Simões que fora uma circunstância feliz não o ter encontrado em casa quando nesse dia lhe telefonara, pois o desencontro lhe permitira escrever aquela carta: “E foi melhor assim: porque, em lugar de, grata e comovidamente, lhe agradecer o seu artigo de viva voz, tenho oportunidade de o fazer nos escritos que ficam (quando não vão parar ao lixo por mão dos nossos herdeiros)” (139). Se a falta de papel-carbono lhe pode ter causado obstáculos para conservar essas cópias, estava fora de questão que seus herdeiros — pelo menos Mécia — jogassem algo fora. Pelo contrário, ela ampliaria o espólio: “Tenho andado a recolher a correspondência do Jorge em vista a uma publicação futura,” escreveu ela a Gaspar Simões, “não sei quando, mas pelo menos no intuito de a preservar e preparar em diálogo, como entendo que deve ser.  Não me lembro bem e não tenho comigo os arquivos, qual a extensão desta correspondência consigo, por isso lhe pergunto: tem cartas do Jorge?  Quantas?  Importa-se de me dar cópias xerox delas?” (179-80).

A obra aqui resenhada não faz parte, estritamente falando, da série de volumes que Mécia então organizou. O que não é de espantar, já que devido ao afastamento entre Gaspar Simões e Jorge de Sena — que se seguiria, ao que parece, a 1952, período durante o qual não existiram quaisquer contatos entre eles — não deveria haver material bastante que justificasse um volume para publicação. Foi por isso que Filipe Delfim Santos acrescentou, à correspondência disponível entre os protagonistas, algumas bem selecionadas resenhas que Gaspar Simões escreveu sobre a obra seniana, um conjunto de cartas de Mécia de Sena (e um testemunho dela), uma carta de Rui Knopfli, uma carta de Sena ao autor desta resenha, bem como o testemunho “A Conversa após um Longo Silêncio”, também pelo autor destas linhas. O livro abre com o ‘Estudo Introdutório’ elaborado pelo organizador da edição, que, ao longo de vinte e nove páginas, constitui um ensaio sobre o relacionamento entre Jorge de Sena e Gaspar Simões. Simplesmente com esta listagem de conteúdos não se pode fazer justiça à importância do livro para os estudos senianos, ou para um melhor conhecimento sobre Gaspar Simões.

Jorge de Sena via-se a si próprio como um homem perseguido, um Ismael, cuja mão estava “contra todo o homem, e todo homem contra ele” (Genesis, 16:12).  A sua prevenção e  seu azedume contra seus inimigos conheciam poucos limites e seu comportamento para com Gaspar Simões, durantes esses anos em que ele o considerou um seu adversário tão agressivo quanto ele próprio o era dele, não fugiu à regra. Por várias vezes manifesta sua agressividade, em algumas ocasiões de forma mais discreta mas igualmente reveladora: como exemplo, leia-se a sua entrada diarística de 5 de setembro de 1968, na qual anota com regozijo que certa fofoca ouvida a seu colega das letras Rodrigues Miguéis sobre a “companheira” de Gaspar Simões (como o organizador literário optou por designar a senhora) o ter abandonado por José Saramago, “pasmou-me e fez-me rir” (102).[2] Contudo, ainda mais malicioso que esse comentário sobre a vida privada, é o poema “Aviso à Circulação”, cuja composição Sena data de “13 Dez.o 70” mas que permaneceria inédito até 1991:

 

Se de um poeta dos últimos cinquenta anos
o Gaspar Simões escreve um elogio,
e eu estimo esse poeta, quedo logo
numa aflição por ele (o poeta):
que defeito haverá nessa poesia
para o Simões gostar tanto assim dela?[3]

 

Parece que Jorge de Sena esquecera aqui as resenhas generosamente favoráveis que Gaspar Simões escrevera sobre sua obra, a começar pela publicada em 1942, no Diário de Lisboa, sobre Perseguição, o seu livro de estreia poética, e que seguira resenhando intermitentemente a produção seniana ao longo das décadas seguintes. E essa não era tarefa fácil pois que Sena, mesmo quando seu trabalho era elogiado e avaliado criticamente de forma responsável, obtinha (desconfiamos) um grande prazer em “corrigir” qualquer detalhe importante ou alguma minudência que o resenhista tivesse deixado escapar ou, na opinião do autor, tivesse tratado erroneamente. Não é de espantar que até seu amigo Adolfo Casais Monteiro tivesse observado: “é muito difícil fazer crítica a um livro do Sena[4] — uma queixa que Filipe Delfim Santos adotou para epígrafe da obra que agora comento.

Porém, é espantoso que Sena, sempre impulsivo, pudesse ser desagradável para com outros que nada tinham dito ou escrito contra ele ou contra seu trabalho. Graças às investigações de Filipe Delfim Santos posso testemunhá-lo pessoalmente. Oito dias após ter respondido de forma cortês ao meu convite de dezembro de 1976 para participar no Simpósio Pessoano, ele respondeu a Gaspar Simões:

 

E agora um outro assunto, acerca do qual ia escrever-lhe por curiosa coincidência, para lhe remeter a carta que, datada de 2 de Dezembro, recebera do Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University (o centro cheira-me a criação recente, para contrabater o crescimento dos meus estudos portugueses na Univ[ersidade] da Califórnia, mas isso é o menos), e a minha resposta datada de 7 do corrente, porque lhe diz pessoalmente respeito. […] De ambas as coisas lhe remeto aqui cópias — e, no que se refere às entrelinhas da minha carta ao Dr. George Monteiro (que é, segundo os registos da Modern Language Association a que pertencemos mais ou menos todos os cerca de 28,000 professores universitários de inglês e línguas estrangeiras neste país, e da qual sou um dos dirigentes — 1974-78 —, catedrático de Inglês, o que tanto quer dizer que se dedica à lit[eratura] inglesa como à norte-americana ou a ambas), não preciso dar-lhe explicações nenhumas: à bon entendeur…  (114-15)

 

Queixar-se a Gaspar Simões não seria o suficiente, pois Sena prossegue dizendo que reportará esse tema a outrem: “Como devo, por razões oficiais, escrever ao Dr. José Blanco, da Gulbenkian, que sempre tem sido meu amigo, não deixarei de mencionar, à minha inteira responsabilidade, o caso, já que sei que ele provavelmente virá aos Estados Unidos” (115).  Refere-se depois a mim, sugerindo que uma resposta clarificando a incerteza que expressa lhe seria de alguma importância: “Monteiro (um luso-americano de não sei que geração)” (115).

Mas isto ainda não era nada, em comparação com a animosidade geral que  alimentava em relação aos seus presumidos inimigos. Em 3 de setembro de 1977, apenas nove meses antes de sua morte, em uma carta a mim dirigida (alguém que ele ainda nem conhecia) escreveu sem quaisquer reservas:

 

Foi muita gentileza sua, ao enviar o prospecto sobre sua recente coleção “Roads etc.”, informar que minha pessoa e meu trabalho eram referidos por vários professores vossos. Mas à parte o fato de alguns dos cursos que aí estão sendo dados não permitirem uma tal menção, eu sei perfeitamente, dessa lista de nomes, quem se referiria e quem não se referiria a mim. Em geral, canalhas e medíocres foram sempre meus jurados inimigos, não porque eu os tenha prejudicado em algo (pelo contrário, alguns até me devem o dinheiro que eu não tenho), mas simplesmente pelo fato de que eu existo como uma sombra de decência por sobre suas cabeças (e essa sombra irá permanecer, eles bem o sabem, adensando-se ainda mais quando eu morrer). [5]

 

Ismael — até à morte, e mesmo para além dela — com uma praga perpétua em seus lábios para aqueles inimigos fadados a sobreviver além dele.

            trad. Breno DOMIZZI

[*] George Monteiro é Professor da Brown University

[1] George MONTEIRO (1982) The Coffee Exchange, Providence, RI: Gávea-Brown, 48.

[2] Veja-se, porém, como esta entrada diarística aparece em Jorge de SENA (2004) Diários, ed. Mécia de Sena, Porto: Caixotim: “De todos os can-cans com que o Miguéis me cansou antecipadamente de Lisboa, um pasmou-me e fez-me rir: a do G. Simões abandonou-o pelo… Saramago” (173). Não sabemos se a entrada original coincide com a transcrição publicada nos Diários.

[3] Jorge de SENA (1991) Seis Poemas Inéditos de ‘Dedicácias’, Hífen 6 (fev.), 88; coligido em (1999) Dedicácias, Lisboa: Três Sinais, 55.

[4] Citação feita pelo próprio Jorge de Sena em 1946, registrada em Diários, 45.

[5] George MONTEIRO (2013) First International Symposium on Fernando Pessoa / Seven unpublished letters by Jorge de Sena, Pessoa Plural 3 (Spring), 132; online em http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/
pessoaplural/issues.html