Olhando a cabeça de Medusa…

A primeira edição de Metamorfoses completa 50 anos. Inaugurando na literatura portuguesa novecentista “um hábito e uma prática de convívio entre as diversas áreas da atividade artística” que, segundo Eduardo Prado Coelho, “está na base de alguns dos poemas contemporâneos mais sugestivos”, esse magnífico diálogo entre poesia e artes visuais tornou-se, possivelmente, o título mais conhecido e mais estudado da poesia de Jorge de Sena. Para assinalar o cinquentenário do livro, e a certeza de sua permanência como inegável “obra-prima”, aqui trazemos breves leituras de alguns poemas, sob o olhar de Luciana Salles.

 

 "Nu na praia de Portici", de Mariano Fortuny. Óleo sobre tela. I874. Madrid, Museu do Prado.
“Nu na praia de Portici”, de Mariano Fortuny. Óleo sobre tela. I874. Madrid, Museu do Prado.

 

São precisamente as ‘metamorfoses’ o que nos
permite olhar a cabeça de Medusa.

Jorge de Sena

 

Originalmente publicado como “Metamorfose”, em Fidelidade (1958), “Ante-metamorfose” é recuperado e renomeado em 1963, passando a ocupar a posição de primeiro poema, ou “ante-poema”, de Metamorfoses – o que faz com que já seja, a priori, uma negação de si mesmo, ao se converter de processo em preâmbulo.

 

Ao pé dos cardos sobre a areia fina
que o vento a pouco e pouco amontoara
contra o seu corpo (mal se distinguia
tal como as plantas entre a areia arfando)
um deus dormia. Há quanto tempo? Há quanto?
E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas,
quantos luares nas águas ou nas nuvens,
tisnado haviam essa pele tão lisa
em que a penugem tinha areia esparsa?
(…)
E os olhos? Abertos ou fechados? Verdes ou castanhos
no breve espaço em que o seu bafo ardia?
Mas respirava? Ou só uma luz difusa
se demorava no seu dorso ondeante
que de tão nu e antigo se vestia
da confiada ausência em que dormia?
(…)
Há quanto tempo ali dormia? Há quanto?
Ou não dormia? Ou não estaria ali?
(…)
– ou não estaria ali?… E um deus ou deusa?
Imagem, só lembrança, aspiração?
De perto ou longe não se distinguia. [1]

 

Não de divinas certezas, mas de dúvida ante a ambiguidade é feita a poesia de Sena. Num poema que ao mesmo tempo é metamorfose e ainda não, temos a imagem de um deus andrógino sobre o qual apenas interrogações são feitas e quase nenhuma afirmação é possível. Avistado num espaço que sugere uma praia, espaço em dúvida entre água e terra, a imagem vaga e provocadora que não se deixa conhecer de longe ou de perto, talvez se deixe conhecer por dentro. Por seu caráter impreciso e dúbio, enquadra-se perfeitamente no projeto da criação seniana, num mundo em que a dualidade não é apenas aceita, mas apreciada, porque afinal, em se tratando de um universo sonhado sob o signo da pluralidade e baseado no humano, todas as suas criaturas serão no mínimo duplas, visto que alimentadas originalmente pelos frutos de uma árvore proibida porque dupla, representando, sem maniqueísmos, a um só tempo o Bem e o Mal em cada uma de suas faces, em cada uma de suas maçãs. No universo seniano não é preciso optar por um ou outro, “deus ou deusa?”, homem ou touro, peixe ou pato.

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A construção de metáforas que permitam a conexão com o mistério, depende, necessariamente, de uma base humana de operação. É, por exemplo, eminentemente poético o exercício de comunhão que se dá através da analogia entre o pão – criação humana – e a carne de Cristo, ou entre o vinho – pisado pelos pés humanos a partir de um fruto da terra – e seu divino sangue. Essa poesia, entretanto, só é possível porque esse deus foi, em algum momento, carne e sangue como todos os homens. O Deus que não abre mão de sua divindade em troca de alguma humanidade, não pode verdadeiramente ser conhecido, experimentado. Permanece assim a uma segura distância do poético e da linguagem, o que é triste para quem se afirma antes de tudo como Verbo. Se a solução para todos os problemas da humanidade não está, para Jorge de Sena, no plano divino, e se o Eterno não deve ser buscado, mas apenas a eternidade possível que é “diferença de mundos” e se traduz em metamorfose, metáfora e analogia como formas de vencer o exílio, estabelecer o diálogo e buscar o conhecimento de si e do outro, vale lembrar, com Octavio Paz, que

 

a poética da analogia só podia nascer em uma sociedade fundamentada – e corroída pela crítica. Ao mundo moderno do tempo linear e suas infinitas divisões, ao tempo da mudança e da história, a analogia opõe, não a unidade impossível, mas a mediação da metáfora. A analogia é o recurso da poesia para enfrentar a alteridade.[2]

 

A dificuldade em conseguir realizar a comunicação ideal com outro, que seria i-mediata, isto é, sem mediação, torna necessário o uso da analogia como forma de possibilitar a aproximação entre os mundos. É dando forma concreta e palpável a esse esforço analógico que o homem constrói, por exemplo, as igrejas com suas grandes abóbadas mimetizando a celeste, e suas torres que se lançam em direção aos céus. E, confirmando que a analogia é a linguagem do mito, é através da construção de uma igreja em forma de poema que Jorge de Sena busca alcançar, não o diálogo com Deus, mas com a humanidade, através do diálogo analógico com a arquitetura que converte a “Nave de Alcobaça” em um dos mitos das Metamorfoses:

 

Vazia, vertical, de pedra branca e fria,
longa de luz e linhas, do silêncio
a arcada sucessiva, madrugada
mortal da eternidade, vácuo puro
do espaço preenchido, pontiaguda
como se transparência cristalina
dos céus harmónicos, espessa, côncava
de rectas concreção, ar retirado
ao tremor último da carne viva,
pedra não-pedra que em pilar’s se amarra
em feixes de brancura, geometria
do espírito provável, proporção
da essência tripartida, ideograma
da muda imensidão que se contrai
na perspectiva humana. Ambulatório
da expectação tranquila.
______________________________Nave e cetro,
e sepulcral resíduo, tempestade
suspensa e transferida. Rosa e tempo.
Escada horizontal. Cilindro curvo.
Exemplo e manifesto. Paz e forma
do abstracto e do concreto.
________________________________Hierarquia
de uma outra vida sobre a terra. Gesto
de pedra branca e fria, sem limites
por dentro dos limites. Esperança
vazia e vertical. Humanidade. [3]

 

Segundo Roland Barthes, “a significação mítica não é mais nem menos arbitrária do que um ideograma. O mito é um sistema ideográfico puro onde as formas são ainda motivadas pelo conceito que representam, sem no entanto cobrirem a totalidade representativa desse conceito.”[4] Como “ideograma / da muda imensidão que se contrai / na perspectiva humana” o mito construído para tornar a Nave de Alcobaça não mais uma representação divina e sim humana, guarda a idéia da igreja na forma do poema, mas remete, no deslocamento de seus versos, à forma da igreja, com seus vazios de “ar retirado” proporcionando “feixes de brancura” entre os versos que fazem da pedra “não-pedra” e verticalizando a “escada horizontal” que suas colunas, analogicamente vistas, representariam. Metamorfoseada em poema para escapar ao exílio e à morte, a igreja do mosteiro de Alcobaça não perde sua arcada, seu “vácuo puro do espaço preenchido”, sua ausência de “limites por dentro dos limites”. De “exemplo e manifesto” que fora do respeito dos homens a Deus e seu desejo em demonstrar sua devoção, a igreja se torna consciente de que a esperança de seus construtores é “vazia e vertical”, mas também de que é a forma concreta da “Hierarquia / de uma outra vida sobre a terra”. Testemunha flagrada em fulgurante momento de metamorfose que a faz inscrever-se no intervalo entre a “paz do abstrato e a forma do concreto”, para afirmar-se como forma concreta da Humanidade. Exemplo e manifesto de uma poética em que, por meio da analogia que promove as metáforas, as linguagens são reunidas em busca da linguagem mítica, primordial, que permita a comunicação da Humanidade ao homem, que permita à terra a lembrança de que é terra, que permita aos andróginos a liberdade de serem em si mesmos a celebração do religare das diferenças, metamorfoses incompletas e, por isso mesmo, tão efêmeras quanto eternas.

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Evitar que as obras de arte sejam “embalsamadas, neutralizadas e incensadas pelo establishment cultural” e “impedir que a classe dominante apague as chamas da cultura passada”[5] removendo desta sua herança de sinal de fogo, parece ser uma das motivações de Sena para a realização de suas Metamorfoses. Como esforço de retirada da camada de poeira secular que cobre os objetos estéticos por ele eleitos, o resgate das obras às armadilhas do tempo e da História é sem dúvida uma bela maneira de lutar “para que elas sejam tiradas do conformismo que as ameaça”. Ou pior ainda: do esquecimento. Através da recuperação do caráter subversivo de algumas peças, e, claro, da forçada subversão de outras tantas possivelmente bem comportadas até que se lhes dê voz e direito a discurso, os indivíduos por trás das coisas são de alguma forma também recuperados; sinais de fogo que foram um dia, qual fênix tornam a ressurgir de sua condição de cinzas. Fundamentalmente irônicas, porque a um só tempo recuperam o sentido original das obras por sua rememoração e o desconstroem pela imposição de novos sentidos, as transformações sofridas pelas imagens nos poemas das Metamorfoses senianas convertem artes visuais em arte verbal mas não só, posto que a palavra consegue, sendo outra coisa completamente diferente, guardar em si ainda a memória do traço, da cor, do objeto que especula e reinventa. Estruturalmente irônicas, como os românticos sonhavam que a arte deveria ser, as metamorfoses provocadas pelo espelho de Jorge de Sena surgem como quadros de palavra que, não sendo mais o quadro, ou a escultura, ou a fotografia, ou o monumento arquitetônico, ainda o são, sendo o outro e o mesmo, a memória e a releitura, a homenagem e a destruição que a converte necessariamente em ruína que dê origem ao novo. Como exemplo da ação desse perverso espelho, vejamos o retrato que faz, em Metamorfoses, do retrato de “Eleonora di Toledo, granduchessa di Toscana, de Bronzino”:

 

Pomposa e digna, oficialmente séria,
é geometria ideal de príncipes banqueiros,
sobrinhos, primos, tios de toda a Europa,
de reis, senhores de terras e armadores,
severamente equilibrados entre
o sexo, a devoção e as hipotecas.
O mundo é um imenso cais de intolerância austera,
a que aportam escravos, pimenta, a caridade
à sombra de colunas sem barbárie gótica.
Na boca firme, como no olhar duro,
ou no cabelo ferozmente preso,
ou nas imensas pérolas que se multiplicam,
ou nos bordados do vestido em que nem seios
se alteiam muito, há uma virtude fria,
uma ciência de não pecar na confissão e na alcova,
uma reserva de distante encanto
em que a Razão de Estado era um passeio altivo
por entre as árvores de um jardim areado,
com áleas racionais e relva em secção áurea.
Sem dúvida que os astros presidiram,
numa ciência de terra já redonda,
às próprias proporções que o quadro regem.
Palácios, festas, complicadas odes,
e procissões e cadafalsos e a
de um céu toscano limpidez que pousa no
pó e nas ruínas da imperial Toledo,
tudo isto se condensa em penetrante
tom de ocre vago, onde as cores se opõem
como teses tridentinas muito práticas
elaboradas com paciência para o descanso eterno
dos príncipes cristãos que se devoram sob
a paternal vigilância de uma Roma etérea,
guardada pelos suíços, por cardeais e frades.
A grã-duquesa – se o foi, não foi, de quem é filha,
de quem foi a mãe, ante um retrato assim
tão pouco importa! – fez-se pintar.
Mas a pintura era outra coisa, um escudo,
um escudo de armas e um broquel tauxiado,
para morrer tranquilo, quando a angústia brota,
como um vómito de sangue, do singelo facto
de ter-se ou não ter alma, os mundos serem múltiplos,
e o Sol rodar ou não em torno à terra inteira,
iluminando as multidões, as raças, tudo,
e os príncipes e os súbditos, nessa harmonia do mundo,
cujo estridor silente ao madrugar se ouvia
ranger discretamente, às portas dos castelos.[6]

 

No espelho pintado em que se mira a suposta grã-duquesa (“se o foi, não foi, de quem é filha, /de quem foi a mãe, ante um retrato assim /tão pouco importa!”), o que se vê objetivamente é apenas a “boca firme”, o “olhar duro”, o “cabelo ferozmente preso”, as “imensas pérolas que se multiplicam” e “os bordados do vestido em que nem seios se alteiam muito”. Talvez se possa inferir a “virtude fria”, “a reserva de distante encanto”, a “ciência de não pecar na confissão e na alcova”. “Pomposa e digna, oficialmente séria” e de “geometria ideal” podem ser tanto a modelo quanto a pintura. Todo o resto do que surge desse espelho como reflexo e reflexão é a análise de uma época da qual Eleonora di Toledo, que um dia sonhou-se imortalizada pela arte, é agora ícone. A pintura, como a modelo, é metamorfoseada pelo espelho seniano em irônica alegoria de um tempo em que a dúvida e a incerteza eram combatidas a todo custo, em que as navegações que aumentavam o conhecimento que se tinha sobre o outro alimentavam o ódio que originou a Inquisição, em que “o mundo é um imenso cais de tolerância austera,/ a que aportam escravos, pimenta, a caridade/ à sombra de colunas sem barbárie gótica” e em que, “numa ciência de terra já redonda”, as imprecisões ameaçadoras da natureza devem ser contidas “por entre as árvores de um jardim areado,/ com áleas racionais e relva em secção áurea” – lembremos afinal que o Éden não era uma floresta ou mesmo um bosque, mas um jardim belamente organizado em que a única fonte de dúvida ou incerteza ficava cercada pelo interdito. Há, sem dúvida, o reconhecimento de que “a pintura era outra coisa, um escudo,/ um escudo de armas e um broquel tauxiado,/ para morrer tranqüilo, quando a angústia brota, / como um vómito de sangue, do singelo facto/ de ter-se ou não ter alma, os mundos serem múltiplos, e o Sol rodar ou não em torno à terra inteira”.  Mas desse reconhecimento, o que nele existe de homenagem a uma obra de arte enquanto registro de uma época transborda em visão crítica de um passado tenso, angustiado, em que os cientistas andavam às voltas com a Igreja tentando implodir à força da razão as razões antigas e bíblicas da tranquilidade de um mundo controlado pelas mãos de Deus e em perfeita ordem. Desconstruindo a intenção do escudo metamorfoseado em arma contra as certezas artificiais de uma Verdade impossível, através do espelho de Sena a grã-duquesa se torna tão ambígua quanto uma nova (embora antiga) Mona Lisa.

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O diálogo presenciado por um leitor das Metamorfoses de Sena, diante do objeto-livro que as contém, é, na verdade, o possível entre poesia e fotografia, visto que o que todas as obras ali reunidas têm em comum, como única ligação concreta, é a sua reprodução fotográfica em preto-e-branco. O que nos remete à afirmação de Malraux, de que

 

a fotografia a preto e branco “aproxima” os objetos que representa, por pequena que seja a relação que exista entre elas. (…) objetos muito diferentes tornam-se parentes quando reproduzidos na mesma página. Perderam a cor, a matéria (alguma coisa do seu volume, a escultura), as dimensões. Quase perderam o que tinham de específico em benefício do seu estilo comum.[7]

 

Exercendo o papel de mediadora entre o leitor e as obras de arte, a representação fotográfica faz com que, ao menos, o diálogo pareça um só, entre Poesia e Arte, quando na verdade se dá entre as múltiplas possibilidades de um poeta do século XX e manifestações culturais e artísticas oriundas de lugares diversos e de diferentes épocas, quase todas, aliás, exiladas como o poeta, vivendo em museus estrangeiros a seu lugar de origem, e, no livro, amputadas de sua cor. Mais que um recurso editorial, portanto, a representação fotográfica das obras atua como um argumento simplificador do exercício de transfiguração poética proposto por Sena. Estariam, então, lado a lado em cada fragmento do livro, pares de representações ou de “comentários”, de cada objeto cultural escolhido pelo poeta. Contudo, também anterior ao livro, a poesia pode ser encarada como mais uma arte de que se tem nas páginas editadas apenas uma reprodução. O que significa que o jogo de espelhos que se desenrola entre a poesia e as outras artes só pode ser apreendido pelo leitor através de algum instrumento que de alguma forma diminua o seu impacto, como as chapas de raio-x ou os filmes velados que ajudam a ver um eclipse solar. Talvez o eclipse gerado pela sombra que a poesia faz sobre uma obra, aumentando significativamente o interesse sobre ambas ao resgatá-las do cotidiano esquecimento, da mesma forma como ocorre com a Terra e o Sol, seja uma ruptura da normalidade que não pode ser vista a olho nu. Sabendo que “são precisamente as ‘metamorfoses’ o que nos permite olhar a cabeça de Medusa”[8], precisamos ainda da proteção do lado opaco do espelho, se não quisermos virar pedra. É bem verdade que, para algumas obras, a fotografia em preto-e-branco não seria a única ou a primeira responsável pela perda de suas cores, afinal, como lembra Malraux,

 

quase todas as estátuas do Oriente eram pintadas, assim como as da Ásia Central, da Índia, da China e do Japão; a arte de Roma era, muitas vezes, de todas as cores do mármore. Pintadas eram as estátuas românicas, pintadas, na sua maioria, as estátuas góticas (e, em primeiro lugar, as de madeira). Pintados eram, segundo parece, os ídolos pré-colombianos, e os baixos-relevos maias. O passado, porém, na quase totalidade, chegou até nós sem cor.[9]

 

Independente do seu percurso, no entanto, quando composto por representações que tentam transformá-lo em unidade, o passado chega sem cor, estejamos tratando de uma estátua grega ou de uma peça de pintura contemporânea. A cadeira de Van Gogh, contudo, é amarela, mais a cada dia, amarela como seus girassóis, seus campos de trigo “infinitamente vastos sob o melancólico céu”, sua casa, sua loucura. Embora ausente da fotografia, a cor evocada desde os títulos do quadro e do poema – “A cadeira amarela, de Van Gogh” –, bem como todas as outras em que reside a força (por que não dizer, poética) do pintor holandês, atravessa a escrita como uma presença incontestável:

 

No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.
(…)
Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o “quantum satis”
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.
Não é, não foi, nem mais será cadeira:
apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.
Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?[10]

 

Van Gogh é lido por Jorge de Sena através de sua cadeira, de seu quadro, de sua assinatura. Dentro do jogo poético de dar voz aos objetos interrogados, em que aos poucos a metamorfose os vai tornando quase ideogramas, algo a meio caminho entre ser imagem e ser discurso, comprova-se pelo poema a idéia de que  “a cadeira isolada é como um ideograma do próprio nome de Van Gogh”.[11] Não sendo, entretanto, um objeto sem fala, Van Gogh participa do diálogo com mais do que uma cadeira humilde. Era alguém que escrevia sua pintura, transformava-a em cartas, num esforço de se fazer entender pela língua quando julgava que a pintura não resolvia o desejo de comunicar a sua dor, numa tentativa de tradução de si mesmo. Sobre a sua técnica, sua arte, registraria assim a sua reflexão:

 

Desenhar o que é? Como se lá chega? É o acto de abrir passagem através de uma parede de ferro invisível que parece colocada entre o que sentimos e o que podemos. Como deve atravessar-se tal parede, pois de nada serve bater-lhe com força, uma tal parede deve ser minada e atravessada à lima, lentamente e com paciência, na minha opinião.[12]

 

É, pois, lentamente que, verso a verso, a pintura de Van Gogh é penetrada pelo poema, abrindo passagem através da parede de ferro invisível que separa poesia e pintura, o finito e o infinito, Van Gogh e os outros homens – os “lúcidos” para quem o amarelo não aumenta todos os dias e corvos sobrevoando um campo de trigo são apenas corvos sobrevoando campos de trigo. Lá estão, no poema, a espessura da tinta que “empastela” o quadro, a “cor sem luz” de quem apreciava a ausência de sombras da pintura japonesa, a consciência de que o assunto tratado na pintura “Não é, não foi, nem mais será cadeira: / apenas o retrato concentrado e claro / de ter lá estado e ter lá sido quem / a conheceu de olhá-la como de assentar-se”, o “nome de corvo”, apenas Vincent, repetido com a intimidade de quem se conhece bem, de quem já se acostumara a viver na leprosaria inspecionando as feridas alheias. A forma pela qual a pintura de Van Gogh se faz explícita, no exagero das cores, na aspereza da tinta sobre a tela, na utilização de diferentes fontes de luz ao mesmo tempo, e que impede a ilusão de realidade, como se gritando em cada pincelada o desnecessário aviso de que “isto não é uma cadeira”, é o exercício pleno de uma pintura que se sabe pintura, e que por isso mesmo desperta o interesse de poeta que se sabe poeta. No diálogo com “A cadeira amarela”, o que surge como realidade é uma imagem de cadeira que guarda em si um autorretrato, um espelho para outros, uma teoria sobre a arte, uma postura com relação à vida, e uma absoluta certeza de que um poema é um poema, um quadro é um quadro, uma cadeira, um girassol. Uma declaração, um apelo, uma tentativa de diálogo. Ponte para o outro, para o humano, para a Humanidade.

 

 

NOTAS:

[1] Poesia II, p. 37 (ver também p. 53)

[2] Octavio Paz, Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.100

[3] De Metamorfoses (1963), in: Poesia II. 2ed. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 79.

[4] Roland Barthes, Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993. p.148.

[5] Michael Löwy. Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. pp. 79-80

[6] Poesia II, p. 99-100

[7] André Malraux, “O Museu Imaginário”. In:—. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 22

[8] Jorge de Sena. Poesia II. 2ed. Lisboa: Edições 70, 1988. p.157

[9] André Malraux. “O Museu Imaginário”. In:—. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 40

[10] Poesia II, p.113 [11] André Malraux. “O Museu Imaginário”. In:—. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 114 [12] Van Gogh apud Antonin Artaud, Van Gogh: o suicidado da sociedade. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. p.33

 

 

*Luciana Salles é Professora de Literatura Portuguesa da UFRJ e autora de Poesia e o Diabo a Quatro: Jorge de Sena e a escrita do diálogo (Ed. Livronovo, 2009 – tese de doutorado vencedora do Prêmio Capes, 2010).