“Nada há neste mundo que seja intraduzível” – Jorge de Sena e a tradução de poesia

Neste artigo, Joana Meirim se debruça sobre uma vertente ainda pouco estudada da obra seniana: as suas traduções. Ao longo de sua vida, Jorge de Sena traduziu diversas obras dos mais diferentes autores, em poesia e em prosa. Em poesia, são famosas as coletâneas Poesia de 26 séculos (de Arquíloco a Nietzsche) e Poesia do século XX, nas quais o autor se empenhou em traduzir línguas tão díspares quanto grego e japonês. Joana Meirim, então, procura identificar uma teoria seniana sobre a tradução, revisitando o que o poeta escreveu sobre o assunto e as repercussões críticas de seus textos traduzidos.

Joana Meirim*

As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem esquecidas noutras, morrem todos os dias na gaguez daqueles que as herdaram: e são tão imortais que meia dúzia de anos as suprime da boca dissolvida ao peso de outra raça, outra cultura. Tão metafísicas, tão intraduzíveis, que se derretem assim, não nos altos céus, mas na caca quotidiana de outras.

Jorge de Sena, “Noções de linguística”

O trabalho de Jorge de Sena como tradutor é, como assinalou Frederick G. Williams, “uma das suas dimensões menos estudadas” (Williams, 1999, p. 117)[1], aspecto inusitado se tivermos em conta que Sena traduziu um grande número de obras de diferentes gêneros literários e de diversas línguas e que o número de poemas traduzidos não se afasta muito do da sua criação poética (Williams, 1999, p. 122). Quanto à poesia, é este o corpus das traduções em volume: “Poesia, 5 volumes: 90 e mais Quatro Poemas de Constantino Cavafy (1970), Poesia de 26 Séculos (1972), inicialmente publicado em dois volumes, Poemas Ingleses de Fernando Pessoa (1974), Poesia do Século XX (1978), e 80 Poemas de Emily Dickinson (1979)” (WILLIAMS, 1999, p. 118).

Descreverei, em seguida, aquilo que entendo como a s teorias senianas sobre tradução de poesia e farei o escrutínio do lugar que esta atividade ocupa no meio da sua vasta obra enquanto poeta, crítico, contista, dramaturgo, professor universitário e pai de nove filhos. Este apontamento biográfico não é supérfluo na história de um escritor que tantas vezes sublinhou o seu trabalho hercúleo e incomensurável e a difícil compatibilidade de tantas tarefas, como deixou bem claro no poema “Lamento de um pai de família”, em 40 anos de Servidão.

Começo por sublinhar a curiosa ausência de menção à atividade de tradutor na nota biográfica que Sena escreveu para o volume monográfico de O Tempo e o Modo. Sob o título “Quem é Jorge de Sena (à maneira de Curriculum)”, ficamos a conhecer episódios significativos do seu percurso de vida, o início da sua atividade literária e a sua integração no meio literário português, algumas das suas viagens europeias, a publicação das suas obras e o seu percurso acadêmico. No final, Sena destaca ainda a participação em congressos e, por último, a tradução da sua poesia para espanhol, francês, inglês, alemão, croata e lituano (SENA, 1968, p. 309). Apesar de não se referir à sua faceta de tradutor neste texto, gostaria de sublinhar que há várias referências à atividade de tradutor de prosa e de versos noutros textos de caráter autobiográfico. Revela-se particularmente profícua a leitura dos seus diários e da sua vasta correspondência[2], nos quais encontramos inúmeros apontamentos dedicados à preparação e edição de várias obras traduzidas. Nos seus diários, são várias as entradas que dão conta de manhãs e noites dedicadas à tradução e à revisão de provas. Se nalguns casos, sobretudo de prosa, é visível que esta atividade lhe “rouba” tempo para outras tarefas a que gostaria de se dedicar com mais calma, e é feita nos intervalos de tantos outros afazeres, há momentos em que a satisfação e o gozo suplantam a necessidade. É o que Sena nos diz a propósito da tradução de The Sun Also Rises: “Traduzi Hemingway até se me acabar o papel habitual” (SENA, 2004, p. 135) e “Tenho continuado, como ontem, a traduzir afincadamente, com infinito gozo, o Hemingway” (SENA, 2004, p. 138). No caso particular da tradução de poesia, é notória a relação contígua entre a criação poética de Sena e a sua atividade enquanto poeta-tradutor, aspecto importante para a caracterização da teoria seniana da tradução. A seguinte passagem do seu diário é um exemplo da proximidade (e quase contaminação) destas duas atividades: “E desatei a traduzir poemas de Elena Bono que acho admiráveis na sua despojada e firme simplicidade. Li, pelo telefone, estas traduções ao Zé[3], que achou muito belos os poemas. Concluí um pequeno poema, cujo início (de quando?) encontrei nas costas de uma tradução” (SENA, 2004, p. 135).

A reflexão teórica de Sena incide sobretudo na tradução de poesia, havendo uma clara diferença hierárquica entre a tarefa do tradutor de prosa e a tarefa do tradutor de versos. A este respeito não é despiciendo o comentário parentético de Jorge Fazenda Lourenço no ensaio “Redimir Babel”, referindo as traduções de poesia como aquelas que “escapam a qualquer condicionalismo financeiro” (LOURENÇO, 2002, p. 110). Se já aqui é óbvia uma atitude hierarquizante, é ainda mais evidente o parti pris de muitos escritores e críticos contemporâneos de Sena, como é o caso de João Gaspar Simões, que na recensão a Poesia do Século XX associa a tradução de poesia a um ato gratuito, ao passo que a tradução de prosa é fruto de mera necessidade pecuniária. Sena é, então, louvado pelo fato de se ter consagrado “intensamente, à tradução – tradução de poetas, que é um acto gratuito, não tradução de prosadores (romancistas), que é um acto interessado, um ganha-pão” (SIMÕES, 1979, p. 468).

Nas reflexões de Sena, não é tão evidente este parti pris, mas parece-me óbvia a sua preferência pela tradução de poesia como atividade mais nobre, e também mais merecedora de reflexão, ocupando lugar conspícuo nos vários textos teóricos sobre o assunto. Sena reflete sobre a tradução de versos desde muito cedo (o primeiro texto a ser analisado é de 1953). Por me parecer produtivo, dividirei os textos a analisar em dois grupos principais: por um lado, os primeiros artigos publicados em periódicos esclarecem a perspetiva de Sena sobre a tradução de poesia (“Sobre traduções, umas breves notas”, de 1953; “Traduções de versos”, de 1956; e “Forma, conteúdo e tradução”, de 1974). Por outro lado, as notas de abertura e prefácios às antologias de poesia traduzida (Poesia de 26 séculos e Poesia do Século XX) são reflexões que decorrem também da sua experiência de tradutor, nas quais há indicações mais precisas dos critérios que regeram as suas traduções e do propósito geral de publicar estes volumes.

Numa carta de 15 de novembro de 1973 a Carlo Vittorio Cattaneo, Sena critica o famoso comentário de Robert Frost acerca de uma possível definição de poesia: “It is that which is lost out of both prose and verse in translation” (FROST, 1959, p. 331). O excerto desta carta é particularmente relevante, porque nele se apresentam, de forma sistemática, alguns dos principais argumentos de Sena sobre a tradução de poesia, um deles particularmente caro aos estudos de tradução: a difícil dissociação forma/conteúdo.

Caríssimo Carlo Vittorio
Quanto às traduções, se elas, meu caro, lhe deram a impressão de não serem os seus poemas, por certo é porque serão más… Eu não tive a mesma impressão quando me li nas suas. Também pode ser que V. se prenda muito mais ao específico som das palavras e mesmo à escrita imagem delas do que eu. Ainda que o som faça parte do que importa num poema, sempre isso é parte do que sinto querer dizer, e mais importante para mim é isto do que aquilo. Outra língua é sempre outra e soa diversa: mas eu cada vez mais creio que os «efeitos» sonoros então são o que, não transponível, importa menos, ou torna uma poesia mais provincial. No meu ódio a todos os nacionalismos, creio que começo a odiar até as próprias línguas enquanto tais, refúgios da incomunicabilidade humana. Os poetas e críticos que têm dito que a poesia é o que se perde na tradução são os que, no fundo, ainda querem crer na «magia» da linguagem, no mito religioso dela – que eu odeio também. Posto isto, há coisas intraduzíveis – mas não será que nunca temos a paciência suficiente para inventar o que as traduzisse? Outro problema – e é o que sucede comigo – é V. ser difícil porque domina a sua língua e joga com ela de uma maneira que o meu entendimento do italiano não chega quando se trata de traduzir (ler é outra coisa). Outros poetas que traduzi… traduzi só o que entendia, e deixei de parte os poemas que menos entendia para traduzi-los. (SENA, 2013, p. 275-276)

Neste excerto, referindo-se às suas traduções de poemas de Carlo Vittorio Cattaneo, Sena defende três argumentos essenciais. Em primeiro lugar, abdica do critério fonológico da tradução de poesia, considerando que é mais importante traduzir aquilo que se diz (sendo possível transpor os sentidos conotativos do poema) do que depender demasiado dos “efeitos sonoros”. De seguida, defende a traduzibilidade da poesia como reação ao provincianismo, que compromete a comunicabilidade humana. Por esta razão, Sena repudia veementemente o famoso adágio de Frost (“Os poetas e críticos que têm dito que a poesia é o que se perde na tradução”), recusando ficar do lado dos que têm medo de traduzir. Finalmente, Sena deixa claro um dos critérios fundamentais da sua atividade enquanto tradutor de outros poetas: traduz apenas aquilo que lhe é inteligível e que os seus conhecimentos linguísticos permitem[4].

Vinte anos antes desta carta, Sena escreve um pequeno artigo, publicado no suplemento de O Comércio do Porto, em 24 de novembro de 1953. Mostrando-se cético em relação à pertinência do célebre aforismo italiano Traduttore, traditore, que parece condenar à frustração qualquer tentativa de tradução, apresenta a sua crença absoluta na traduzibilidade dos textos, e em particular do texto poético. Os vários textos de Sena problematizam, como já referi, uma das questões centrais dos estudos de tradução de poesia: “(ii) poetry is difficult, cryptic, ambiguous and exhibits a special relationship between form and meaning” (Jean Boase-Beier, 2009, p. 381). Sena reage, neste artigo de 1953, contra os partidários da impossibilidade da tradução que se servem do argumento da indissociabilidade sentido/sonoridade, forma/conteúdo. Considera que tal argumento, para ser coerente, também se deveria aplicar ao texto em prosa: “Não vejo, francamente, por que razão se não leva – e não leva – a coerência ao ponto de aceitar que, sendo impossível traduzir-se poemas, igualmente será traduzir-se prosa” (Sena, 2008, p. 40).

Na introdução a The Penguin Book of Modern Verse Translation, George Steiner também se opõe, de forma explícita, ao adágio de Frost (cf. Steiner, 1966, p. 21). Reconhece a falibilidade do ato de traduzir, mas, à semelhança de Sena, defende a traduzibilidade da poesia. Mesmo admitindo que a tradução de versos implica mais riscos e pode até causar mais danos, entende os argumentos contra a tradução de poesia como sendo contra a tradução em geral.

There are no total translations: because languages differ, because each language represents a complex, historically and collectively determined aggregate of values, proceedings of social conduct, conjectures on life. There can be no exhaustive transfer from language A to language B, no meshing of nets so precise that there is identity of conceptual content, unison of undertone, absolute symmetry of aural and visual association. This is true both of a simple prose statement and of poetry. (Steiner, 1966, p. 23)

Retomando o texto de Sena, nele é apresentada uma das ideias nucleares da teoria seniana sobre poesia e sobre tradução: ambas as atividades (a criadora e a tradutora) devem ser uma forma de superar a confusão de Babel e favorecer o convívio entre os seres humanos: “porque havemos de aceitar de boa mente, ou com altiva e solipsística suficiência, a confusão de Babel? Porque não havemos de redimir este castigo pela tradução?” (Sena, 2008, p. 41). A ideia de redenção de Babel subjaz, aliás, ao projeto poético de Sena, e o paralelismo com a sua atividade de tradutor foi justamente notado por Jorge Fazenda Lourenço no ensaio já referido: “Daí que Jorge de Sena conceba a sua criação verbal como uma arte de traduzir-se para português, entendendo as suas traduções […] como um convívio de testemunhas […].” (Lourenço, 2002, p. 110)

No que toca à tradução de poesia, quer Steiner quer Sena consideram-na difícil, mas possível, e esta possibilidade é defendida veementemente, porque é ela a resposta à confusão babélica, facilitadora do convívio entre as pessoas e da inteligibilidade universal. Também Steiner defende a tradução como um aspecto próprio do humano e o paralelismo com Sena é flagrante: “Without it we would live in arrogant parishes bordered by silence” (STEINER, 1966, p. 25); “But the attempt to translate must be made, the risks taken, if that tower in Babel is to be more than ruin” (STEINER, 1966, p. 29).

Num artigo posterior, “Traduções de versos”, publicado no Diário Popular em 1956, a propósito da publicação de Verse in Translation, de Siepmann, Sena reitera um dos argumentos essenciais na defesa da tradução. Considera que as atitudes face a ela “correspondem a determinadas filosofias da vida” (SENA, 2008, p. 51), havendo essencialmente duas correntes: aqueles que traduzem malogradamente, não conseguindo comunicar; e outros que traduzem sem culpa e crentes no êxito da comunicação (cf. SENA, 2008, p. 51). É neste grupo que Sena se insere.

Anos mais tarde, no ensaio “Forma, conteúdo e tradução”, publicado no Diário Popular, em 1974, Sena detém-se, mais do que nos outros dois artigos, na discussão de vários argumentos favoráveis à traduzibilidade da poesia, recuperando as ideias apresentadas na carta de 1973 a Carlo Vittorio Cattaneo. Volta a defender a traduzibilidade de tudo, contra a ideia da “magia das palavras” (como chama pejorativamente à sua peculiaridade fonológica), contra o “provincialismo” e contra aquilo que entende ser a superstição dos que consideram que a poesia se perde na tradução.

A chamada magia das palavras, a música peculiar de cada língua, eis o que não é senão um resultado de isolacionismos culturais que pretendem pelo provincialismo defender-se, quer de serem esmagados pelo imperialismo de outras culturas, quer de se dissolverem no intercâmbio humano supra-linguístico. Se uma música evoca, numa língua, certas associações, haverá noutra uma equivalência para elas. Sem dúvida que essa música é, em cada obra literária, parte inseparável da estrutura – mas o recriá-la noutra é a obrigação do tradutor. Não há traduções impossíveis: o que há é, por um lado, superstições, e, por outro, tradutores maus ou preguiçosos. (SENA, 2008, p. 129; itálicos meus)

A passagem acima transcrita é particularmente reveladora dos princípios éticos de Jorge de Sena como tradutor: a procura das equivalências e a recriação do poema original numa outra língua são deveres do tradutor. A preocupação em encontrar “equivalências” é recorrente nos textos teóricos de Sena sobre tradução, considerando esta procura uma forma de o tradutor ser fiel (não sendo uma fidelidade servil, mas sim criativa). A sua desconfiança em relação ao aforismo italiano Traduttore, traditore está relacionada com a maneira de encarar a fidelidade como uma questão crucial no código deontológico de um tradutor. A fidelidade e o testemunho, aliás, como explicou no primeiro prefácio a Poesia I (a que o artigo de Jorge Fazenda Lourenço alude), são termos caros ao seu projeto poético e definem igualmente a sua maneira de encarar a tradução de poesia. Neste mesmo ensaio, a ideia de fidelidade como argumento central da teoria seniana de tradução, que tende a recusar a estranheza, é encarada contraintuitivamente, defendendo Sena que uma tradução não implica a criação de um outro texto – o poema é o mesmo, ainda que esteja numa outra língua: “Essa criação de um outro [poema] é simplesmente uma desnecessária imitação […]. Traduzir é criar noutra língua, não outro poema, mas o mesmo. […] Porque a tradução tem por fito recriar noutra língua uma dicção que se realizou numa outra” (SENA, 2008, p. 131).

À ideia de recriar noutra língua, Sena considera ainda a necessidade de encontrar um estilo equivalente. Na introdução a 80 Poemas de Emily Dickinson apresenta também o mesmo argumento: “traduzir não é fazer poesia nossa com a poesia dos outros, mas fazer com a nossa língua o que uma Emily Dickinson teria feito e dito se, em português, experimentasse idêntico poema” (SENA, 2010, p. 29). Na recensão a este volume, João Almeida Flor comenta precisamente o fato de Sena “levar até às últimas consequências práticas” (FLOR, 1984, p. 474) estes pressupostos teóricos, tomando opções discutíveis, do ponto de vista da tradução, na procura dessas “homologias adequadas” (FLOR, 1984, p. 474) à poética de Emily Dickinson.

No ensaio “Poéticas da tradição poética”, Maria Eduarda Keating defende que muitos poetas-tradutores portugueses, exemplificando com os casos de Vasco Graça Moura, Jorge de Sena e Fernando Pessoa, têm tendência a privilegiar a fidelidade formal e semântica dos poemas originais em detrimento da estranheza: “A procura de equivalências e de transposição fiel de uma poética toma assim caminhos diversos que, em última análise, se encontram numa espécie de naturalização poética […], tornando familiares ao leitor português os poemas originalmente escritos noutras línguas” (KEATING, 2005, p. 53).

A preocupação de Jorge de Sena em adequar o estilo do autor de origem à língua portuguesa está também presente num artigo intitulado “A tradução inglesa de Os Maias”, publicado no Diário de Notícias em 1966. Sena retoma a tese essencial da traduzibilidade de tudo, enquanto forma de entendimento humano: “Nada há neste mundo que seja intraduzível: o que é muito difícil é ter-se, da própria língua para que a tradução é feita, um agudo sentido estético e renovador” (SENA, 1999, p. 165, grifo no original). Nesta recensão, Sena critica a pretensa “preguiça” do tradutor de Os Maias por não “procurar autênticos equivalentes de um estilo diverso” (SENA, 1999, p. 165), fazendo passar Eça por um Dickens menor. Esta preocupação de Sena em traduzir a poesia dos outros com a finalidade principal de ser lida como se tivesse sido escrita na língua para que se traduz está nos antípodas da visão de Friedrich Schleiermacher. Segundo Schleiermacher, o tradutor, ao tentar naturalizar um livro de uma outra língua, está a privar o leitor do conhecimento do outro e do estrangeiro: “Pode de facto dizer-se que o objectivo de traduzir como se o próprio autor tivesse escrito na língua da tradução é não apenas inalcançável, mas também em si mesmo negativo e vazio” (Schleiermacher, 2003, p. 113).

Incluí, no segundo grupo de textos a analisar, as notas de abertura e as introduções aos volumes de poesia traduzida. Repetem-se nelas alguns dos argumentos já apresentados, mas o tom e a noção mais clara de que se escreve para um destinatário específico são diferenças significativas. Na introdução a Poesia de 26 Séculos, Sena revela a principal motivação desta obra, que resulta da sua “voracidade poética” (Sena, 1993, p. 17), mas também da sua atitude ética (dar testemunho do mundo e ser-lhe fiel): representar “toda a grande poesia deste mundo”, “em que Arquíloco, um poeta sânscrito e Nietzsche se dão as mãos, no mesmo saber essencial de que a poesia é tudo” (Sena, 1993, p. 17). A sua atividade como tradutor de poesia (de que as duas magnas antologias Poesia de 26 Séculos e Poesia do Século XX são dois importantes exemplos) é ainda uma forma de Jorge de Sena se inscrever na tradição poética.

Na introdução a Poesia de 26 séculos, Sena apresenta a ideia central de grande parte dos seus textos teóricos sobre tradução: a crença inabalável na traduzibilidade, na comunicabilidade, na universalidade da poesia, contra o provincianismo do mundo (mas também de Portugal). Parece-me, porém, que não é alheio ao projeto poético de Jorge de Sena a vontade de pertencer não só à humanidade, mas também à tradição literária. Algumas passagens da nota de abertura a Poesia de 26 séculos evidenciam que o gesto de traduzir poesia é, para Sena, uma forma de se inscrever na história da poesia, tentando dilatar a pequenez geográfica da literatura portuguesa que tantas vezes assinala. Vejamos dois exemplos:

Evidentemente que quem, durante décadas, dedica à tradução de poemas das mais diversas proveniências uma parte da sua paixão criadora, não foi didacticamente e para ajudar a compensar algumas ignorâncias pátrias que as fez e as publicou ou publica. E sim pelo gosto de fazê-las e de, tendo-as feito, comunicar aos outros o seu prazer do convívio com a poesia de sempre. (Sena, 1993, p. 8; itálicos meus)

Assim, uma imensa viagem por vinte e sete séculos de poesia, postos em português no acaso de encontros tradutórios […] recorda ao público interessado uma modernidade de sempre, do mesmo passo que lhe permite conviver com poetas e poemas de outras línguas que acaso ignore. Aos poetas, quanto de poesia se traduza pode ajudá-los a sentirem-se, no concreto da linguagem, mais parte de um processo milenário que nunca conheceu fronteiras apesar da diversidade das línguas, e, portanto, mais integrados nessa coisa estranha que é a humanidade. (Sena, 1993, p. 9; itálicos meus)

A tradução de poesia é também entendida como manifestação da vontade de apuramento da técnica poética. Jorge de Sena reconhece parcialmente as vantagens de se ser poeta e de se servir da atividade de tradutor como forma de aperfeiçoar o seu virtuosismo poético, ainda que veja mais vantagens para o leitor do que para o tradutor: “A tradução de poesia é, […] como toda a tradução que vise transpor com exactidão e respeito, uma admirável escola de experiência de expressão. E menos para quem as faz do que para quem as leia” (Sena, 2003, p. 21). Apoiando-se nesta mesma passagem, Ricardo Vasconcelos defende, num ensaio dedicado ao trabalho de Jorge de Sena como antologiador, que a motivação fundamental para traduzir é “a vontade de dominar novas formas de expressão, recriando na sua linguagem os textos de outros autores” (Vasconcelos, 2009, p. 233). As traduções de Sena “são feitas essencialmente com o desejo de desenvolver o seu próprio domínio das estratégias discursivas de outros autores e, por outro lado, das experiências estéticas de outros” (Vasconcelos, 2009, p. 233)[5].

Para Jorge de Sena, ser-se poeta é uma mais-valia para a atividade de tradutor, assunto frequente nas considerações teóricas de vários poetas-tradutores. É, aliás, o que nos diz no ensaio de 1956: “se o poeta que traduz é levado a ver a mais, quando o espírito crítico o não detém, o não-poeta vê sempre de menos, e não há ciência crítica que o salve” (Sena, 2008, p. 52). Nem todos os poetas que traduzem subscrevem esta opinião. Michael Hamburguer critica, numa entrevista, os tradutores que se servem da sua atividade como uma espécie de “trampolim” criativo. À pergunta sobre os limites da liberdade do tradutor, Hamburguer mostra reservas em relação aos tradutores que não separam nitidamente o trabalho de tradução de um texto do seu trabalho criativo. Para Hamburguer parece ser importante distinguir convenientemente as vozes do poeta e do tradutor no momento da tradução.

To me it’s not so much a question of liberties but of whether the translator is trying to impose himself on the text or whether he is trying to render the text. In order to render the text one may also take liberties, but there is a difference here between somebody who simply uses the text as a springboard for his own exercises and inventions and somebody who is thinking primarily in terms of the text he’s translating. I would say that I belong to the second category… (HAMBURGUER, 1980, p. 177)

Na introdução a The Oxford Book of Verse in English Translation, Charles Tomlinson problematiza a prescrição de Dryden – a de que todo o escritor (e também tradutor) tem de ser um poeta. Tomlinson faz notar que muitos tradutores só foram grandes poetas nas suas traduções e não fora delas (Tomlinson, 2003, p. 24). Defende que o tradutor seja poeta, pelo menos, enquanto traduz: “Certainly our great poets have often been great translators, but perhaps the safest minimum prescription is that the translator of poetry must be a poet so long as he is engaged in that act and art” (Tomlinson, 2003, p. 25).

Na verdade, muitas das críticas às antologias de poesia traduzida por Jorge de Sena enaltecem a sua faceta de poeta e o fato de ela ser uma mais-valia para a tradução, sendo poucas as críticas que refletem sobre o seu trabalho tradutório. Também aqui se revela o parti pris de João Gaspar Simões, na ideia de que só os poetas estão habilitados a traduzir grandes obras, menosprezando frequentemente a questão linguística. Volto a recordar que poucos se questionam acerca dos conhecimentos que Sena teria de tantas línguas que traduziu. Na recensão a Poesia de 26 Séculos, Luís de Sousa Rebelo assinala que nem sempre o domínio da língua do texto de partida é suficiente para fazer uma boa tradução, ficando a faltar, muitas vezes, aquilo que as traduções de Sena suprem: “ductilidade expressiva” e “inventiva estilística” (Rebelo, 1973, p. 455). Helder Macedo, por sua vez, sobre a tradução dos Poemas Ingleses de Pessoa, considera que a poesia traduzida só é “verdadeira poesia” se resultado de uma “genuína criação poética” (Macedo, 1976, p. 467). E João Gaspar Simões, na recensão já referida, louva o “virtuosismo de tradutor” de Sena (Simões, 1984, p. 472). Nestas críticas, a indissociabilidade das vozes poeta/tradutor não só não é problemática como é produtiva e fundamental para gerar poesia traduzida de superior qualidade estética.

No artigo “Jorge de Sena’s Dickinson”, de 1980, George Monteiro, comparando as traduções senianas de Dickinson, que considera fiéis à técnica e pensamento da poetisa, com as de Manuel Bandeira, consideradas traduções livres, sublinha um aspecto menos positivo da presença da voz poética de Sena nas suas traduções. A propósito do poema “Surgeons must be very careful”, comenta o fato de a dicção de Dickinson se perder, ocasionalmente, na tradução de Jorge de Sena. Para George Monteiro, não é a possível inépcia do tradutor que está em causa, mas o fato de o poeta Jorge de Sena deixar transparecer nas traduções a sua dicção poética. A tradução de “Surgeons must be very careful/ When they take the knife!” para “Cirurgiões, tende cuidado/ Com essa faca tão fina!” merece-lhe o seguinte comentário: “Dickinson’s poem presents itself more as an observation about surgery than as a warning. […] Sena’s is still a good poem, but one more in his direct-attack manner than in Dickinson’s oblique truth-telling style” (Monteiro, 1982, p. 27).

Num artigo recente, Rui Carvalho Homem defende que Sena propõe, quer nas reflexões teóricas sobre tradução de poesia, quer na sua prática tradutória, uma “síntese impossível” (Homem, 2022, p. 121) de duas visões sobre tradução difíceis de conciliar: de um lado a perspectiva do poeta-tradutor, cuja dicção se faz ouvir; do outro, alguém que quer reagir contra a subjetividade romântica, aspirando, “também através da traduçã o, a uma escrita de despersonalizaçã o e objectividade que vários dos seus leitores mais atentos (tão diversos quanto Joaquim Manuel Magalhães e José Augusto Seabra) associaram à marca da «impessoalidade» de Eliot” (Homem, 2022, p. 118).

De regresso à introdução a 26 Séculos de Poesia, Sena resume aí a ideia central dos textos teóricos comentados até ao momento, a saber, a crença inabalável na traduzibilidade, da comunicabilidade e da universalidade da poesia: “traduzir poetas de todos os tempos e vários lugares só é possível, se se acredita que a humanidade se sobrepõe a todas as barreiras não só da distância, mas dos misticismos e oportunismos fáceis, dos quais o mito da ‘intraduzibilidade’ não é o menor” (Sena, 1993, p. 19). Sena privilegia o critério da humanidade, e, contra aqueles que têm reservas quanto à fidelidade de uma tradução, responde: “se as línguas são tão especificamente ‘locais’, e os estilos tão inefavelmente pessoais, a ponto de uma efectiva tradução ser impossível, isso precisamente mostra a que ponto as línguas e os estilos são traduzíveis, já que a inefabilidade metafísica deles tanto depende do demasiado humano…” (Sena, 1993, p. 20).

Octavio Paz, num texto da mesma década intitulado “Traducción: literatura y literalidad”, dialoga de forma profícua com este entendimento da tradução como redenção de Babel. No artigo já referido de Alexandra Lopes e Maria Lin Moniz, foi notada a proximidade entre estes dois autores, ambos poetas e tradutores que encaram a tradução como facilitadora da comunicabilidade e da inteligibilidade universal (cf. Lopes & Moniz 2005, p. 181). Neste ensaio, Paz considera a tradução uma forma de promover a compreensão entre todos: “la traducción respondía con el ideal de una intelegibilidad universal a la diversidade de las lenguas” (Paz, 1990, p. 10). Defendendo a universalidade da poesia, considera possível preservar os sentidos conotativos dos poemas através da tradução: uma operação literária que implica sempre uma transformação do original (cf. Paz, 1990, p. 18). Assim, cabe ao tradutor a composição de um poema análogo ao original. Comparando a atividade do tradutor à do poeta, apresenta, porém, uma diferença essencial: ao escrever o poeta não sabe como será o seu poema; ao traduzir o tradutor sabe que o seu poema deverá reproduzir o poema que tem debaixo dos olhos (cf. Paz, 1990, p. 23). Também aqui me parece óbvio o paralelismo com as reflexões de Sena: “Traduzir é criar noutra língua, não outro poema, mas o mesmo” (Sena, 2008, p. 131)[6]. Aludindo a Valéry, Paz insiste na ideia de que a tradução deve obter efeitos análogos por meios diferentes. Numa entrevista posterior a este ensaio, volta a sublinhar esta ideia, reagindo ainda ao famoso adágio de Frost contra a traduzibilidade da poesia: “Translation is the art of producing, with different means, analogous effects. I think Valéry said something like that. Or, we can put it in a more radical way: translation is the art of producing, with a different text, a poem similar to the original” (Paz, 1976, p. 155).

Dois dos princípios da teoria seniana sobre tradução estão presentes nas reflexões de Paz: a traduzibilidade da poesia e a humanidade como critério absoluto para a tradução. A par destes dois perfilam-se outros que também configuram a reflexão tradutológica de Jorge de Sena, analisada ao longo do artigo: a fidelidade como princípio ético fundamental da sua atividade tradutora (e criadora), que consiste na procura incansável de equivalentes, de maneira a que o texto final (traduzido) possa soar como se tivesse sido escrito originalmente em português; a prática da tradução como forma de aperfeiçoar a técnica e o virtuosismo poéticos; e a tradução como forma didática de proporcionar o convívio com outras testemunhas do mundo, mas também com o objetivo de redimir o provincianismo português.

Referência

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FLOR, João Almeida. Jorge de Sena, tradutor de Emily Dickinson. In: LISBOA, Eugénio (org. e introd.). Estudos sobre Jorge de Sena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. 473-474.

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NOTAS

* Professora auxiliar convidada no Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT – NOVA FCSH), Lisboa, Portugal. E-mail: joanameirim@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1991-991X

1 Se há poucas reflexões sobre Sena tradutor de versos, o silêncio é ainda mais significativo quanto à tradução de prosadores. No ensaio “A importância de se chamar Ernesto. Consagrações, Bunburisms & Outras Perplexidades”, Alexandra Lopes e Maria Lin Moniz assinalam com estranheza este mesmo silêncio: “Havendo entre as reflexões senianas sobre a tradução prosástica e as versões poéticas tão estreitos laços e afinidades, estranho parece que a primeira tenha sido votada pela crítica ao limbo das actividades silenciadas” (Lopes e Moniz 2005, 179).

2 Na correspondência com Carlo Vittorio Cattaneo (tradutor de Jorge de Sena para italiano) e com Eugénio de Andrade (que acompanhou de perto a organização e edição das traduções de Cavafy e o volume Poesia de 26 séculos), há muitas cartas sobre a arte de traduzir segundo Jorge de Sena.

3 Referência a José Blanc de Portugal.

4 Em todas as suas reflexões, note-se que Sena raramente se refere à origem das suas traduções (se traduziu do original, se em segunda mão). Também é surpreendente que os textos críticos sobre as traduções de Sena poucas vezes mencionem este aspeto. Sabemos que a falta de conhecimento proficiente de algumas línguas não impede a tradução, podendo eventualmente diminuir o número de poemas traduzidos. Sena reconhece, por exemplo, que não domina o alemão (cf. “Traduções de versos”, de 1956) e que também tem dificuldades na tradução do russo (cf. introdução a Poesia do Século XX). Na correspondência com Eugénio de Andrade, a propósito da edição dos poemas traduzidos de Cavafy, Sena, apesar de reconhecer o seu “grego analfabetismo” (Sena e Andrade 2016, 214), menoriza ironicamente a falta de conhecimentos linguísticos face à monumentalidade das notas e comentários histórico-críticos: “Creio que ficará uma esplêndida edição (em língua nenhuma foram estudados assim) (…). A única coisa que poderão dizer é que não sei mais grego do que o que soletro…” (Sena e Andrade 2016, 201).

5 Ricardo Vasconcelos chega mesmo a aproximar as antologias de poesia traduzida aos livros Metamorfoses e Arte de Música, por entender que há uma “tentativa do autor de recriar na sua língua poética outros textos” (Vasconcelos 2009, 233).

6 Se o diálogo com os textos teóricos de Jorge de Sena se revela particularmente profícuo quanto à conceção geral de tradução, parece-me todavia que há diferenças assinaláveis no que diz respeito à atividade de tradutor. No ensaio em análise, Paz, ao contrário de Sena, não considera que ser poeta seja vantajoso para a atividade de tradutor. À semelhança de Michael Hamburguer, chama a atenção para o facto de que muitos poetas se servem, por vezes, do poema alheio como ponto de partida para escrever o seu: “en realidade, pocas veces los poetas son buenos tradutores. No lo son porque casi sempre usan el poema ajeno como un punto de partida para escribir su poema. El buen traductor se mueve en una dirección contraria: su punto de llegada es un poema análogo, ya que no idêntico al poema original” (Paz 1990, 20). Prefere, então, fazer a separação destas atividades, embora reconheça a sua eventual complementaridade: “El buen traductor de poesía es un traductor que, además, es un poeta (…); o un poeta que, además, es un buen traductor” (Paz 1990, 20).

FONTE: MEIRIM, Joana. “Nada há neste mundo que seja intraduzível” – Jorge de Sena e a tradução de poesia. Texto poético. v. 20, n. 42, p. 235-252, mai./ago. 2024.