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Por si e pelo outro: o testemunho de Jorge de Sena

Ampliando texto já publicado, o ensaísta ora nos propõe um estudo do poema “Os trabalhos e os dias”, do ponto de vista do “testemunho”, destacando suas implicações éticas na relação entre sujeito poético e leitor.

 

Jorge de Sena, desde seus poemas mais remotos, cultivou o alargamento e o aprofundamento de um projeto de mundividência testemunhal. O poema teria a função de construir esse testemunho, comprometendo-se com o conhecimento de si, do outro e do mundo, de maneira integradora, incluindo a figura de um “tu” hipotético que pode ser identificada e corporificada pelo leitor. Isso é visível, quase programaticamente, na epígrafe de seu primeiro livro de poemas, que serviu, conforme as próprias palavras do autor, como orientação para toda sua obra. Eis a epígrafe, do poeta espanhol António Machado: “No es el yo fundamental/ eso que busca el poeta,/ sino el tu esencial (Sena, 1988:67).”

Além desse início em que se destaca o outro como essencial para a feitura do poema, uma vez que o sujeito poético seniano busca em um primeiro momento “falar por outro”, para logo após o leitor sentir que Sena também intenta “falar com outro”, com esse “tu” suposto, fazendo com que o leitor se depare com uma subjetividade relacional, a qual se pode chamar de “testemunho”. Essa noção pode ser vista em um dos paratextos mais importantes de sua obra, o prefácio de Poesia I:

Testemunhar do que, em nós e através de nós, se transforma, e por isso ser capaz de compreender tudo, de reconhecer a função positiva ou negativa (mas função) de tudo, e de sofrer na consciência ou nos afectos tudo, recusando ao mesmo tempo as disciplinas em que outros serão mais eficientes, os convívios em que alguns serão mais pródigos, ou o isolamento de que muitos serão mais ciosos – eis o que foi, e é, para mim, a poesia (Sena, 1988: 26).

Nota-se a forte relação entre “testemunhar” e “poesia”. Essa aproximação é dada de maneira incisiva, e é por intermédio dela que surge a possibilidade de compreender as “funções de tudo”. Se em um primeiro momento testemunha-se, em seguida, compreende-se e amplia-se a própria consciência. Jorge Fazenda Lourenço pontuou de maneira esclarecedora acerca da tópica testemunhal:

Se a criação heteronímica pessoana, como a dos apócrifos de Antonio Machado, a das "máscaras" de W.B. Yeats, ou a das "personae" de um Ezra Pound, dava expressão a uma pluralidade ontológica, o facto é que essa forma ou técnica de apreensão da diversidade do real e transformava numa fórmula que afirmava um abismo intransponível entre a poesia e o vivido existencial. Com efeito, a "criação de personalidades", criaturas pretensamente autónomas em relação ao seu criador, nomeadamente na heteronomínia, radica na consideração de uma exterioridade do estético em relação ao vivido existencial, reconduzindo a uma, rejeitada por Jorge de Sena, esteticização da experiência. (Lourenço, 1998: 121).

Uma das características mais importantes e inovadoras deste testemunho seniano, conforme se pode depreender do texto de Lourenço citado acima, é a oposição ao “drama em gente” pessoano. Ao se desviar da despersonalização do célebre precursor, uma das características cimeiras e revolucionárias de Pessoa, Sena confere à sua obra um vetor que aponta para a discussão ética de maneira evidente, uma vez que testemunhar é incidir na realidade de maneira aberta, política e humana, evitar a esteticização como demonstrou Lourenço, ou seja, ampliar a consciência do mundo. Se em Pessoa, a estratégia rimbaudiana de tout sentir de toutes les manières foi eficiente para multiplicar as possibilidades de enunciação pelas máscaras da heteronímia; para Sena, o testemunho seria uma forma de concentrar a subjetividade no olhar singular de um autor que se depara com um eventual ouvinte (o leitor), sendo para ele que o poeta deixará “sua carta ao mundo”, sua visão própria e extremamente crítica, para poder compreender melhor o mundo.

Desta forma, o direcionamento do poema – artefato verbal que tem sua consagração ao tocar a atenção e a existência de um eventual leitor – ultrapassa o desempenho de uma escrita centrada em um sujeito fragmentado, e dá lugar a uma cerrada construção de vivências e alteridades de um sujeito poético centralizador, mas que se expande pelo diálogo crítico com o leitor. Obviamente que não podemos considerar esta diferença entre Pessoa e Sena como um índice de valor de uma “maior sinceridade” do poeta de Arte de Música. Convém esclarecer que ambas as propostas são literárias- portanto advêm de artifícios literários precisos que conformam suas enunciações, ou seja, ambas as formas são estritamente estratégias de escrever – para que não se caia na facilidade de crer que Sena é um poeta “dos sentimentos” e que não possui também suas máscaras no intrincado mecanismo do tecido linguístico.

Para ilustrar o testemunho seniano, leia-se o poema de 27/10/1942, intitulado "Os Trabalhos e Os Dias", constante no volume Coroa da terra:

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
(Sena, 1988: 83-4)

Logo na primeira estrofe o sujeito poético equipara a sua mesa à condição de cosmos, e a sua escrita à respiração permanente do amor. A mesa estabelecida como um mundo exige um poeta que se relacione, se multiplique, atue no devir desse universo, pois se o poeta, por definição, nomeia o mundo e as coisas, é dentro desse mundo que o poeta fala, e esse contexto é definidor de sua fala. Essa contextualização fica clara nessa estrofe, pois o binômio mesa/mundo são rasurados, a ponto de restar “…um caminho sem nada para o regresso da vida.” A última palavra da estrofe constrói outro binômio: amor/vida. Note-se a ironia com o título do poema emprestado de Hesíodo, que confere a noção constante de cultivo entre o poeta e sua mesa, como se escrever e arar tivesse a mesma função. Escrita, amor e mundo são os sintagmas que aparecem como determinantes de uma relação quase heroica ou conjuntural. Essa relação, além de indicar um engajamento apriorístico com o mundo e logo com o outro ser, ainda que seja com um eventual leitor, também estabelece outra inserção: escrever é respirar o amor e respirar o amor é criar o mundo. Aqui reside um ponto de alteridade para o espanto do mundo e seu infinito, pois é a partir da escrita que se descortinam facetas do mundo até então desconhecidas.

Na segunda estrofe, o espanto do saber, a saturação da realidade, toma conta da enunciação: “À medida que escrevo, vou ficando espantado”. Assim, ao reconhecer as infinitas possibilidades da escrita, o sujeito do poema percebe-se apenas um mínimo objeto na complexidade do mundo. No entanto, ainda que a poesia possa transformar de maneira lentíssima o mundo, o poeta sabe que possui sua parcela de responsabilidade, que cada palavra pode irromper num estrondo no ouvido do leitor, como uma oração, ou uma reação química em cadeia, ou até mesmo como um dígito na teoria do caos. Apesar de essa constatação ter um cunho disfórico, que sugere uma aura sacrificial à função do poeta, daquele que se doa repetidamente, é justamente ela que irmana sua fala com outros poetas e com alegrias e tristezas coletivas, em busca de um ponto de vista diverso do sujeito empírico. Outra vez se dá o processo da alteridade entre experiência de mundo e conhecimento.

Já na terceira estrofe, o primeiro verso usa de uma metáfora para demarcar a necessidade de escrever a todo custo: “Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.”. O sujeito poético está atado ao testemunho do mundo e à sua função de rebelião e comunhão com os homens, já que para aquele que foi tocado pela palavra não há mais saída, a não ser escrever, dar seu testemunho, ainda que seja inútil, para lembrar a lição cabralina. Dessa necessidade de escrever enquanto os convidados chegam, Jorge de Sena vai finalizar o poema pontuando sobre a “verdade, essa iguaria rara”. A despeito da complexidade filosófica desse termo, que possui significações diversas, variando de filósofo para filósofo, pode-se efetuar uma leitura grosso modo, e estabelecer que verdade signifique, pelo contexto do poema, aquilo que se faz com o coração, com sinceridade, com a intencionalidade de ser útil aos homens, “para poder caçar melhor”, ou seja, anseio de um sujeito poético que quer comungar um testemunho, conclamar sua alteridade, repartir sua perplexidade. Logo após, o poema indica uma preocupação ética: “este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo”, dá a ver, por esse remate, o movimento permanente de aprendizado do sujeito, que se constrói pela perspectiva do outro. Enfim, o sujeito se dá no ato escrita, pois experimentou o outro, e buscou no infinito do outro, uma abertura para o mundo. O poema, pelo explicitado, torna-se uma ponte dotada da epifania da presença que o outro incognoscível representa ou pode vir a representar.

Jorge Fazenda Lourenço colocou o poema analisado no início de seu livro A Poesia de Jorge de Sena: Testemunho, metamorfose, peregrinação (ps. 41-45) indicando sua importância para toda obra seniana, pois seu caráter preceptivo faz com que beire uma poética, a qual Sena observou ao longo de sua vasta obra. Para Lourenço, este poema é “…decisivo, na medida em que, para Jorge de Sena, a poesia é não só uma experiência de conhecimento, e conhecimento experimentado, como transmissão desse conhecimento e dessa experiência…” (Lourenço, 1998: 42). Relação e partilha são as duas condições essenciais para sua compreensão poética e do mundo, da qual a mesa expressa no poema é a metáfora ideal, espaço em que se pode dividir o pão e conviver com o outro.

Dessa proposta relacional, inclusiva, engajada, incisiva no factível do mundo, é que se torna possível o aporte ético-filosófico. No tocante à ética, notadamente ao tema da alteridade, já em 1984, Fernando Guimarães demonstrava essa aproximação no ensaio intitulado “Jorge de Sena ou os limites da alteridade em poesia”:

A abordagem, pela retórica, de uma linguagem não se deve limitar apenas à montagem de um esquema de classificação; o objectivo está antes em referenciar o tipo de comunicação que as figuras e os tropos evidenciam. E no caso de Jorge de Sena parece destacar-se o sentido de uma linguagem que, para além de uma imediata expressão do humano que os nossos presencistas e neo-realistas se não cansaram de reverenciar, se alarga e existe num plano de conhecimento que ela nos possibilita para e por outrem, como vimos, ou, pelo contrário e como veremos, inconscientemente pulverizado – fosse o nosso interlocutor e não o poeta (Guimarães, 1984:158).

O sugerido apagamento do “eu” do poeta dá lugar para a construção e objetivação do “outro”, convite ao diálogo e ao conhecimento pela palavra e pela experiência, uma espécie de “sinceridade aplicada”, que seria sujeito e objeto do poema, além de qualquer expressão. O sujeito poético não quer apenas dizer algo, mas efetivamente conviver, ensinar, dividir a inesgotável alteridade. Nesse mesmo ensaio Fernando Guimarães explicita ainda mais o significado do testemunho em relação a Fernando Pessoa:

O fingimento seria substituído por uma disponibilidade vigilante, pelo testemunho. E aquele analitismo que, em Pessoa, incidia sobre o eu passa a ser transferido para um plano diferente. Qual? O de uma apreensão das múltiplas distâncias que tanto nos aproximam como separam das coisas ou dos outros, criando-se um tu latente que vai, afinal, sofrer do mesmo modo um desfibramento analítico. (Guimarães, 1984: 156).

A latência desse “tu” desfibrado e exposto, pede a participação do “tu” do leitor, de sua abertura ao caminho trilhado pelo poema. Leitor e o “poeta-outro” tornam-se espaços plenos de significado, mediados pelo poema. É claro que não se pode simplesmente atribuir a Jorge de Sena o mérito de inverter a lógica pessoana e com isso, de alguma maneira superá-la. Como já foi dito; o que há, em verdade, é praticamente a mesma intencionalidade: se Pessoa se multiplica em vários escritores, Sena se multiplica em outros, mas sem abrir mão totalmente de sua própria subjetividade, pois o outro, para Sena, é colocar-se como outro para construir a si mesmo, sendo que os pronomes: “eu” e “tu” são, de alguma forma, manipulados com a mesma intensidade.
O testemunho arma-se como a zona de conflito entre o “eu” e o “tu”, entre a mera técnica do poema e a assombrosa aparição do poético. Para entender, de maneira mais esquematizada essa relação, recorre-se à filosofia de Emmanuel Lévinas, para quem a proximidade do rosto do outro se torna um chamado para o empenhamento ético e a partilha da experiência do sujeito.

Mas este em-face do rosto na sua expressão – sua mortalidade – me convoca, me suplica, me reclama: como se a morte invisível que o rosto de outrem enfrenta – pura alteridade, separada, de algum modo de todo conjunto – fosse “meu negócio”. […] É precisamente neste chamamento de minha responsabilidade pelo rosto que me convoca, me suplica e me reclama, é neste questionamento que outrem me é próximo (Lévinas, 2004:194).

Isto é, transpondo o pensamento de “chamamento” pelo rosto de Lévinas para o exposto sobre Jorge de Sena, pode-se dizer que é pelo outro e com o outro que a escrita vai florescer, e é justamente por esse motivo que se dará a ver sua importância. Assim, estar aberto para o outro, como uma espécie de segunda atenção, o outro como duplo de vida e linguagem, gerando uma responsabilidade dessa relação que se propagará como afirmação ética de toda uma obra, uma janela dialógica para o mundo, o efetivo testemunho de toda uma vida, talvez seja o ponto alto de interesse da obra de Sena, seu núcleo duro.

Emmanuel Lévinas, ao desenvolver sua tese de buscar a epifania do Outro, que antes requer a superação de si, descreve de maneira admirável, uma possibilidade de entendimento para a escrita testemunhal seniana. Não é a técnica, nem a arte, nem o niilismo, diz ainda Lévinas, mas a gratuidade total da Ação que pode levar o um até o outro, sem intermédio, para parafrasear o problema posto em célebre poema de Mario de Sá-Carneiro – aliás, o poema de Sá-Carneiro denota que essa discussão tem tradição na poesia portuguesa, remontand a Bernardim Ribeiro (“Antre mim mesmo e mim…”) e Sá de Miranda (“Comigo me desavim”) e atravessa toda a modernidade e a crise do sujeito, radiculada na crescente individualização da experiência, da entronização da vida privada e da acumulação da ideologia liberal do cada um por si. Essa gratuidade do testemunho, do convívio é uma das bases éticas da obra poética de Jorge de Sena, sempre interessado em estabelecer a comunicação e a transmissão da consciência poética.

Posta assim, a visão testemunhal seria mais que uma atenção ao outro, seria o próprio espaço de doação e retorno do reflexo de estar vivo, poder escrever e ter alegria. A cada instante um instante de testemunho para um leitor eventual, para um futuro que precisa ver um novo homem a partir do presente: o mesmo homem que acredita que o poema pode estabelecer uma comunhão inexpugnável entre duas pessoas, para que dessa experiência seja possível ainda caminhar de mãos dadas.

 

Bibliografia:

GUIMARÃES, Fernando. (1984). “Jorge de Sena ou os limites da alteridade em poesia”. In LISBOA, Eugénio (Org.). Estudos sobre Jorge de Sena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 152-159.

LÉVINAS, Emmanuel. (1993). Humanismo do outro homem. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

____________. (2010). Entre nós. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

LOURENÇO, Jorge Fazenda. (1998). A Poesia de Jorge de Sena: Testemunho, metamorfose, peregrinação. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian.

SENA, Jorge de. (1988). Poesia I. Lisboa: Edições 70.