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Walt Whitman

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Sob o mote do "Independence Day", aqui trazemos "o maior poeta da América, e um dos mais originais e corajosos poetas líricos da poesia universal", na avaliação de Jorge de Sena — tradutor dos poemas abaixo, seguidos da "notícia biográfico-crítica", que figuram na monumental Poesia de 26 Séculos.
 


CINCO POEMAS


MOMENTOS ESPONTÂNEOS


Momentos espontâneos — se me assaltais — e lá vindes vós,
Dai-me agora só prazeres libidinosos,
Dai-me que me encharque das paixões que tenho, dai-me a vida grosseira e baixa,
Hoje, hei-de ir com aqueles que a Natureza ama,
Sou para os que acreditam no gozar sem freios, partilho as orgias nocturnas da rapaziada,
Danço com os que dançam, bebo com quem bebe,
Os ecos estrilam com os nossos berros obscenos, e agarro no primeiro para amigo meu,
Que seja um marginal, rude, analfabeto, marcado já por coisas que tem feito.
Vou deixar-me de representar, porque hei-de exilar-me de meus pares?
O vós, ó perseguidos, eu não vos persigo.
Eis que venho para o meio de vós a ser o vosso poeta,
Mais serei vosso do que de todos os outros.

 

A UM ESTRANHO

Estranho que por mim passas! não sabes com que anseio meus olhos te fitam.
Porque és aquele que eu procuro, aquela que eu procuro (como se fora um sonho),
Tenho a certeza que, nalguma parte, alegremente vivi contigo,
Recordo, ao nos cruzarmos, tudo, fluido, afectuoso, casto, calmo,
Cresceste comigo, foste comigo um rapaz, comigo foste rapariga,
Comi contigo, dormi contigo, o teu corpo não ficou só teu, nem o meu corpo só meu,
Deste-me o prazer dos teus olhos, do rosto, da carne ao nos cruzarmos levas da minha barba, peito, mãos, em troca.
Não me cumpre falar-te, eu sou quem existe para pensar em ti, quando fico sozinho ou de noite acordo,
Eu sou quem deve esperar, seguro de voltar a encontrar-te,
Eu sou quem deve cuidar de te não perder para sempre.

 

QUANDO OUVIA O SÁBIO ASTRÓNOMO


Quando ouvia o sábio astrónomo,
Quando as provas, e as fórmulas, se alinhavam em colunas perante mim,
Quando me eram mostrados os mapas e os diagramas, e como somá-los, dividi-los, medi-los,
Quando eu, sentado, ouvia o astrónomo tão aplaudidamente preleccionar na sala de conferências,
Ai quão inenarràvelmente me senti cansado,
Até me levantar e me escapar para fora, vagueando solitário,
No místico ar húmido e nocturno, só de tempos a tempos,
Erguendo os olhos em silêncio absoluto para os astros.

A UM REVOLUCIONÁRIO EUROPEU VENCIDO


Ainda mais coragem, meu irmão ou irmã.
Não vaciles — a Liberdade tem de ser servida, haja o que houver;
Que importa que ela falhe uma vez, ou duas vezes, ou muitas vezes,
Ou seja ferida pela indiferença ou ingratidão do povo ou pela infidelidade,
Ou pelo aparato das mordaças do poder, soldados, canhões, códigos penais.
Aquilo em que nós cremos aguarda latente em todos os continentes,
A ninguém convida, não promete nada, repousa em calma e claridade, é teimoso e tranquilo, não conhece o desânimo,


Esperando com paciência, esperando a sua hora.
(Não é isto um canto de lealdade apenas,
Mas também cântico de insurreição,
Porque eu sou o poeta jurado do rebelde intrépido de toda a parte,
E quem vem comigo deixa para trás a paz e a rotina,
E arrisca-se a perder a vida a cada instante.)
A luta ruge em sobressalto e estrondo, avanço e retirada,
O inimigo triunfa ou julga que triunfa,
A prisão, o garrote, o cadafalso, as balas e as cadeias cumprem o seu dever,
Os heróis célebres ou obscuros passam a outras esferas,
Os grandes oradores e escritores são exilados, morrem de saudade em distantes terras.


A Causa dorme, as mais fortes vozes afogam-se no seu próprio sangue,
Os jovens baixam os olhos para o chão, quando se encontram,
Mas, apesar disto, a Liberdade não se foi embora, nem o inimigo tomou inteira posse.
A Liberdade, ao ir-se embora, não é o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro a partir,
Espera por todos os outros, é a última.


Quando já não houver memória dos heróis e dos mártires,
Quando as vidas e as almas de todos os homens e mulheres tiverem sido expulsas dessa parte da terra.
Só então a Liberdade ou a ideia de Liberdade será expulsa dessa parte da terra,
E o inimigo toma inteira posse.

Coragem, pois, revolucionário europeu!
Mesmo que tudo cesse, não cesses tu.

Não sei a que tu vens (não sei a que venho ou qualquer coisa vem).
Mas é o que procurarei cuidadosamente até em ser vencido,
Até na derrota e pobreza e fraude e prisão — porque também são grandes.

Julgávamos grande a vitória?
E é — mas agora parece-me, quando não há remédio, que a derrota é grande,
E que a morte e a amargura também são grandes.
 


A ÚLTIMA INVOCAÇÃO


Enfim, suavemente,
Das paredes da casa poderosamente defendida,
Da prisão de fortes fechaduras, da segurança de portas bem fechadas,
Que eu seja levado.

Que eu me esgueire sem ruído;
Com a chave da doçura abrindo os fechos — num leve sussurro
Escancarando as portas, Ó Alma.

Suavemente — sem impaciência
(Tão forte é a tua garra, ó carne mortal.
Tão forte a tua garra, Amor).
 

Poesia de 26 Séculos 3.ed., Porto, Asa, 2001, p. 252-5

 

WHITMAN, WALT — Nasceu em Long Island, em 31 de Maio de 1819, quem seria o maior poeta da América, e um dos mais originais e corajosos poetas líricos da poesia universal. Os seus costumes, a sua franqueza, o seu erotismo, o seu radicalismo político, a sua expressão anafòricamente tumultuaria e repetitiva, o seu gosto das apóstrofes e das enumerações, o seu verso esplendidamente livre, é muito escândalo junto para ele ser o poeta nacional que ninguém foi como ele, ainda que muito mais por crença na democracia que por nacionalismo. A sua colectânea, de poemas, Leaves of Grass, primeiro aparecida em 1855, é na terceira edição (1860) que, revista e ampliada, se torna o foco, sucessivamente reeditado com adições, da sua revolução política. Vivendo de empregos ocasionais, jornalista frustrado (mas as suas reportagens da Guerra Civil da Secessão são obras-primas), Whitman foi um Verlaine sem senso do pecado, e com um sentido da grandeza e da majestade do mundo e da vida, que Verlaine não teve. Mas que a desbordante retórica dele (no entanto, ao que se sabe, extremamente rebuscada em correcções sucessivas) não nos iluda quanto à sua capacidade de delicada contemplação ou de fulgurantes e concisas meditações. A numerosos títulos é Whitman um dos criadores da sensibilidade e da expressão modernas — e o seu pan-erotismo libertário é o que melhor corresponde às ideias da juventude de hoje. Morreu em Camden, New Jersey, em 1892, paralítico desde 1873, mas sempre compondo a mesma poesia entusiástica e apaixonada.
 

Poesia de 26 Séculos. 3.ed., Porto, Asa, 2001, p. 357