Referência em matéria de exílios poéticos, simbólicos e biográficos, Rimbaud foi uma influência forte, assumida e recorrente na obra de Jorge de Sena, fosse como eco em seus versos ou como objeto de seus estudos críticos. Talvez, contudo, o exercício de tradução de sua poesia seja a maior forma de homenagem, e o momento de maior aproximação entre os poetas. Vejamos, então, os poemas de Rimbaud traduzidos por Sena e publicados em seu Poesia de 26 Séculos.
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Oração da Tarde
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Os Lábios Cerrados
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Vénus Anadiómena
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Guerra
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Canção da Mais Alta Torre
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"Ô Saisons, Ô Chateaux"
Vivo abancado como um Anjo no barbeiro,
Da cerveja empunhando as grossas caneluras,
Hipogastro e pescoço arqueando, sobranceiro,
Sob o pesado céu de ténues velaturas.
Tal o excremento quente aquece o galinheiro,
Mil sonhos em mim fazem doces queimaduras.
Meu terno coração escorre como um balseiro
Ensanguentado no ouro das emborcaduras.
E quando os Sonhos meus engoli com cuidado,
Depois que já bebi trinta ou quarenta chopes,
Recolho-me a aliviar seu acre resultado:
Doce como o Senhor do cedro e dos hissopes.
Aponto ao pardo céu meu mijo de alto arqueado
— E acenam-me que sim os grãos heliotrópios.
OS LÁBIOS CERRADOS (Visto em Roma)
Há em Roma, na Sistina,
E com emblemas brilhando,
Um relicário em esmaltina
Cheio de ventas secando.
Ventas de antigos ascetas,
Cónegos do Santo Gral,
Quando as noites eram pretas
E o cantochão sepulcral.
Nessa mística secura,
Pelas manhãs introduzem
Dos Cismas a trampa escura
Que a poeira fina reduzem.
Como dum verde esquife, em lata, eis que uma testa
De fêmea, com os cabelos negros e ensebados,
De uma banheira velha emerge, lenta e besta,
Exibindo na face estragos remendados.
O colo gordo e pardo; as longas omoplatas
Salientes; e o costado que se encurva e curva;
E renais redondezas — brotam da água turva.
A banha sob a pel' se espalha em folhas chatas.
O lombo é um pouco roxo. E tudo larga um cheiro
Estranhamente horrível. Coisas singulares
Requerem que uma lente ajude ao olho nu…
CLARA VÉNUS é o nome inscrito no traseiro.
E quando o corpo alastra, e as ancas se dão ares.
Uma hedionda úlcera lhe enflora o eu.
Criança, céus houve que a óptica me afinaram, e caracteres que me nuançaram a fisionomia. Os fenómenos emparedam-se.
Agora, a inflexão eterna dos matemáticos momentos do infinito persegue-me pelo mundo onde sofro todos os sucessos civis, respeitado pela infância estranha e as afeições enormes. Sonho com uma guerra, por direito, ou por força, de imprevista lógica.
É tão simples como uma frase musical.
Ociosa juventude
A tudo submetida,
Só por solicitude
E que perdi a vida.
Ah, que outro tempo chegue
E o coração se entregue.
A mim me digo: cessa,
E não te vejam mais:
E sem qualquer promessa
De prazer's ideais.
Custa quanto custa
A retirada augusta.
Tanta paciência tive
Que me esqueço agora.
Nenhuma dor revive
Pelo céu afora.
Só a sede maldita
Minhas veias visita.
Assim a Pradaria
Ao esquecimento vinha,
Mais ampla se floria
De incenso e erva daninha.
Ao zubinar das cujas
cem moscas as mais sujas.
Ah quão viúva agora
Uma pobre alma em viagem
Que não tem mais que a imagem
Desta Nossa Senhora.
Ainda há quem sorria
Para a Virgem Maria?
Ociosa juventude
A tudo submetida,
Só por solicitude
E que perdi a vida.
Ah, que outro tempo chegue
E o coração se entregue.
Ó temporadas, castelos,
Mas qual alma é sem farelos?
Ó temporadas, castelos,
Já fiz o mágico estudo
Do prazer que não iludo.
Viva ele, de cada vez
Que canta o galo gaulês.
E não desejo mais nada.
Que a vida me foi levada.
Corpo e alma, oh que encanto,
Dele são por meu quebranto.
Entenderem o que eu digo?
Mas se sopra o meu amigo!
Ó temporadas, castelos!