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Poesia Russa

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A pátria poética de Jorge de Sena é muito maior que a língua portuguesa. Prova disso é seu monumental Poesia de 26 Séculos, em que boa parte da poesia universal é convocada e reinterpretada através da seleção, tradução e das notas senianas. Apresentamos aqui os poetas russos eleitos por Sena para participar desse grande encontro de testemunhas – dois poetas românticos, inauguradores da literatura russa moderna e, ainda hoje, os maiores expoentes daquela poesia: Pushkin e Lermontov.

 

Pushkin:

Lermontov:

 

Pushkin
(1799-1837)
 

Uma Nereida

A luz de um céu de aurora, e onde a verdura toca
ao Táuris cariciosa o flanco, uma Nereida vi.
Imóvel de alegria, oculto no olival, deitei-me
a espiar a semi-deusa abrindo as róseas águas
que os seios lhe lambiam, alvos de cisne e tesos,
e penteando os seus cabelos de grinaldas de espuma.


As Uvas

Que me não fujam as rosas
murchando co'a Primavera:
gosto das uvas em cachos
maduros ao sol da encosta —
glória deste meu val',
pendendo em brilho de pérolas,
prazer do Outono dourado:
oblongas e transparentes
como dedos de donzela.


Mensagem para a Sibéria

Lá nas minas da Sibéria,
que o forte orgulho resista:
de trabalhos e miséria
se alimente a rebeldia.

A Esp'rança, irmã da desgraça,
na treva silente, dá
coragem ao coração.
O grande dia virá.

Amor de amigo vos mando
além da porta sombria;
acorrentados aos catres,
ouvireis a melodia:

Grilhetas hão-de tombar,
muralhas desabarão.
E, na luz da liberdade,
vossa espada em vossa mão.

"O Homem que outrora fui…"

                             Tel j'étais autrefois et tel je suis encor
                                                                 André Chenier

O homem que outrora fui, o mesmo ainda serei:
leviano, ardente. Em vão, amigos meus, eu sei,
de mim se espere que eu possa contemplar o belo
sem um tremor secreto, um ansioso anelo.
O amor não me traiu ou torturou bastante?
Nas citereias redes qual falcão aflante
não me debati já, tantas vezes cativo?
Relapso, porém, a tudo eu sobrevivo,
e à nova estátua trago a mesma antiga of'renda…

 

"Ó belo jovem…"

(num acampamento militar no Eufrates)

O belo jovem, não escutes
rufar da guerra os tambores!
Não te lances na batalha
co'as hordas dos contendores!

Sei que a morte há-de poupar-te,
e que, onde a sorte se traça,
o anjo Azrael, ao fitar-te,
ver-te-á tão belo, que passa.

Mas a guerra é pior que a morte,
e temo que te desfaça
o encanto fino do porte
e a tua lânguida graça.

"Não penses meu amor…"

Não penses, meu amor, que no meu seio guardo
O tumultuar do sangue, o frenesi de que ardo,
os uivos dela, os gritos de bacante em cio,
quando, como uma cobra, sob mim se torce,
e em beijos que remordem e na carícia urgente
vem o estertor final da consumada posse.

Mais doce és tu, amor, tão sossegada e calma —
pelo prazer dorido com que eu sou todo alma
quando, após longamente suplicar-te ansioso,
com pudica modéstia cedes ao meu gozo
e a mim te dás enfim, mas desviando o olhar,
aos meus ardor's tão fria e sem me ouvir's falar,
mas despertando… ah quão tu devagar despertas…
até que, a contragosto, o meu prazer é o teu.

 

"É tempo, meu amigo…"

É tempo, meu amigo, o coração cansou-se…
Cada hora voa, e é como se com ela fosse
um farrapo daquilo que pensamos vivo.
Tardará muito a morte? Ah, tudo é fugitivo.

Felicidade não, mas paz e liberdade
é quanto espera quem só ainda sonha que há-de
fugir — cansado escravo —, antes da noite escura,
a repousar nos longes da mais clara altura.

 

"Para mim mesmo ergui…"

Para mim mesmo ergui, não com as mãos, moimento:
a estrada livre que o meu povo há-de trilhar.
Alexandre não tem coluna erguida ao vento
que erga a cabeça mais que o meu pilar.

Não morrerei de todo — pois que no meu canto,
sem corpo corruptível, soarei altivo.
E o meu renome imenso durará enquanto
houver na terra um poeta sobrevivo.

Da minha fama o ruído a Rússia há-de varrer,
que aos povos todos dela irá iluminando,
o eslavo, o balta, o tungu me hão-de conhecer,
como o kalmuk a estepe cavalgando.

Serei amado, e as gentes lembrarão mil anos
na glória do meu verso o fogo que acendi:
como cantei ser livre em tempo de tiranos
e para os humilhados honra só pedi.

O Musa, nunca escutes mais que a um deus, tua arte,
impávida aos insultos, ao louvor mais fria.
Sem recompensas, canta, mas saibas calar-te
sempre que um asno cruze pela tua via.


 

PUSHKIN, ALEXANDER SERGUEIEVITCH — Nascido no mesmo ano que Garrett em Portugal, Pushkin não é apenas, na sua curta vida atribulada e na sua criatividade assombrosa, a entrada triunfal do Romantismo na Rússia, após anos em que "antigos" e "modernos" lutavam pela supremacia: é não só, ainda hoje, o maior poeta da Rússia, como também a personalidade de quem decorre toda a literatura russa moderna, à qual abriu todos os caminhos que ela veio a trilhar, e de quem as artes vieram a inspirar-se profusamente na Rússia, para a magnificente floração estética da segunda metade do século XIX, que colocou o país na vanguarda da cultura ocidental. Foi em Moscovo, a 6 de Junho de 1799, que nasceu. Por seu pai, descendia de velhas famílias russas, por sua mãe, era bisneto do célebre Negro do imperador Pedro-o-Grande que este casou com uma aristocrata balta e um de cujos filhos foi o avô materno do poeta. Este orgulhava-se muito das suas duas linhagens, e compôs sobre o lendário bisavô africano uma belíssima novela que, inacabada, teve só publicação póstuma. Como era costume das altas classes do tempo, recebeu Pushkin uma educação estritamente francesa que a aristocracia russa compensava, na sua formação, com o contacto patriarcal e escravocrata com os camponeses e no culto tradicional da Santa Rússia. Durante seis anos, frequentou Pushkin o liceu de Tsarskoie-Selo, instituição imperial para os rapazes de boa família, destinado a formá-los para a imensa burocracia do império. Aí aprofundou o seu conhecimento da literatura francesa e se familiarizou com as letras clássicas: esta dualidade classicizante deu-lhe o gosto da forma clara e precisa, da elegância do ritmo e da expressão, do domínio de uma linguagem que ele ductilizou com lúcida segurança, mesmo nas mais audaciosas expansões românticas. Isto, aliado à liberdade de costumes do homem russo da época, faz dele um romântico que é um clássico e que se recusa realisticamente às idealizações eróticas com que muito romantismo mais ocidental foi castrado pelo puritanismo burguês. A sua obra é vastíssima: poemas narrativos (Eugénio Oneguine, etc), poemas líricos dos mais vários tons e da mais diversa inspiração, romances e novelas (A Dama de Espadas, A Filha do Capitão, etc), contos fantásticos, populistas, realistas, teatro (o portentoso Boris Godunov, o brevíssimo e admirável Mozart e Salieri, etc), etc, produzidos em menos de um quarto de século, desde os versos juvenis que primeiro publica em 1814 ainda estudante de liceu, e Russlan e Ludmila que, em 1820, foi como que o manifesto do Romantismo russo, até à morte desastrosa em 1837 que culminou uma carreira frenética e inquieta de aventuras amorosas, orgias alcoólicas, duelos, exílios que o seu indómito liberalismo lhe valia e que o fizeram peregrinar pela imensa Rússia a que contraditoriamente, amando-a tanto, muitas vezes sonhou escapar e de que nunca teve oportunidade de sair, e em que sempre viveu vigiado pela polícia dos imperadores de quem, às vezes, e amargamente, se deixou ser protegido. Tudo isto — e os textos intocados ou não restringidos pela censura só apareceram muito depois da sua morte — transparece nos oito poemas que dele traduzimos e que vão ordenados em aproximada cronologia desde 1820 (quando as sugestões clássicas são ainda tão evidentes) a 1836, que é a data de uma das mais orgulhosas e arrogantes proclamações de genialidade, que um grande poeta escreveu. Em 1831, pensando em "tomar estado'", casou Pushkin com uma jovem que três anos antes o fascinara: leviana, provavelmente infiel, gastadora, Natália Gontcharova tornou a vida do poeta num inferno e expô-lo cruelmente a um desrespeito social a que ele era agudamente sensível. A 8 de Fevereiro de 1837, Pushkin bateu-se em duelo com um presumível amante da esposa, e dois dias depois morre dos ferimentos recebidos. A sua morte inesperada foi sentida e chorada como um luto nacional — e quiçá o poeta procurara o pretexto para ''fugir — cansado escravo —, antes da noite escura, a repousar nos longes da mais clara altura", qual confidenciara no que veio a ser, como a proclamação arrogante, um dos seus últimos e mais belos poemas.

 

Lermontov
(1814-1841)
 

A uma bela que lhe não correspondia

O amor pediu-me um dia
que de seu vinho provasse.
E eu foi só por cortesia
que a taça inteira emborcasse.

Agora tudo eu daria
p'ra refrescar minha boca.
E a taça está tão vazia
como a cabeça tens oca.

 

Adeus, Ó Rússia Mal Lavada!

Adeus p'ra sempre, ó Rússia mal lavada!
Terra de escravos e cruéis senhores!
E vós, azuis gendarmes opressores,
e vós, dócil nação de carneirada!

Além do Cáucaso e seus altos montes
livre estarei dos vossos grão-pachás,
dos olhos com que espiam tão bifrontes,
e de quantos ouvidos deixo atrás.

 

Nuvens

Ó nuvens pelos céus que eternamente andais!
Longo colar de pérolas na estepe azul,
exiladas como eu, correndo rumo ao sul,
longe do caro norte que, como eu, deixais!

Que vos impele assim? Uma ordem do Destino?
Oculto mal secreto? Ou mal que se conhece?
Acaso carregais o crime que envilece?
Ou só de amigos vis o torpe desatino?

Ah não: fugis cansadas da maninha terra,
e estranhas a paixões e ao sofrimento estranhas
eternas pervagais as frígidas entranhas.
E não sabeis, sem pátria, a dor que o exílio encerra.


O Rochedo

A nuvem de ouro dorme a noite inteira
no seio do gigântico rochedo.
Pela manhã, levanta-se bem cedo,
e descuidada vai-se pelos céus, ligeira.

Mas lá restou de orvalho um breve traço
nas rugas do penedo solitário.
E é como se ele ficara multivário
chorando suavemente ante o vazio espaço.

 

LERMONTOV, MIKHAIL YUREVITCH — Nasceu em Moscovo em 15 de Outubro de 1814, descendente de um aventureiro escocês, Learmont, que, no século XVII, se estabelecera na Rússia. Órfão muito cedo, foi criado por uma riquíssima avó que lhe proporcionou viagens e uma excelente educação inicial — datam desse tempo as suas impressões do Cáucaso, que representarão tão importante papel na sua obra. Começou juvenilmente a escrever versos sob a influência de Byron (que também íascinou Pushkin), e em 1830 matriculou-se na universidade de Moscovo, de que dois anos depois se transferiu para a de S. Petersburgo, onde logo abandonou os estudos, entrando para a escola de cadetes. Formando-se em 1834. foi colocado nos Hussares, e entregou-se à dissipada vida da sua classe e da juventude naquele tempo. Um primeiro poema foi publicado sem o seu consentimento em 1835, mas em 1837 a celebridade veio de súbito com o poema A Morte de um Poeta, em que atacava a sociedade russa como culpada da morte de Pushkin e que circulou clandestinamente. Foi exilado para o Cáucaso das suas viagens de infância, de onde perdoado pelo imperador voltou no ano seguinte, para tomar na literatura russa o lugar vago pela morte de Pushkin. Em 1840, quando uma colectânea de poemas seus foi publicada, um duelo remeteu-o ao exílio no Cáucaso. E, aí, em Piatigorsk, vítima de um outro duelo morreu a 27 de Julho de 1841. tendo vivido uma ardente vida ainda mais breve que a de Pushkin. Como poeta, quer nas suas baladas, quer nas suas líricas, quer nos poemas narrativos de fantástica substância, Lermontov é considerado o romântico por excelência na língua russa, já que os traços de classicismo não dominam tanto nele como em Pushkin, e um dos maiores poetas russos depois deste. Pode dizer-se que, com Pushkin, Lermontov partilha a glória de ser iniciador da literatura moderna no seu país. Mas não só como poeta: o seu romance Um Herói do Nosso Tempo de 1840, em grande parte auto-retrato através do protagonista, Pechorin, homem ocioso e "blasé" que se entrega ironicamente às mais diversas experiências, é uma das obras-primas da história do romance ocidental e teve uma importância decisiva no desenvolvimento do romance russo, na direcção do realismo crítico e de atenção aos ambientes e às nuanças psicológicas, em que a Rússia foi incomparável. Note o leitor que, no célebre poema da "Rússia mal lavada", pachás era a alcunha dada aos funcionários superiores da repressão policial, cujo braço eram os "gendarmes" (assim, por importação da palavra francesa) que se fardavam de azul.