No Suplemento Literário de O Comércio do Porto, de 9 de junho de 1953, Sena publica o primeiro texto português sobre Constantino Cavafy (1863-1933), acompanhado de 5 poemas que traduziu do poeta grego (abaixo reproduzidos). Voltará a ele nos números dos dias 8 de setembro e 22 de dezembro do mesmo jornal, com mais poemas. O texto encontra-se hoje reproduzido em O dogma da trindade poética (Rimbaud) e outros ensaios e os poemas integram o volume Constantino Cavafy, 90 e mais quatro poemas, incumbindo-se da tradução, prefácio, comentários e notas.
O que esperamos nós em multidão no Forum?
Os Bárbaros, que chegam hoje.
Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?
É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.
Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?
Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.
E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?
Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.
E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?
Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.
Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?
Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.
[Antes de 1911]
Porque lhes quebrámos as estátuas,
porque os expulsámos dos seus templos,
não morreram, não, os deuses.
A ti, terra da Jónia, ainda eles amam,
e em suas almas sempre te recordam.
Quando a manhã de Agosto é alvorada em ti,
passa em teu ar um ardor dos deuses vivos;
e às vezes uma etérea forma juvenil,
indefinida, em trânsito subtil,
teus montes sobrevoa.
[1911]
Claro que é parecido este pequeno
retrato dele, a lápis.
Feito num momento, no convés do barco,
numa tarde encantadora.
O mar da Jónia a rodear-nos.
Parece-se com ele. Não era ele mais belo?
Sensível era a ponto de sofrer –
o que seu rosto iluminava.
Mais belo me aparece, agora que,
fora do Tempo, eu o recordo n'alma.
Fora do Tempo. Tudo isto é muito antigo –
o desenho, e o navio, e o entardecer.
[1919]
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
[1921]
Ficámos siderados em Antióquia
com as últimas façanhas de Juliano.
Apolo "pessoalmente" em Dafne lhe dissera
que mais não proferia (forte pena!)
oráculo nenhum, enquanto o templo
não fosse, em Dafne, purificado.
Os mortos em redor incomodavam-no.
Em Dafne havia numerosos túmulos.
E um dos que lá estavam sepultados
era o magnífico – de nossa fé a glória –
Babilas, santo e triunfante mártir.
O falso deus a ele se referia, a ele é que temia,
enquanto ao pé o sentisse, não proferiria
oráculos: ficava mudo e quedo.
(Que os falsos deuses temem nossos mártires!)
O Apóstata Juliano arregaçou as mangas…
Todo irritado, vocifera: "Levem-no,
tirem daqui, quanto antes, o Babilas.
Não me ouvem? O grande Apolo está inquieto.
Levem-no sem demora, tirem-no daqui.
Desenterrem-no e levem-no para onde queiram.
Que é brincadeira julgam? Façam o que eu mando.
Apolo quer purificado o templo."
E assim exumámos as santas relíquias,
com honras devotas nós as transladámos.
O que afinal aproveitou ao templo!…
Não tardou um instante, e um fogo começou,
um grande incêndio que alastrou terrível:
e o templo ardeu e Apolo ardeu também.
A imagem? – cinza p'ra varrer no lixo.
Juliano esteve a ponto de estourar, e fez correr –
– que havia ele de fazer? – que o fogo fora posto
por nós, Cristãos, é claro. Deixem-no falar.
De resto, nada se provou. Que fale…
O caso é que por pouco não estourou de raiva.
[1933]