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"Spring in Madison", foto de Luiz Felipe Castro

Primeiros poemas norte-americanos

  • Categoria do post:Poesia

Os dois poemas que se seguem, escritos em outubro de 1965, são os primeiros escritos por Jorge de Sena em solo norte-americano, aonde chega no dia 7 daquele mês. Trazem já algumas das marcas que se farão presentes na produção do poeta em sua terceira e última pátria: no primeiro, os filhos e a vida cotidiana doméstica; no segundo, a meditação sobre a própria noção de pátria e a solidão do exílio, agora vivido não só em outro país, mas em outro idioma.

 

“Não há nada…” (Visão Perpétua)

“Não posso desesperar da humanidade” (Quarenta Anos de Servidão)

 

“Não há nada…”

Não há nada que canse estas crianças.
Pulam e gritam, de regresso a casa,
após longo passeio, como se
fosse apenas um caso de memória
o cansaço que traziam nas pernas e na noite.

Gritam, pulam, brigam,
já esquecidos de que estavam cansados.

É horrorosa esta energia indomável,
sem graça e sem encanto, que deleita e baba
os que fazem mentalmente os filhos que não querem ter
ou que não podem ter, ou que perderam.

Porque é gratuita, é inhumana, é
dissipação de um passado selvagem
que a cada hora espreita nos tranquilos gestos.

Eu sei que é a vida – a vida, oh sim, a vida –
manifestando-se nesses uivos, neste gosto
da grosseria, da brutalidade, e de andar sujo,
despenteado e descalço, o gosto
fascinante e medonho da degradação.

Não há nada que canse estes animais
que amamos com tédio, e pelos quais tememos
o futuro e a morte, ou mesmo os olhos deles.

Hão-de crescer cansados e viver cansados
da humanidade delicada e terna
que apenas um ou outro, menos bruto,
descobrirá por conta própria apenas.

Belas as crianças? Se o forem.
E porque o hão-de ser por serem minhas?
E porque hei-de fingir que os amo como gente,
se ninguém pensou nelas para serem feitas?
E porque hei-de aceitar que seja amor
este teimoso orgulho de ter crias?

Não há nada que canse estas crianças,
nem mesmo o desespero de que o sejam.

17/10/1965

 

“Não posso desesperar da humanidade…”

Não posso desesperar da humanidade. E como
eu gostaria de! Mas como posso
pensar que há povos maus, há maus costumes?
A América é detestável. Mas deu – americanos –
Walt Whitman e Emily Dickinson. Posso
não confiar neles? A Rússia é
detestável. Mas Tolstoi é tão russo!
São maus os japoneses? Como podem
sê-lo, se têm Kurosawa e o Sr. Roberto
que me vendia hortaliças no Brasil?
E o meu Brasil tão infeliz amor, e tão
ridículo? Mas não são brasileiros Euclides
e o coração dos meus amigos? E
Portugal, como pode ser mau e detestável,
se mesmo eu que amo sobretudo o vário mundo,
o amo – ao mundo – como português?
A humanidade e as pátrias são uma chatice, eu sei.
Mas como posso desesperar delas, desde que
não sejam para mim o gesto ou as sardinhas,
o feijão ou o sirloin, ou a terrível capa
dos usos e costumes, da vaidade,
mas uma forma de ser-se humano e solitário
acompanhadamente?
30/10/1965

 

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