Primavera em verso

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Embora no texto ensaístico dedicado à Primavera Jorge de Sena só associe três poemas seus ao tema, entendemos que, pelo menos, mais três, com novas modulações, deveriam ser listados nesta antologia…
 

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Desenho de Ângelo de Sousa para “Primavera”, no livro As Quatro Estações (Porto, Inova, 1977)

 

 

 

 

Equinócio da Primavera

Da noite a aragem, tépida refrescando vem
surpreender as luzes, que interiores, se apagam
lentamente, uma após outra, como em madrugada
ao longe as luzes de outra margem – rio
descido pelas águas tenuemente crespas,
sombras passando, e escorre matutina,
ainda sem brilho, a vibração das águas,
enquanto rósea apenas de uma aurora ausente
a crista das montanhas reverdece.

Por sobre a plácida e pensante aragem física
das violações diurnas, de amarguras,
vilezas vistas e traições sonhadas,
notícias de jornal e desafios,
guerra eminente ou, mais que dolorosa,
cravada nas imagens de uma paz sombria,
perpassa a noite véus de primavera,
glicínias que amanhã estarão floridas,
e folhas verdes, muito frágeis, tenras,
e o azular-se o mar, o distanciar-se o céu
na crua luz que juvenis sorrisos,
traços ligeiros de alegria funda,
devora lentamente, e as rugas ficam..
– ao longe as luzes de outra margem, rio
onde a noite se esconde até à morte.

15/03/1947

 

Primavera no Wisconsin

Na limpidez tranquila da manhã diáfana
em que as despidas árvores imóveis
são como nervos ou expectantes veias
no corpo transparente do azulado ar,
as águas quietas, mas não tanto que
nelas se espelhe mais que a concentrada cor
do ar tranquilo, nem tão menos que
pareçam gelo perto as águas mais distantes,
pousam na margem delicadamente
como na mesma terra infusas se dispersam
dos ramos e dos troncos sombras confundidas.
A terra se amarela de ante-verde
e, sêca, espera, entre a neve que foi
e o ténue estremecer da seiva que desperta.

15/03/1966
 

Não flores de primavera ou recorrentes águas
que das montanhas pardas se descendem
aos vales que o horizonte encobre verdes,
eu peço ou espero. Apenas no arvoredo
imagens do que erecto é corpo humano
entre as pedras esparso e soerguido.
Como de acaso é visto o que em desejo
olhando nos buscamos e buscámos,
assim se movam ramos e folhagens
em movimentos leves e contidos.
E o mais não seja quanto em sonho os sonhos
não são de primavera mais que ardor, perdidos.

10/1974

 

Variações sobre Cantares de D. Dinis

Ramo verde florido,
florido de bela flor,
do meu amor tão querido,
onde está o meu amor?

Diz-me aonde ele está,
aonde está o meu amor,
p’ra que eu buscá-lo vá
florido de bela flor.

Ramo verde tão querido
tão querido do meu amor,
de belas flores florido,
florido de bela flor…

… Diz-me aonde ele está,
florido de bela flor,
p’ra que eu buscá-lo vá
aonde ele está, o meu amor.

Ramo verde florido,
florido de bela flor,
do meu amor tão querido,
tão querido do meu amor.

17/5/1938
 

As Quatro Estações Eram Cinco
O verão passa e o estio se anuncia
que o outono se há-de ser e logo inverno
de que virá nascida a primavera.
Mais breve ou longo se renova o dia
sempre da noite em repetir-se, eterno.
Só o homem morre de não ser quem era.

8/7/1970

 
Entranhas de Água

Vento de primavera que assobia
nas árvores e esquinas recortadas
de azul tão pálido no céu varrido,
ao sol sacode as folhas e os cabelos.

O namorado par se alonga em relva
de sexo verde aceso na friagem
que os corpos une em paralela forma.
E no calor menos da luz que seu

se agita imóvel no ranger do vento.
Assim se tocam ramos como dedos
e as voses se penetram ciciadas.

Não entardece ainda. Está-se o instante
em que declina o sol sem descair-se
ao leito fluido das entranhas de água.

19/4/1974