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Mesquita de Córdova

Poemas para começar o ano

  • Categoria do post:Poesia

Talvez por conta dos rescaldos festivos, a primeira semana de cada ano não se revelou muito fértil em poesia para Jorge de Sena. Ainda assim, dentre os poemas datados do reinício do calendário civil, encontramos alguns de grande qualidade, como os quatro a seguir transcritos, repassados da melancolia inerente a questionamentos sobre o escrever, sobre o que vem e o que fica, sobre o "é como se…", sobre a "vita brevis" em espaço e tempo… Enfim, temas marcantes da poesia seniana neles estão exemplificados e aqui os elegemos como "chaves poéticas" para abrir as portas do novo ano e de novas leituras nesta obra inesgotável.

 

 

Tendo lido uma carta acerca de um seu livro de poemas, que oferecera

Por que entristeço ao ler o que de meus
versos escrevem, se não é de mim
que escrevem?
Será que chora em mim o que meus versos foram
antes de ser meus?
Por que pergunto, se já sei por quê?

Escuto longamente, leio, espero,
e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,
não se tendo ouvido, não a sabem sua.
E vêm chorar em mim o coração traído,
a música perdida em distracções urgentes,
umas palavras que ninguém falou.

Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.

05/01/51

 

Mesquita de Córdova

Haviam sido os fustes de pequenos bosques
a recortarem-se no azul do céu,
ao cimo das colinas, ou à beira de água
espelhando-se nelas como a cristalina
de ninfas ondulância. O dardejar do tempo
e da cristandade os fulminou. Jaziam
tombados entre as ervas, como sexos
dormindo na revôlta grenha; ou, inda agudamente,
inúteis penetrando sem desejo
a macieza húmida das nuvens.
                                                    Róseos,
brancos, irisados, foram convocados
para a glória de Alá. De toda a parte vieram,
a rastros, dorso, em carros, convergindo
para a cidade branca, atravessando os rios,
as serranias áridas, as planícies pálidas;
e as chuvas lavavam-nos da poeira do tempo
e dos caminhos.
                              Um a um erguidos,
já de um a outro os arcos se dobravam,
tão curvamente ultrapassados, duplos,
na intensidade tensa de reuni-los
em floresta imensa, erguidos e coroados.
E de bosquetes para, aladas frondes,
serem dos deuses o repouso, ou de
nítidas cercas em triclínios calmos,
vieram concentrar-se na penumbra
em que o mihrab a um lado é uma estridência de ouro.
De novo um tecto é o que sustentam na viril
segurança para que são fustes. Mas um tecto só:
de toda a parte vieram, ruínas fulminadas,
suportes dispersos dos deuses e dos homens,
para alinhar-se múltiplos na escrita
marmórea e colunar da inefável glória
do nome que é um tecto horizontal
sobre o deserto humano, frio como as lages,
macio como a aragem que se enrosca neles,
cruel como a faísca que os derrubaria,
e ardente como o sol que amadurece
os laranjais do páteo.
                                      Vieram e ficaram
floresta exacta.
                          Alá partiu, deixando a branca
cidade às moscas, à poeira, às torres de onde
dura de sinos se tornou a voz
do muezzin cantando à tarde.
              
                                                   Mas
alguém pode partir de uma tão rígida
viril floresta: deuses traduzidos
e congregados para Sua glória?

7-8/1/1963

 

Se

É como se sentisse que a vida me foge. É como se,
das pontas dos dedos, eflúvio inútil, um magnetismo se
escapasse inócuo, sem penetrar as pessoas e as coisas. É como se
eu sentisse em mim um vaso, um lago, um mar, e se
esvaísse o nível dele. É como se um motor em mim se
ralentasse pouco a pouco. É como se
a fala, a minha e a dos outros, soasse com surdina e se
perdesse sem tinido num lençol de neve. É como se
um frio me cobrisse resistindo a tudo, e se
nenhum entusiasmo, nenhum aquecimento, nada, se
mantivesse em mim que os ouço e sinto e me ouço. É como se
nem mesmo a morte ou mesmo a sobrevida se
pudessem demorar mais do que isto. Se
ainda escrevo, estou escrevendo, escreverei, é como se
as palavras juntando-se criassem, mais do que um sentido se-
melhante a outros ou diverso, apenas um silêncio e se
fizessem fuga de que vivo só, alguém que assiste, mas não se
conhece vivo. É como se,
ouvindo e vendo, se
passasse ao longe tudo, e se
ouvisse e visse o que não se
ouve nem vê, Ou se,
em vez de nada, se
criasse nada, e se,
na melancolia de um sono imenso de que se
não adormece,
desse
um sono maior
do que o da morte ou do amor.

2/1/1966

 

 

Vita Brevis

A vida é breve mas que a faz mais breve
não é morrer-se nem morrer quem foi
connosco nela espaço forma e tempo.
Que mais que a morte a humanidade encurta
e torna mais estreita a nossa vida.
Só brevemente e por um breve instante
seu corpo nos concede. E brevemente
é que pensar deseja que existimos.
Antes de mortos, antes de sozinhos
e apenas visitados de memórias,
já todos somos um jornal antigo
deitado fora sem sequer ser lido,
ou somos uma imagem desenhada
na borda do passeio em que se exibem
pisando-a com os pés que desenham
seus mesmos rostos que outros pés já pisam.
A vida é breve, breve, mas mais breve
quanto a quer breve a estupidez humana
fiel ao tempo ainda em que de espaço
o tempo se fazia e o pouco espaço
na terra imensa a todos não chegava.

05/01/1971