1942 foi uma data de primícias editoriais para Jorge de Sena. Dentre elas, seu primeiro livro de poemas, Perseguição, editado sob a égide dos Cadernos de Poesia, pago por Ruy Cinatti e Tomaz Kim, e impresso na tipografia Atlântida, de Coimbra, graças ao papel ofertado por João Alves Gomes dos Santos. Iniciava-se assim a sua longa “servidão” à poesia. Dos 51 poemas que o compõem, selecionamos os seguintes:
Recusarei aos velhos a braseira —
foi conquistada muito para nada;
venham, dos bandos, despejá-la inteira…
comentem-na, por mim, bem comentada.
Venham mentir de sonho à minha beira
e que eu não tenha pressa agoniada.
Juntemo-nos à volta da cadeira
que, nessa beira, nos ficou pregada.
Quanto calor do assento ali vazio
encontrará, na palha da vaidade,
as brasas forasteiras de outro frio,
aquele mau cheiro terno da saudade!
Venham do mundo as dunas que estão sós;
reuna-se o deserto em todos nós.
2/1/41
Aqueles para quem não resta sempre uma simplicidade a trair
vêm pousar tão leves na saudade alheia
que nem os seus olhos se abrem
na imagem recordada
e a que ponto as ondas
vão convergindo para a independência
afluem brancas pálidas e de novo brancas…
até ao horizonte que esgota a solicitude,
afluem num debruçar translúcido das velas puras
por aqui, por ali.
Aqui e ali – não:
tu crês e aniquilas.
29/9/41
ao Alberto de Serpa
I
Há um inverno cansado nas copas extáticas
e as estrelas acendem-se de um vento alto
que azula o céu
de um azul que a noite vai roendo consigo.
As grades, ao prolongarem-se por aí fora,
trazem-me um sinal contínuo de muro falso
e enferrujado.
As grades não apontariam nada,
se cada uma delas se prolongasse também
no voo completo de ambas as curvas da seta.
II
Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.
E a noite que é como alguém que desce,
cheio de confiança,
os degraus de uma escada própria interminável
– os degraus serão sempre os mesmos,
nunca haverá outros degraus no fundo.
III
Contaram-me, quando era pequeno,
a história de várias estrelas,
não a história dos nomes que têm e não conhecem por nós,
sim uma história em que eram estrelas,
verdadeiras estrelas nem pregadas no céu.
Muitas vezes, ouvir contar foi só:
estar de cabeça pousada no peitoril da janela
a vê-las tremeluzir…
e tornarem-se mais salientes com o escurecer.
Muitas vezes, foi só
aceitar o frio e fechar a janela
– e, em pequeno, não era eu quem a fechava.
IV
Aquelas estrelas desenham um quadrado mal feito.
Nas noites claras de mar imenso,
enquanto a proa ia ensinando às águas
o murmúrio para depois, ao longo do navio,
os mastros procuravam devagar o centro do quadrado.
Para baixo do centro havia tês estrelas juntas.
Quando calhava passarem por entre duas,
repetiam todo o princípio
e vinham passar por entre as outras duas.
V
Já tudo escureceu;
contudo ainda resta algum dia
suspenso de onde veio a noite que chegou primeiro.
É de sempre este resto de dia
e acompanha-a pelo céu em busca das estrelas frágeis.
A noite, uma vez,
compreenderá que ele vem do mesmo lado que ela.
VI
Há um inverno nas copas extáticas
e as estrelas acenderam-se de um vento alto
que azulou o céu
de um azul que a noite foi roendo consigo.
VII
Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.
20/2/41
Que importa que todos me esqueçam
mesmo sem querer?
Que importa que a humanidade não exista
e apenas haja homens
embora vivendo, nascendo, morrendo, semelhantemente?
Se os homens são tantos que, procurando bem,
sempre se encontram mais alguns;
se são tão frágeis que mal podem cair;
e se eu sou tão desgraçado, tão ímpar, tão mental,
que tenho de voluntariamente
desejar amá-los.
23/3/41
Um dia acordarás do sonho em que te rodeaste
com almas pressupostas pela altitude do sonho.
E sentirás um grande frio è tua volta.
Quase nunca os olhos delas pousarão em ti;
circulam, circulam,
mas, quando pousarem,
mais sentirás do que frio uma grande vergonha,
uma tristeza enorme de ter sonhado ali.
Então nascer-te-á a chaga do espectáculo gratuito,
aumentará sempre que te aproximares dos outros,
embora, mesmo de longe, lhes sirva
de alegria para as certezas tranquilas.
16/8/41
Esta voz com que gritei às vezes
não me consola de só ter gritado às vezes.
Está dentro de mim como um remorso, ouço-a
chiar sempre que lembro a paz de segurança estulta
sob mais uma pedra tumular sem data verdadeira.
Quando acabava uma soma de silêncios,
gritava o resultado, não gritava um grito.
Esta voz, enquanto um ar de torre à beira-mar
circula entre as folhas paradas,
conduz a agonia física de recordar a ingenuidade.
Apetece-me explicar, agora, as asas dos anjos.
27/1/42