A morte vista pelo jovem JS

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A 4 de junho de 1978 falece Jorge de Sena. Bem antes, o tema da morte já inquietava o autor e percorria insistentemente a sua obra (vide Como se morre? e Eu e a morte). Ainda jovem, no fértil período dos anos de 1938 e 1939, quando escreve mais de 400 poemas, são vários os que evocam a “indesejada das gentes”. Dessa fase, que também registra a comédia em um ato com o título de “Luto”, selecionamos os três poemas abaixo, procurando vislumbrar nos versos imaturos o gérmen do poeta algo elegíaco que se agigantaria no decorrer dos anos. Versos iniciantes a assinalar o fim “que é de todos e virá”. Porém, como sabemos, 35 anos depois de nos deixar, Sena continua vivo e hoje avulta entre os maiores da Língua.

 

  • “Morte” (40 anos de Servidão)
  • “Imortalidade” (Post-Scriptum II)
  • “Necrológio”  (Post-Scriptum II)

 

MORTE…

 

Quando morrer

não verei o mundo apagar-se,

enegrecer,

à minha volta.

Morrerei de olhos fechados.

 

Mesmo quando morrer

jã estarão mais do que fechados

porque os fechei há muito

ao espaço que rodeia

a minha presença material

de cada instante…

 

Morrer para mim

não será deixar de ver,

nem de ouvir, nem de sentir qualquer coisa,

porque os meus outros sentidos

também descansam do cansaço

de não terem encontrado

o cansaço procurado…

 

Enfastiaram-se de monotonia…

Queriam outros perfumes…

outra gente…

outros horizontes…

e não tiveram nada,

tiveram mal,

ou tiveram para depois ficarem

com menos do que tinham…

 

Na minha morte

não há-de haver

despedidas dos sentidos.

As despedidas já estão feitas.

 

A minha morte

há-de ser só morte.

uma simples morte de morrer…

 

14/9/1938

 

 

IMORTALIDADE

O meu tempo começou quando nasci

mas não há-de acabar quando eu morrer.

Eu não sei terminar nada,

gosto de não saber

e tudo fica assim, no ar, indefinido…

 

A minha morte talvez seja incompleta.

 

Morrer é ocupar no espaço

uma posição que não depende da vontade.

Mas quem a ocupa é o corpo.

 

O Corpo deixa então

de existir no tempo.

 

Só o espaço ficará conosco?

Que direitos tem o espaço a mais do tempo?

Do nós que na verdade somos

não haverá um resto acorrentado ao tempo?

 

Se o espaço sem tempo não é vida,

talvez o tempo sem espaço o possa ser.

 

E eu fique assim

vivendo sem matéria…

 

E o meu tempo,

sendo então eu mesmo,

não há-de acabar quando eu morrer.

 

25/9/38

 

 

NECROLÓGIO

 

Terei terminado um rumo e então morri.

Não se fazem convites,

ninguém conhece o morto.

Só eu, já póstumo,

aqui estou na rua enlameada e escura

a ver passar o Fim.

 

Lá passam os carros com as flores

que eu próprio me ofereci por mim

e pelos outros durante a vida.

 

Agora é o carro em que me vejo a mim.

 

Agora um carro vazio.

 

Começa a chover.

Molham-se as luzes e apagam-se… uma… outra …

 

E eu guardo o cortejo na gaveta

para não se molhar mais.

 

25/ 12/39