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Há 50 anos: poemas de 1962

  • Categoria do post:Poesia

O ano de 1962 foi particularmente trabalhoso para Jorge de Sena. Nos primeiros meses do ano escreve a tese Uma Canção de Camões, com vistas ao ingresso, abortado, na Universidade Federal de Minas Gerais. Em termos de docência acadêmica, teve de dividir-se entre São José do Rio Preto e Araraquara — aqui incumbindo-se de três disciplinas: Literatura Portuguesa, Teoria Literária e Literatura Inglesa. Assim, imerso em lides universitárias, a sua produção literária stricto sensu, se comparada a outros anos, não foi das maiores. No entanto, dentre os poemas que ora completam 50 anos, há marcos importantes, alguns já antes transcritos neste site, como é o caso de “Uma sepultura em Londres”, “Requiem de Mozart” e “Pot-pourri final”. E o magnífico “A nave de Alcobaça”, que antes só editáramos em versão inglesa, agora reaparece em sua forma original.

Mas, dos 14 datados desse ano (a metade formando uma sequência cronológica no livro Peregrinatio ad loca infecta, 1969), vale destacar o quanto são representativos das mais recorrentes temáticas senianas, onde sobressaem as referências políticas e as grandes inquietações existenciais.

 

 

 

GLOSA DE MENANDRO

«Morrem jovens os que os deuses amam», dizia o poeta.
E eu pergunto: morrem velhos os que eles detestam?
O sábio antigo, cheio de rugas e barbas,
com os olhos vazios, de estátua, resumando
a sageza acumulada nas vigílias austeras
(ou não) – os dueses detestavam-no?
Entre a juventude e o amor dos deuses,
não teria ele escolhido a dor de envelhecer desamado
no vácuo ardor das paisagens marinhas
em que os deuses são a ausência de uma humanidade?
Ou nâo teriam deuses escolhidos que ele
escolhesse a dor de nâo armá-los, quando,
na plenitude marinha dos ventos e das águas,
os deuses sâo tâo-só o oceano sob o céu azul,
o céu zul tão-só no oceano reflectido,
o olhar vazio como o vento entre ambos?

1962

 

 

PEQUENO TRATADO DE DERMATOLOGIA

(intermezzo cubano)

De cada vez que um povo exige liberdade
– oh não bem o povo, mas os grupos que o grupo no poder
não inclui na partilha da pele do povo propriamente dito –
os clamores são comoventes pela democracia.
No entanto, é claro, nada pode fazer-se
que não clamar de mão no peito
(a outra coçando nos lugares impróprios),
pois que, em verdade, os poderes dos grupos
é sempre o poder dos grupos.

Mas de cada vez que, farto de palavras,
um povo estoura com tais odres rotos,
e faz deles passadores que esguicham
muito menos sangue que o chupado em séculos,
os clamores são, a mais de comoventes, trémulos
de indignação, não já co’a mão no peito
(a outra coçando sempre nos lugares impróprios),
mas exigindo acções colectivas em defesa da ordem,
da justiça, da liberdade. E sanções (e bombas).

Pois que em verdade o poder dos grupos
é sempre o poder dos grupos, e lá dizia o poeta
«qualquer morte de homem me diminui», e o número
de mercenários diminui assim terrivelmente,
neste mundo em que são precisos tantos para manter a ordem,
a justiça, a liberdade, sobretudo aquelas
que são feitas da pele de qualquer povo. E enfim,
considerando que a circuncisão é altamente uma prática higiénica
e desde há séculos predilecta de Jeová,
talvez que o grupo no poder nos quisesse vender
nem que seja um prepúcio em que investir capital.

30/1/1962

 

«NEL MEZZO DEL CAMIN…»

I

Quarenta e dois… Provavelmente já
vivi mais de metade a minha vida.
Provavelmente até, em mim escondida,
não como inevitável, mas guarda-

do fim com que termina tudo, está
a morte a me roubar da consentida
afirmação de que se finge a vida.
Provavelmente, não verei o que há

Além do tempo que me é dado. Não
assistirei às pompas da vitória.
Mas, se eu morrer de raiva, como cão

a que é negada a própria liberdade,
provavelmente não terei memória
de quanto a vida só me foi saudade…

II

…de tudo, sim. Não me contento nunca.
Não me contentarei. Mesmo que eu visse
mordendo a lama a secular canalha,
dona de tudo; e mesmo que ainda visse

liberta e justa a sórdida espelunca
de bancos e palácios, catedrais,
em que a arrogância dela se esparralha
– não me contentaria. Porque há mais

que mesmo dessangrados não vomitam:
os séculos roubados e mentido,
os corpos mortos de prostituídos,
o esgar humano com que humanos fitam.
E nem morte nem vida podem mais
do que apagarem sem deixar sinais.

30/1/62

 

 

POST-METAMORFOSE: VARIAÇÃO SEGUNDA

Cariátide retensa que o teu corpo é
na expectativa ansiosa do prazer lembrado,
sustentas sobre os ombros desmedidos,
e nas abertas mãos, o voo aflante
que te rodeia a pel’ salgada e fina
sob que, atenta, a carne rósea e espessa
palpita em sangue concentrado e duro.
Nos pés pousada e sobre os ombros tudo
o que invisível tece o trémulo dos dedos,
sustenta ancas, pernas, seios, pêlos,
e olhar perdido, e braços e cabelos.

Ondulam-te os desejos, cariátide!
Assim de pé, nas pernas afastadas,
na curva alada que, do queixo ao ventre,
alonga o mundo que em teus dedos vai,
como redondas nádegas tranquilas
de céu azul, pousar pelo horizonte
de adolescentes ancas, tu sustentas
o giro dos planetas; e, nos eixos
do sexo e do torso, a geometria
inscreve o gesto com que as ancas rodam
sobre si mesmas, pendulares, contidas
entre colunas que coluna tornam
a humedecida estátua que tu és.

Olhar vazio, ó templo demolido,
ó tecto aberto, ó treva esquartejada,
ó forma variável e perfeita
do que há e que não há! ó cariátide!
Pilar do mundo! Como é suave o braço
descendo dos teus ombros! Como é frágil
a firme decisão que pousa em ti,
dos ombros à cintura, da cintura às pernas,
e das pernas abertas ao espalmado pé
que assentas delicado sobre o tempo
escoando-se por saltos do desejo,
que te contraem, lambem, e deslizam
para o chão das cousas, para o pó que o vento
levanta em nuvens à tua volta. Quando…
Quando acabar, quando voltar teu sangue,
quando na noite ejaculares o brilho
dos astros coroando os teus cabelos,
quando, cariátide, os teus seios forem
a fonte de que mana vertical
esse universo que finito rói
a fímbria ausente ao nada ilimitado,
sustentas, ampla e diminuta já,
na curva dos teus lábios, na saliva
que entre eles petrifica as línguas tensas,
sustentas tudo nos teus dentes brancos:
o retornar do tempo, o repelir do gesto
que, aflante e alheio, te percorre toda,
senhora do destino, vida congelada,
que um toque liquefaz, salgada e fina,
em sangue espesso e negro, em mãos abertas,
em dedos afilados percutindo o espaço.

7/3/1962

 

 

A NOITE PROFUNDA

É de repente que a noite profunda chega,
como um enjoo, uma agonia, uma vertigem,
uma queda irreparável, no vácuo, no vazio,
na treva em que tudo perde significado,
em que não há gestos, palavras, sombras,
nem memórias de espectros e remorsos,
nada senão a queda repousada e lenta,
a descida tranquila, inenarravelmente amarga
de tranquilidade, indiferença, de abandono.

Repentinamente (a música tocava, a noite
física do mundo viera serena e perpassante
para ficar), a outra noite chegou
abrupta, inexorável, impiedosa,
feroz, cruel, tirânica, no entanto
extensamente e vastamente alheia,
tomando posse do que um corpo é,
posse por dentro, por fora, não deixando um vão,
um vão sequer que seja livre.

Descemos juntos por mim dentro
como se houvera algum recanto não prostituído ainda
à rígida amargura de existir sabendo
que nada há senão esta descida,
a uma hora qualquer, quando essa outra,
essa outra noite caí repentinamente,
fechando as asas negras sobre o que já negro
interiormente lhe pertence.

Tal como veio, partirá. De súbito,
o claro dia está. O sol de coisa alguma.
e é como se nada tivesse acontecido,
e o enjoo, a agonia, a vertigem, a queda,
não houvessem sido mais que imaginados.

Apenas, e é isso a alma, uma sensação
de nódoa, como de dedos, dentes, que apertassem,
mordessem algures no âmago da carne, lá onde
o âmago não existe senão como o que fica
de sentir-se a nódoa negra dessa uma outra noite.

18/05/1962

 

EXPULSÃO DA POESIA

Neste crepúsculo dos deuses que incendeia serenamente de púrpura
os massacres sem conta, e em que nada
é já significativo, porque tudo sempre significou alguma coisa
e não ressuscita ninguém (a ressurreição é
negócio individual, requerendo vítima, sepulcro emprestado,
alguns guardas, dedicadas mulheres, e vários fiéis
desinteressadamente interessados nela – enfim,
a ignomínia tratada com exemplar dignidade,
sem improvisos de última hora, nem excessivos
planejamentos ou ensaios, por modo a que
as imaginações possam com ela despersonalizar-se inteiramente
da sordidez sordidamente sórdida, etc.),
um fenómeno se verifica, observa, e que, ele, sim,
é altamente significativo.

Com efeito: ela cantou os tiranos, as revoluções proletárias,
as guerras todas de libertação nacional. Em séculos
e séculos, cantou ou chorou sempre nas
grandes horas. Ás vezes com atraso. Outras,
com adiantamento desagradável, sobretudo,
se era o caso de choro. Muitas outras vezes,
para dar-se importância, reles importância, inventou mesmo
as grandes horas. Quantas outras vezes,
se deixou matar de fome, de miséria e solidão,
para repetir com alegria infrene que
a imortalidade existe, que o céu existe,
e que a terra, só ela, a pobre terra, não existe.
Fizeram-se por esta letrada ciência os maiores sacrifícios
de vidas e papel impresso. Não comparáveis,
é certo, aos massacres habituais, em que
se molhava delicadamente a pena.

E, agora, neste delicioso crepúsculo que devia inspirá-la,
porque se cala, porque não canta nem chora?
Porque se limita a coçar o cu tranquilamente,
como prostituta honesta que se retirou da vida?
Com que então, a brincadeira acabou?
S. Excia já não serve? Já não é livre? Já não é
nem deixa de ser coisa nenhuma?
Então não era eterna, a voz da justiça,
a voz da liberdade, do mais profundamente humano,
não era imortal, mais que divina, mais
que o raio que a parta? Então
não era tudo isso e o céu também?

É que, meus amigos, a coisa está difícil.
A agonia chegou. O vómito que se não vomita.
Porque não se descobriu maneira de sair do beco:
a salvação é só de cada um, e diz respeito
a cada um, mas ninguém se salva sozinho,
nem se perde por própria culpa. E não é possível,
sem fazer cair as cotações da bolsa, ou a produção
que é necessário elevar para bater as potências capitalistas
na coexistência pacífica, que seja dado a cada um
o direito de arrastar os outros para
a sua pequena salvação pessoal.

A coisa está difícil, não é verdade, velha prostituta?
Como é difícil a paz! Como é difícil… –
Quanto veneno, quanta raiva, quanta miséria,
Quanta ignomínia, quanta falta de ressurreição
– sobretudo isso dói muito… – é preciso engolir!
E o ódio de que se tem vivido ou morrido?
Que fazer dele? Transferi-lo aos pedantes,
aos cretinos, calinos, alarves, bestas, cavalos,
safardanas, que se ocupam dos teus piolhos?
E valerá a pena? Os teus piolhos chegaram
às universidades, são classificados lá por outros que,
conscienciosamente, fazem o seu currículo de aracnídeos
ensinando aos outros insectos como evitar o DDT
e continuar comendo em paz folhas de livros.

Vai, puta! Já não enganas ninguém!
Leva contigo a tua corte de semis de tudo,
o homem macaco, a mulher eléctrica, o que voltou
da Abíssinia, o que se enforcou na
Vielle Lanterne (não confundir o lampião
com a rua), o que hipotecava casas
em Blackfriars, os que eram cegos
de um olho ou dois, o barbaças
das profecias, o soneteiro
suicida, o da picada
do espinho da rosa, ali!
(tecnicamente, um acúleo),
toda essa canalha solitária
de todas as cores e feitios,
tomando banho ou não,
fazendo a barba ou não.
Vai! Vai! Espoja-te no chão,
e pede humildemente que as crianças do mundo,
todas as crianças do mundo,
te mijem em cima.

26/5/1962

 

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As flores, solícitas, desfolham-se.

Há mais de uma década, ao fim de um longo poema,
verifiquei que assim era.

Que as folhas se desfolhem não é novidade alguma.
Que o façam solícitas, tão prontas como tudo
a despetalar-se de si mesmas, assumindo
o destino implícito na frágil inserção
das próprias pétalas, eis o que constitui
peculiar observação. Mas
será que importa muito registar
analogicamente este saber de nada,
tão antigo e vulgar, que não se vê,
não se ouve, não se considera
senão como imagem de como perdemos
de boa mente, de boa vontade, ou
gostosamente, numa resignação que é alegria,
numa jovial complacência, aquilo mesmo
por que sendo, nos somos e vivemos?

Solícitas, as flores deixam-se não ser
as flores que eram pelas perdidas pétalas.
E finalmente, ao fim, no fim das contas,
ou no fim de tudo, que flores
seremos nós? Eu creio petulância,
infantilidade, gosto de confundir,
além de irreparável pretensão à delicadeza,
esta mania analógica: um triste
hábito milenário de ser por conta de outrem
o medo de não ser por conta própria.
E não é tudo ainda, porque o hábito implica
perigos de grande gravidade. Com efeito
a gente começa por comparar aceitando,
por forma oculta ou inconsciente, o mimetismo
que o comparar assimilando arrasta;
depois, a gente não distingue já
a cor de coisa alguma; e daí a crer
que somos mesmo flores solícitas
solicitas se dando a desfolhar-se,
apenas vai um passo; e, dado o passo,
jamais seremos só, como compete, homens.

As flores não se desfolham.
As flores são desfolhadas por nós, pelas brisas,
enfim pelo que for a circunstância delas.
Não é destino serem-no, porque,
para passarem de flor a fruto,
elas estão estruturadas tais
que perderem as pétalas lhes é
perfeitamente consentâneo. Se umas perdem,
e se outras secam sem as ter perdido,
não é destino esta alternativa
que nem chega a ser de tão ocasional,
de tão fortuita, e tão inexorável
como morrer fecundo ou estéril, morrendo.
Se o destino fosse apenas isto,
nada haveria que mecanicamente não fosse
um destino fatal.

Solícitas as flores. Destino é isto,
mas não de flores. A escolha obrigatória,
mas livre escolha entre dois passos que
são já milhares de passos livremente dados
e limitadamente irreversíveis. Destino é não sabermos
se aquela escolha marca o transmutar
de tantos passos noutro ser diverso.
Destino é suspeitar, temer, que possa
irreparavelmente ser-se essa mudança.
E dado o passo, quando tal soubermos,
não seremos sequer os mesmos já
para sabermos, pois que o que nos fora
esse saber Ião longo de chegar-se ali
deixou de ser, e vai recomeçar
como do nada um novo e tentativo
saber aflito que, e todavia,
sem ser perdido aquele não recomeçara.
E que não é sequer um recomeço:
começa onde o outro se acabou, se visto
ao nível de se olharem flores
perdendo as pétalas no fim do tempo;
mas, se visto ao nível do dever
obrigatório de escolher, começa
como um salto no espaço para uma outra órbita.

Isto de órbita é porém um aspecto
da mesma mania analógica: o átomo
como sistema solar, etc., etc.,
tal qual havia o microcosmo, e o macro,
e os espíritos vagando no intervalo.
Quando, ah quando, os homens deixarão
de crer em tudo, de exigir que tudo
seja como tudo? Se tudo é como tudo,
o nada é como nada? Mas tautológico
é só o medo, o medo de escolher
entre duas coisas, dois entes, dois momentos,
duas coincidências diversas de milhares de instantes,
de que escolhê-las se nos faz o tempo,
tempo que foge no ampliar-se o espaço.

27/5/1962

 

A MISÉRIA DAS PALAVRAS

Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
Na liberdade.

Se a miséria e a pobreza
Fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
A imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
Viria a liberdade por acréscimo,
Sem palavras, sem gestos, sem delíquios.

Assim, apenas se fala do que se não fala,
Apenas se vive do que não se vive,
Apenas liberdade é uma miséria
Sem nome, sem futuro, sem memória.

E a miséria é isso: não imaginar
O nome que transforma a ideia em coisa,
A coisa que transforma o ser em vida,
A vida que transforma a língua em algo mais
Que o falar por falar.

Falem. Mas não comigo. E sobretudo
Sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
No silêncio que à linguagem faz
Imaginar-se mais do que o próprio mundo.

5/8/1962

 

REQUIEM PARA O MUNDO PERDIDO
É noite, eu sei. Mas como é tanta a noite
que nada resta humano entre os mortais?
Como tão negra e espessa, tão nocturna
ainda se esconde em luz do sol e em estrelas,
ainda a atravessa, embora fluído, o luar?
Como vivemos e porquê, se as sombras
nem sequer se projectam, devoradas
pelo restar das coisas insensíveis
que são vazio de órbitas sem astros
entrelaçados, virtuais, não sendo?
Porquê e para quê, se nada somos,
se nada mais sonhamos de completo
amor que a tudo mova e nos refaça?
Humanos éramos quando o desejo
nos dava a angústia de não sermos já
mais do que as coisas resistindo ao espanto.
Palavras inda são fímbria de sol,
de estrelas e planetas, são memória
da integridade que só espera nelas
o sopro derradeiro que a dissolva.
Nesta noite do mundo, nada resta
de humano e de sensível; nada resta
que tempo seja e que limite o espaço,
precisamente quando o tempo é espaço
que em si mesmo se move limitado.
Nocturna a noite é tão trans-noite que
nada somos nem fomos nem seremos
daquela falsa bem-aventurança
de quando o sofrimento nos doía
lá onde a dor era uma imagem cénica
no espelho embaciado que partíamos
sem que nenhum dos cacos rebrilhasse,
imagem que eram sem vidraça ou estanho.
Ali como a noite é tanta, como é noite
o tanto que seríamos felizes!
Mas não resta mais nada; instante a instante,
mortais mas não de humanos mais que efígie
parada, envelhecendo. E breves são
os toques delicados, a violência
de que palpita o triturar da carne.
Vento perpassa arrepiando efémera
a escassa pele tão crestada pela
secura em que águas se atomizam.
Falávamos de inferno. Acaso ainda é memória de um sentido? Acaso a mú-
sica ressoa no deserto mi-
croscópico e sem cor, gelado e quente?
Nem pegajosa ao menos se demora
a noite. É noite, eu sei. Nunca pensei
que o fosse tanto, tanto, que nem noite
— das órbitas vazias de partículas
anónimas voando em luz extinta —
obscura, inominada, noturnal,
zodíaco de meses sem figura.
E debruçado, pensativo, um rosto
sem traços ou feiçõs tem noite dentro
e fora do perfil, fora da linha
em que uma testa, o supercílio, as ór-
bitas, nariz, o recurvar dos lábios,
o queixo, linha são contínua e pura
de uma pureza que não significa.
Nem mesmo, noite em noite, esse perfil
se vê. Quem o veria? Com que olhar
e com que luz na treva iluminada?
Morramos de estar mortos, esvaindo
em pura perda que não existe
entre anjos que não há e os viventes
que como nós não vivem. Como pedras
sejamos, transmutáveis no destino
de raios que matéria se transformam
na perda em espaço do passar do tempo.
Pedras amantes e nocturnas que
se chocam como seixos nas espumas
do mar que os lava. Mas, se humanidade
subitamente vier de tanta noite,
de outrém será que não do espelho negro
de humano se não ser entre os mortais.

9-10/11/1962

 

NOÇÕES DE LINGUÍSTICA

Fumo névoa emanação
da boca: o dom da fala
o sentido sonoro
o gesto verbal
fumo da boca
exacto e vago
invisível
na China
apenas
a palavra.

*

Sinónimo
analogia
sentido paralelo
e o fumo — só na China —
impresso e desenhado
é som (conforme)
e conformado.

*

Dor uivo silêncio
muda mão
crispada
imagem
fumo na cabeça
nos olhos
confusa névoa
clarão
(na China não)

*
Como que tranquilo escreves e pontuas
frases consentâneas com ideias
que frases consentâneas com
ideias que frases consentâneas
com ideias que frases con-
o fumo foi transcrito.

*
A China parece que procedeu à reforma do seu alfabeto (dos jornais)
o vento varreu o fumo (dos dicionários)
e nós tão sânscritos tão gregos tão romanos
tão fonéticos morfológicos sintácticos
e sintagmáticos (que é mais)
sem ideogramas para o fumo
(das chaminés dos campos de concentração)
na ponta da língua
(de fogo dos foguetes nucleares)
que fazer?

*
Ideogramemos.

11/11/1962

 

A NAVE DE ALCOBAÇA

Vazia, vertical, de pedra branca e fria,
longa de luz e linhas, do silêncio
a arcada sucessiva, madrugada
mortal da eternidade, vácuo puro
do espaço preenchido, pontiaguda
como se transparência cristalina
dos céus harmónicos, espessa, côncava
de rectas concreção, ar retirado
ao tremor último da carne viva,
pedra não-pedra que em pilar’s se amarra
em feixes de brancura, geometria
do espírito provável, proporção
da essência tripartida, ideograma
da muda imensidão que se contrai
na perspectiva humana. Ambulatório
da expectação tranquila.
Nave e cetro,
e sepulcral resíduo, tempestade
suspensa e transferida. Rosa e tempo.
Escada horizontal. Cilindro curvo.
Exemplo e manifesto. Paz e forma
do abstracto e do concreto.
Hierarquia
de uma outra vida sobre a terra. Gesto
de pedra branca e fria, sem limites
por dentro dos limites. Esperança
vazia e vertical. Humanidade.

27/11/1962