A 4 de junho de cada ano, quando se cumprem anos sobre o falecimento de Jorge de Sena, recordamos alguns de seus poemas à volta da morte e do post-mortem, nos quais, sem disfarce, emerge a 1a. pessoa do singular, predominantemente em tom sombrio. As datas denotam o quanto o tema o ocupou, confirmando o forte veio elegíaco em sua poesia, já bem sublinhado por Rui Carlos Morais Lage na tese doutoral “A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI — perda, luto e desengano”. (Univ. do Porto, 2010; disponível em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/50420/2/tesedoutruilage000112866.pdf). “O desejado túmulo”, com seus laivos farsescos, merece ser cotejado com o “estouro’ do último poema escrito por Sena, duas semanas antes da “partida”: “Aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males“.
- “Epitáfio” (Post-Scriptum II)
- “Cessação” (Coroa da Terra, Poesia I)
- “Requiem” (Pedra Filosofal, Poesia I)
- “Epitáfio” (Fidelidade, Poesia II)
- “Elegia por certo” (Visão Perpétua)
- “O desejado túmulo” (Visão Perpétua)
- “Aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males” (40 Anos de Servidão)
Eu sou daquela espécie
de quem se diz depois da morte:
— a sua melhor obra foi morrer.
E contudo, e eles bem sabem,
todo o mal que tenho feito — tanto! —
só o fiz a mim;
e o pouco menos mau, que consegui,
anda p’raí todo emprestado aos outros.
Eles bem sabem…
o que é, é que uma pessoa assim irrita!…
Não sei sorrir em coro com os mais…
não sei falar…
nem estar calado…
e, quando seria preciso nem pensar,
penso que não sei.
Por isso logo que eu me for embora
(isto é, logo que eu ficar de vez)
haverá quem diga,
ai ocasionalmente na conversa,
que morrer
foi a mais perfeita acção da minha vida.
E tem razão —
Não sabe viver
quem não nasceu para isso.
Nascer, não é?, são coisas que acontecem.
3/9/38 e 15/10/39
Quando a morte vier, ou procurada
eu a tiver comigo apenas por um instante,
qual já nem for amante
a esperança conseguida à liberdade,
então do nada que a existência invade
alguma dor virá de não ter dito
que a vida eu não sofria como um rito
do Sol de outras manhãs. Expatriada?
Não. Que só a morte nunca existirá.
Sonharei — sonhará,
na treva, a cantiga:
Que luz não amiga
a treva será?
Nem longe, nem perto;
nem riso decerto.
Apenas um rumor de madrugada.
13/4/44
Serenamente será que eu morrerei
talvez já p’ra morrer sofra conforme
o fim da vida quando o fim vier.
Toda esta calma de saber a lei
do mundo e a angústia de o saber enorme,
alheio a mim sendo eu tão dele, quer
doendo longe, quer magoando perto,
sussurra ao vento como areal deserto
— e morrerei da morte que foi vindo
serenamente no pavor que a trouxe
todos os dias (altas horas, noites
de insónia, estradas solitárias,
apitos de comboio, cães ladrando,
uma criança dentro de casa chorando,
vidros partidos remendados a jornal,
candeeiros numa cave) – todo o mal,
ah não nem mal nem bem: só morrerei
serenamente, se estiver já morto.
E não verei o dia de amanhã!?
E não quererei vê-lo!?
(Sobre o cabelo
estará pousada a tua mão.
Não! Não! Não posso: meu amor, tu, não.)
9/4/47
De mim não buscareis, que em vão vivi
de outro mais alto que em mim próprio havia.
Se em meus lugares, porém, me procurardes
o nada que encontrardes
eu sou e minha vida.
Essas palavras que em meu nome passam
nem minhas nem de altura são verdade.
Verdade foi que de alto as desejei
e que de mim só maldições cobriam.
Debaixo delas a traição se esconde,
porque demais me conheci distante
de alturas que de perto não existem.
Fui livre, como as águas, que não sobem.
Pensei ser livre, como as pedras caem.
O nada contemplei sem êxtase nem pasmo,
que o dia a dia
em que me via
ele mesmo apenas era e nada mais.
Por isso fui amado em lágrimas e prantos
do muito amor que ao nada se dedica.
Nada que fui, de mim não fica nada.
E quanto não mereço é o que me fica.
Se em meus lugares, portanto, me buscardes
o nada que encontrardes
eu sou e minha vida.
8/1/1953
Neste desespero ansioso de que o tempo dure
um pouco mais, não corra tanto, se não escape
não por entre os dedos, mas através da própria forma das coisas
e do som das vozes, e do pensamento mesmo, se diria
que me devera dar como um doente à morte
e despedir-me calmamente do que se deslaça
entre mim e as coisas, entre mim e os outros, entre
a consciência de existir e a de estar vivo.
Devera, sim. E o sono que me envolve surdo e escuro,
sem memórias nem do que não tive, é uma tão doce tentação de paz!
Mas na verdade nunca foi assim
que me sonhei para morto ou vivo.
Nunca assim me vi como real sem sonhos.
Este sossego que se me oferece, para além
do desespero, deste anseio de tentar ainda
não aceitar que a vida não nos dá que dê,
não me pertence, não se me destina, não existe em mim
para que eu seja e viva, mas
apenas para destruir-me. Sinto
que a quem não deram nunca nada
não pode este tão nada
ser dado assim. Alguém que não existe
pretende destruir-me. Alguém insiste
em que eu me esqueça de contemplar, de ver, de desejar,
e de gritar que a vida é uma injustiça, uma
conversa de surdos, um amor trocado,
um pânico de idiotas ante a beleza do mundo.
Não. Não dormirei ao som tranquilo do fugir do tempo,
terão de inventar outra coisa para adormecer-me,
para levar-me daqui. Este diabo eu conheço.
O que promete a paz, a eternidade, a luz,
a salvação segura e garantida, a troco de aceitar-se
por grande riqueza uma miséria inútil, por beleza
aquilo que não tem nome ou voz, e por verdade
a doce estupidez do tanto faz. Não.
Para levarem-me daqui, quieto e calado,
terão de inventar outra coisa. Quem terá?
Importa muito pouco o perguntar de quem, porque
todos somos responsáveis pelo silêncio de alguém,
não porque a morte de alguém me diminua,
ou a minha diminua o mundo. O mundo é grande,
incomensurável com a unidade parca de qualquer de nós.
Todos somos responsáveis porque nós matamos
o espírito da vida, assassinamos
em nós e noutros esse amor que ri
da ausência de amor com que fingimos
amar-nos uns aos outros como a nós mesmos
ou a nós mesmo como os outros se amariam bem
se verdadeiramente amassem. Somos responsáveis,
porque matamos noutros o que os outros
matam em nós mesmos. Não repetirei
o perguntar por quem há-de inventar o quê.
Eu sei que esta resposta está em não podermos
aceitar que os outros não aceitem. Mas não aceito
nada — nem a paz dos outros ou a minha.
Quieto e calado, nunca. Nem quando me dessem tudo, e
se me abrissem todas as pernas do mundo,
e tudo fosse possível. Não seria com
o saciar-me de tudo, o enjoar de tudo,
que eu dormiria à sombra de uma luz que passa
lá onde eu sei que não há luz que exista.
E no entanto o tempo escapa a cada instante,
e quanto mais é meu mais se me escapa,
e mais se escapa quanto mais é o meu,
Este sono que fica, este furor de ter sono,
este «entanto» que teima inexorável não
como uma alternativa
mas como a morte viva
do pouco que me resta,
que direi que é? que farei dele?
como hei-de escapar-me a este embalo?
a esta fuga de tudo? este crispar da pele
como quem estremece de presença estranha?
Não perguntarei. Estas perguntas
são como cair em tentação de morte.
Direi do tempo que me foge, e farei
da crispação da pele e do embalo que me torna tonto,
um medo horrível que me aguente vivo,
e desperto, e atento. Atento a quê?
Àquilo mesmo que me mata. Não
há-de fazê-lo impunemente. A minha morte
sentirá calafrios de sentir-se vista,
espiada, seguida, observada, exposta
à irrisão das palavras que a denunciam.
Tremerá de medo, e de vergonha, a cabra.
Com quem julgava ela que devia haver-se?
E o tempo foge desfiando tudo,
rasgando as frágeis teias que aprendi
à minha custa e à das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real.
Pois fugirá, que fuja. Eu guardarei,
no vazio imenso que se mostra já,
uma pedra negra, dura, imarcessível,
que nada nem ninguém destruirá.
E se eu não for a pedra que terei,
eu ficarei na pedra que não é uma pedra
e tem de pedra tudo a mais do que nenhuma pedra
pode ter: este existir apenas virtual
que aqui lhe dou por declará-la tal.
Madison, 28/5/1966
Numa azinhaga escura de arrabalde
haveis de sepultar-me. Que o meu túmulo
seja o lugar escuso para encontros.
Que o jovem desesperado e solitário
vagueando venha masturbar-se ali;
que o namorado sem um quarto aonde
leve ao castigo a namorada, a traga
e a force e a viole sobre a minha tumba;
que o invertido venha ajoelhar-se
à beira dela ante quem esperma vende,
ou deite abaixo as calças e se entregue,
as mãos buscando apoio nessa pedra.
Que bandos de malandros ali tragam
a rapariga que raptaram, e
a deixem lã estendida a escorrer sangue.
Que as prostitutas reles, piolhosas,
na laje pinguem corrimentos quando
a pobres velhos se venderam lá.
E que as crianças que brincando venham
jogar à minha volta, sem pisar nos cantos
a trampa mais cheirosa do que a morte
e que é memória humana de azinhagas,
ali descubram, mal adivinhando,
as nódoas secas do que foi violência,
ou foi desejo ou o que se chama vício
e as lavem rindo com seu mijo quente
a rechinar na pedra que me cobre
(e regressem um dia a repeti-las).
25/12/1970
AVISO A CARDÍACOS E OUTRAS PESSOAS ATACADAS DE SEMELHANTES MALES
Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) —
— tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes.
Ou sejam todos quantos pavoneiam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.
Porque não há ninguém por mais que te ame,
ou por mais que seja teu amigo (e,
com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
que te perdoe que tu não tenhas estourado,
no momento em que se soube que estouravas.
É uma «partida» (ou um «regresso» sem piada nenhuma)
absolutamente e aterradoramente inaceitável,
humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás, como se diz,
com língua de palmo. Se és um pobretana,
solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas
que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito
uma tontura, um como que silêncio negro,
podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante
está livre de ocupações prementes para te acudir.
Uma que outra vez apenas, para alívio
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
e quando em desespero tu reclamas.
Não contes com mais nada senão morte.
Se tens família, amando-te sem dúvida,
inteiramente delicada a ti que seja ou é,
não penses que não és constante imagem
sem desculpa alguma de andar pela casa,
um pouco vacilante, às vezes suplicando
uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te
a fazer referências tidas de mau gosto
à espada que para onde vás segue suspensa
sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém,
até contraditoriamente porque te amam,
suportam que não sejas quem tu eras,
mas só morte adiada, o que é diverso
do horror de um cancro que não se sabe
quando matará mas é criatura de respeito,
crescendo em ti como se estiveras grávido.
Assim, meu caro, com coração desfeito
sem metáfora alguma, és apenas uma
indecorosa e miserável chatice.
Portanto, irmãos humanos, se estourais,
estourai por uma vez aliviando
quem vos quer ou não quer por uma vez.
19/3/1978
As circunstâncias à volta do último poema escrito por Sena foram registradas por Mécia, em breves e sentidas palavras:
Ia a entrar no escritório e vi que o Jorge escrevia um poema. Já não entrei e fiquei à espera que me chamasse para mo ler, como sempre fazia. Não chamou, e daí a pedaço voltei. O poema estava em cima da secretária. Li: “Aviso a cardíacos…” Comentei que era terrível, e “tu sabes que profundamente injusto para mim e para todos” – Olhou-me com uma tristeza infinita, e com voz magoada, tão magoada!, respondeu-me: “Eu sei… eu sei, mas é o que eu sinto”.
Entardecia. Estávamos de pé, no corredor, em frente à porta para o pátio. Sentíamo-nos ambos angustiados – e nem sequer sabíamos de que tínhamos de ter medo. A terrível notícia só veio onze dias depois.