Você está visualizando atualmente Crianças
JS e seus 9 filhos em Araraquara, julho de 1965

Crianças

  • Categoria do post:Poesia

A propósito do 12 de outubro, o “Dia das Crianças” no Brasil, uma breve antologia de poemas que têm nos filhos e nas crianças o seu mote, na trilha do paradigmático “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya“, já aqui transcrito.

 

 

O último dia

Crianças riem na varanda, riem
e brincam de maneira que já não são crianças.

Hoje não há Sol,
unicamente um céu esbranquiçado e carros que chapinham
e uma luz contínua que não entra dentro
e dentro um cheiro a terra, a pano, a sono,
a calor no rosto e nas orelhas.

As crianças brincam de pensamento morno,
umas com as outras sem mais nada.
E a ingenuidade, que nunca ninguém tem e lhes falta,
caiu aqui.

Este poema está errado.
Se não está, é o mesmo – não termina.

Repetir tudo várias vezes até não perceber.

1/10/39

 

Esgoto

I

Crianças pálidas brincam no esterco da rua
como se o esterco fosse a perpetuação do Sol
qual Sol que supurasse das paredes altas
em vão rodeadas pela mão da morte.

Alegremente o esterco toma formas náuticas;
um murmúrio de água incita-o com ternura,
um murmúrio no cano coberto de lages gastas,
um ciciar de restos não comidos, restos digeridos, vidas não geradas.

A cidade, do alto, é silenciosa,
porque as vozes não passam entre os beirais tão próximos.

Gerarão as crianças quanta vida ouviram:
algumas serão homens.

II

Para a verdade caminham corpos que a não conhecem
ou a conhecem apenas com nome trocado.

Assim desliza o vento pelas estradas humanas
entre as vozes das searas ondulando nele.

III

Ergo-me aflito da miséria do mundo.
Não basta que me erga ao nível das grosseiras máscaras
ou dos cruzeiros ingénuos de onde houve um crime.

Um crime é esta vida, e a atraiçoada cruz que lhe oferecem:
cruzeiro para povos que se entreolham trémulos,
para homens distantes (não vão eles viver…),
para mães que não têm a memória da carne,
para sinais do sangue de sacrifícios mal virgens,
para os poetas que buscam um contacto periódico…

IV

A miséria do mundo não existe,
nem o mundo existe:
andamos nós em bando sobre a terra.
Que o mundo é só a ignorância dos homens,
e a maior miséria dos homens só as palavras que os vivem.

25/5/42

 

Acção de graças

Às vezes, com minha filha no chão junto de mim,
Fecho os olhos numa ação de graças…

Mas logo ela galreia,
Nem isso me consente.

E regresso um pouco triste a uma alegria imensa.

1/10/50

 

Os filhos levam muito tempo a crescer

Precária a vida e consentida a morte.
Quanto eu julguei saber como assim eram!
Mas não sabia.

Morreram-me pessoas queridas
e é como se ausentes permaneçam;
mesmo quando morreram perante mim,
não foi à morte delas que assisti:
outrem morreu, que é outro alguém que morre.

Mas também isto ainda o não sabia,
como o sei agora,
se aos meus filhos o olhar se turva,
se não sorriem logo, prontamente,
ao mais singelo aceno desta vida
que tão precária acena por meus lábios.

A morte é consentida: se a consentem?
Se se desdobram, numa imagem fixa,
que se perde,
e noutra que parte para sempre,
como se só ausente permaneça,
mas que nunca mais volta,
para viver precariamente
e morrer consentidamente
depois de a morte a mim me haver vivido?

Tudo isto meus versos o sabiam,
que não eu.
E agora que o sei tão ansiosamente,
leio estes versos e suspeito
amargamente que estes o não sabem.

9/5/51

 

As crianças cantavam

Era um silêncio como de inocência
em que as ouvidas vozes não surgiam
de algum sentido que nas coisas reste
de iguais palavras com que foram ditas.
Silêncio apenas, como que silêncio
de quando a aragem pelas folhas passa
e em ténue erguida poeira se adivinha.
De um tal silêncio escuso havia rasgos
alheios uns aos outros pelo espaço
e pelo tempo como brandos lagos
de límpida planura circunscrita.

Dando-se as mãos na roda
as crianças cantavam:

                                       D. Beltrão nunca sabia
de que lado tinha a espada.
Dona Ximena morria,
porque D. Pio a prendia
com fitas de madrugada.

Anónimos espelhos percutidos
pelos olhares do acaso, nenhum deles
era mais que a suspensão de estar-se ali,
sem onde ou quando, sem sentido ou forma,
e sobretudo sem memória alguma.
Silêncio eram como de inocência.
Silêncio apenas como que silêncio.

Dando-se as mãos na roda
as crianças cantavam:

                                      Na torre à beira do mar,
Dona Ximena fechada.
D. Beltrão nunca sabia
de que lado tinha a espada.

6/7/1953

 

Noções de Linguística

Ouço os meus filhos a falar inglês
entre eles. Não os mais pequenos só
mas os maiores também e conversando
com os mais pequenos. Não nasceram cá,
todos cresceram tendo nos ouvidos
português. Mas em inglês conversam,
não apenas serão americanos: dissolveram-se,
dissolvem-se num mar que não é deles.
Venham falar-me dos mistérios da poesia,
das tradições de uma linguagem, de uma raça,
daquilo que se não diz com menos que a experiência
de um povo e de uma língua. Bestas.
As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem
esquecidas noutras, morrem todos os dias
na gaguês daqueles que as herdaram:
e são tão imortais que meia dúzia de anos
as suprime da boca dissolvida
ao peso de outra raça, outra cultura.
Tão metafísicas, tão intraduzíveis,
que se derretem assim, não nos altos céus,
mas na caca quotidiana de outras.

Outubro, 1970