Aniversário

  • Post category:Poesia

O dia dos anos de Jorge de Sena, 2 de novembro, não foi particularmente fértil para o poeta. Dois poemas juvenis, recolhidos postumamente em Post-Sciptum II, e dois editados pelo autor, em Coroa da Terra e Arte de Música — eis tudo. Mas, dentre eles, o magnífico “Missa solene, op. 123, de Beethoven”, aqui acompanhado pela interpretação de Otto Klemperer à frente da Orquestra Sinfônica de Viena, exatamente a que Sena registrou em nota como “interpretação-base deste poema”. 
Mas essa data natalícia também nos remete ao poema “Mensagem de Finados”, do livro Fidelidade, o qual, quebrando a expectativa de aludir à celebração cristã do “dia dos mortos”, recebe a seguinte nota: “Este poema foi escrito e publicado em protesto contra os protestos que não subscrevi (como, de cabeça perdida, o fizeram alguns comunistas como eu nunca fui) pela invasão da Hungria, uma vez que, partilhando a opinião de António Sérgio, eu não protestaria de coisa nenhuma semelhante, lá onde não podia protestar de viver num país ocupado pelo salazarismo”. Exemplo, portanto, do comprometimento em poesia, que Sena tantas vezes exercitou, em nome da “fiel dedicação à honra de estar vivo”. 

 

 

 

O POEMA FALANTE

Ser poema é ser alguma coisa
que habitualmente se é sem dar por isso.

Poema puro, de mais nada,
aqui estou eu a dizer que o sou –
– tanto bastará p’ra me negarem.

2/11/39 – “doente”

 

 

ESPERANÇA PARA O DIA ANTERIOR

Na altura mesmo em que chegaste à porta
cruzava eu por ela… E apressei
o andar, e alteei o corpo, e dei
aos lábios queda… aos olhos visão morta!…

A luz por trás que ainda te recorta
à margem dos meus olhos!… Sim… Entrei…
lá estávamos os dois… não perguntei
nada… Como o futuro nos conforta!…

Só não entrei. Passei. Não é diferente?
…Ficou-me a impressão de teres tamanho…
Dava-te menos… Não sei ver de perto!…

E outra vez me feri dentro de gente…
Mas veio a decisão que agora tenho! –
– quando ontem lá passar… então é certo!…

2/11/39 – “doente”

 

 

BULÍCIO

Quarenta dias suspensos para concentração dos vermes
como o destino que audácia alguma enviará partido
no manto azul escuro de outras noites
mártires de auréola torta
não sei endireitá-la
esperam de mim um gesto de favor enganam-se
apenas vou de lado olhando as mãos banidas
e grito docemente a protecção de todos.
É branda a indignação
creiam-me por alto eu minto sempre
enquanto espero.
Durmamos hoje. Abramos hoje as águas
do ódio transparente enganam-se comigo
passem!
Passem. Falem que eu escuto, eu ouço
devagar
as vozes raras
e a penetração da esperança atinge
as cavernas menos solitárias:
uma aranha que passe e eu ouço-a,
uma flor que desista e eu quebro-a…
Viril a natureza e nem por isso
parará de erguer
o monumento de ervas cristalinas.
Oh olhos verdes cantantes!
pode um homem morrer sem fechar os olhos
pousar as mãos nos braços da cadeira
acariciar os braços da cadeira
enganam-se comigo
falem que eu escuto a despedida
a fome o despero
a queda as mães fecundas
e o medo que se arrasta absorto no sentido oposto.

2/11/41

 

 

MISSA SOLENE,OP.123,DE BEETHOVEN

Não é solene esta musica,
ao contrário do nome e da intenção.
Clamores portentosos,violência obsessiva
(por sob aqueles doces,lacrimosos)
de um ritmo orquestral continuado,
tanta paixão gritada, tanto contraponto,
que teimosamente impede que na tessitura
das vozes e dos timbres se interponha hiato
não de silêncio mas de um fio só
de melodia,por onde a morte
penetre interrompendo a vida.

É medo, um medo-orgulho, feito
de solidão e de desconfiança. Não
piedosa tentativa para captar um Deus,
ou ardente anseio de união com Ele.
não é também, com tanta majestade,
a exigência de que Ele exista,
porque o mereça quem assim O inventa.

É um medo comovente de que O não haja
para remissão dos pecados, bálsamo
das feridas, consolo
das amarguras, dádiva
do que se não teve nunca
ou se perdeu para sempre. É
desejo ansioso de que um Agnus Dei
se interponha (ao contrário da morte) mediador e humano
entre um nada feito música
e outro possìvelmente Deus.
E a esperança desesperada de que seja
uma grandeza nossa quanto fique,
de pé, no intervalo entre ambos.

02/11/1964