Seis Poetas Surrealistas nas Líricas Portuguesas

 Embora não se constituindo como uma estética que Jorge de Sena particularmente tenha privilegiado,  o Surrealismo português está bem exemplificado na seleção de poetas tidos como “surrealistas” presentes na 3a. série das Líricas Portuguesas, antologia que organizou e que teve sua primeira edição em 1958. Transcrevem-se a seguir as breves apresentações que deles faz. Atente-se particularmente na de António Maria Lisboa — poeta homenageado pelo Congresso Internacional “Surrealismo(s) em Portugal”, na evocação dos 60 anos de sua prematura morte, que neste 2013 se completam. O que aí diz motivará seu comentário de tempos depois: ”Creio não pecar por vaidade se disser que, fora dos círculos afectos ao surrealismo que prosseguia mais ou menos em volta de Cesariny, eu terei sido a primeira criatura não-surrealista a proclamar a grandeza de António Maria Lisboa, há vinte anos” (ver)

 

0002

 

1- JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS
2- ANTÓNIO PEDRO
3- MARIO CESARINY DE VASCONCELOS
4- ALEXANDRE O’NEILL
5- FERNANDO LEMOS
6- ANTÓNIO MARIA LISBOA

 

1. JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS

José Sobral de Almada Negreiros nasceu na Roça Saudade, Ilha de São Tomé, e não em Lisboa, como tem sido dito, a 7 de Abril de 1893. Fez os seus estudos primários e secundários sucessivamente no Colégio de Campolide, Liceu de Coimbra e Escola Nacional de Lisboa. De 1919 a 1920 seguiu estudos de pintura em Paris, e de 1927 a 1932 viveu em Espanha, onde trabalhou bastante em decorações de casas de espectáculos e outros edifícios. Realizou diversas exposições individuais desde 1912, e participou em várias exposições colectivas de arte moderna, quer em Portugal, quer no estrangeiro. Pela sua obra plástica, que o classifica entre os primeiros valores da pintura moderna; pela sua obra literária, que vibra de uma igual e poderosa originalidade; pela sua acção pessoal através de artigos e conferências – Almada Negreiros, pintor, desenhador, vitralista, poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte, conferencista, dramaturgo, foi, pode dizer-se que desde 1910, uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa, e uma das que mais decisivamente contribuiu para a criação, prestígio e triunfo de uma mentalidade moderna entre nós. Autor do Manifesto Anti-Dantas, componente do Grupo de Orpheu, colaborador de Portugal Futurista, de Contemporânea, de Athena, com larga colaboração em jornais e revistas, director de Sudoeste, descobridor da perspectiva dos ladrilhos no políptico de Nuno Gonçalves, Almada Negreiros é hoje uma figura de primeira plana. Mas, no conjunto da sua vasta e multímoda obra, a produção poética não ocupa, no conhecimento do público, o lugar a que tem jus. Poder de veemência apostrófica, força irónica, graciosidade formal, profundeza de visão, simplicidade total de uma expressão que reconquistou uma ingenuidade originária, são aspectos da sua criação poética sempre vigorosa e elegante, de uma extrema capacidade de visionarismo plástico, aliada a uma nitidez linear do estilo, um estile que equilibra o mais saboroso coloquialismo popular, e até lisboeta, com um poder de abstraccionismo geometrizante muito concorde com as orientações predominantes do seu entendimento plástico do mundo. Faleceu em Lisboa, a 15 de Junho de 1970.

 

2. ANTÓNIO PEDRO

António Pedro da Costa nasceu a 9 de Dezembro de 1909 em Nossa Senhora das Graças, Praia, Cabo Verde. Estudou Direito e Letras em Lisboa e frequentou a Sorbonne. Viveu em Paris, em Londres (onde durante a Segunda Guerra Mundial a sua atividade na BBC foi uma das raras vozes livres portuguesas), em África, no Brasil, etc., e os últimos anos da sua vida em Moledo do Minho (onde morreu a 17 de Agosto de 1966), tendo sido no Porto director, encenador e professor de teatro no T. Experimental do Círculo de Cultura Teatral. A sua acção encontra-se ligada a todos os movimentos artísticos de vanguarda e foi um dos principais animadores, a partir da fundação do agrupamento «Pátio das Comédias», da re-novação do nosso teatro. Pintor e escritor, expôs diversas vezes em Portugal e no estrangeiro, pertenceu ao Movimento Surrealista de Londres e foi à sua volta que se formou o primeiro grupo português. Foi fundador da revista Variante, um dos principais colaboradores de Mundo Literário e de Unicórnio e números seguintes desta publicação, e tem larga colaboração ensaística e crítica em jornais e revistas, além de volumes de crítica de arte. A sua versati· lidade – também como ceramista iniciou uma renovação formal – e o seu multímodo talento têm, aos olhos de muitos, desvirtuado a unidade essencial de uma notabilíssima personalidade, entusiástica e original, com um extraordinário sentido do sabor das palavras, e que escreveu uma obra-prima do «romance surrealista»: Apenas Uma Narrativa (1942), em que a imaginação, tantas vezes abstraccionante, do surrealismo adquire, como na sua pintura, um peso de regionalismo, de truculência campestre, de visão poética de uma realidade que transborda de símbolos verbais ou plásticos que são constantes da sua expressão. O mesmo sucede com a sua poesia, que foi evoluindo de uma lírica simplicidade à Guilherme de Faria, seu companheiro de juventude lisboeta, através dos aspectos fantasiosos e graciosos de certo modernismo, até um barroquismo cheio de gosto pelo concreto, que as experiências «dimensionistas» do poeta (o «dimensionismo», fundado por A. Pedro, era como que um ultraísmo poético-plástico) preparavam para a libertação surrealista. Lírico delicado e ao mesmo tempo rude, a sua poesia, em que o Minho raiano e marítimo e o surrealismo se foram cruzando cada vez mais, é uma das mais interessantes da sua época, e não tem sido estimada, nem o foi pelo próprio autor, devidamente.

 

3. MARIO CESARINY DE VASCONCELOS

Nasceu em Lisboa a 9 de Agosto de 1923. Fez estudos de Belas-Artes na Escola António Arroio, que prosseguiu depois em Paris. Igualmente se dedicou ao estudo da música. Vive habitualmente em Lisboa, e tem colaborado com artigos ou poesia em vários jornais e revistas. Fez parte, em 1947, do primeiro grupo surrealista de Lisboa, em cuja constituição teve importante papel, e do qual cerca de um ano depois se separou por discordar da orientação seguida. A sua volta e de António Maria Lisboa se formou então um grupo dissidente, que mais ou menos se desfez como o anterior entretanto se desfizera. Quer como artista plástico, quer como escritor, Cesariny de Vasconcelos prosseguiu a sua actividade, e pode considerar-se, sob certos aspectos, que foi o corifeu ortodoxo do movimento surrealista., se não a única, de todas as personalidades que o surrealismo interessou ou por ele passaram, a persistir numa maneira que tornou muito pessoal, graças a um excepcional talento de poeta. A sua poesia, que guardou, como a de Alexandre O’Neill, um ressaibo do neo-realismo que primeiramente o interessara, não é porém ‘irónica, mas intensamente sarcástica contra tudo e contra si própria, numa ânsia de autodestruição que por vezes culmina em admiráveis explosões de lirismo desesperadamente erótico, contraditório e angustiado. Usando uma linguagem muito lucidamente insólita, que contrasta com a veemência da expressão sempre hesitante entre uma singela ternura pelo quotidiano (em que às vezes aflora um lirismo muito tradicional) e a mera ferocidade de empregar trocadilhos, esta poesia vigorosa e sugestiva, constantemente à beira de extinguir-se ou de tornar-se uma imitação de si mesma, tem tido uma influência notável, nem sempre benéfica, dado que raro o poeta se preocupa com atingir uma clarificação da sua espontaneidade, o que aliás o surrealismo teórico não postula.

 

4. ALEXANDRE O’NEILL

Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhóes nasceu em Lisboa, a 19 de Dezembro de 1924. Depois de ter tirado o curso dos liceus e frequentado a Escola Náutica, empregou-se no comércio, e passou depois a exercer o jornalismo. Tendo-se interessado pelo neo-realismo, foi membro do 1.º Grupo Surrealista, formado em 1947, e colaborou em revistas e suplementos literários, como os do Diário de Lisboa e de A Capital. Em 1951, Cadernos de Poesia ‘dedicaram um número a poemas seus, nos quais predomina uma atitude surrealista, no entanto estruturada por uma ciência muito lúcida da expressão, e que atinge uma violência irónica rara na poesia portuguesa, cujo decantado sarcasmo se fica habitualmente pela indignação verbal. Os últimos livros revelam no mais unitàriamente como um lírico notável, que encontra, na solidez pro-saística da metrificação arcádica, num subtil junqueirianismo (sobretudo de A Morte de D. João), e na fluidez divertida dos «inventários» surrealistas, o suporte de uma expressão ao mesmo tempo sarcástica e sentimental, na qual são elevadas a quase preciosístico requinte, que não recua perante a citação ou a deformação de lugares comuns, as experiências irónicas da poesia antiga e moderna. Mas a sua maior originalidade será talvez a capa· cidade para, numa metáfora ou numa palavra, concentrar um complexo de significados moralísticos, cuja intensidade o poema, disfarçado em «exercício de estilo», utiliza e desenvolve, com um pessoalíssimo sentido do humor, seguramente equi·librado à beira da anedota e da gazetilha.

 

5. FERNANDO LEMOS

Nasceu em Lisboa a 3 de Maio de 1926. Cursou a Escola António Arroio e os estudos livres da Sociedade Nacional de Belas-Artes, tendo-se dedicado às artes gráficas, à decoração e à publicidade. Interessado pela actividade surrealista, participou, em 1952, na exposição realizada na Casa Jalco, que fez escândalo, e onde a sua pintura e as suas .fotografias se impuseram por uma profundidade original da visão. Partido para o Brasil logo depois de uma outra exposição que, em 1953, o confirmou como um dos mais vigorosos artistas plásticos contemporâneos, tem participado nas Bienais de São Paulo, sendo distinguido com diversos prémios de alta categoria, e tem exposto nos Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de S. Paulo. Pintor, desenhador e fotógrafo, a sua obra não-figurativa patenteia uma forte personalidade, dotada de um rico sentido poético que da realidade abstracciona subtilmente os elementos de uma penetrante e rude visão ‘ da vida, que surgia também nos poemas com que colaborou em Cadernos de Poesia e na publicação Unicórnio e números subsequentes. Esses poemas trouxeram ao surrealismo um tom de decidida e vigorosa aceitação da vida, sem o desespero ou o sarcasmo negro que tem caracterizado algumas expressões desse movimento.

 

6. ANTÓNIO MARIA LISBOA

Nasceu em Lisboa a 1 de Agosto de 1928 e morreu na mesma cidade a 11 de Novembro de 1953. Após breves estudos numa Escola Industrial, dedica-se inteiramente à arte e à filosofia. Em princípios de 1949, parte para Paris, onde trava contacto com vários artistas portugueses lá residentes e se inicia nas práticas ocultistas. No, regresso, faz parte do grupo surrealista «dissidente», que então daria ao movimento um novo surto, e do qual, com Mário Cesariny de Vasconcelos, foi um dos principais animadores. Volta a Paris em fins de 1950, regressando em Março de 1951. As maiores privações, a falta de ambiente, um destino hostil e uma personalidade excepcional levam-no à doença e à morte. A sua poesia, que é, sem dúvida, das maiores afirmações de potencial lírico das décadas mais recentes, caracteriza-se por uma profunda e visionária seriedade, que contrasta com li ironia ou sarcasmo ou o sentido plástico de outros cultores e continuadores do movimento surrealista entre nós. Uma intensidade destituída de veemência fácil, uma imaginação transfiguradora que possui ou busca uma concepção unitária do mundo, uma fluência que nunca sacrifica a expressão à rebuscada ou insólita originalidade – eis o que, se a morte as não destruísse em pleno voo, faria deste poeta malogrado uma grande figura, despojada das tonitruâncias e das piruetas ocasionais do surrealismo de escola, que aliás se sente quão apenas programàticamente o afloraram. A sua obra aguarda ainda a publicação completa e crítica que merece.

 

In: Líricas Portuguesas, 3 ed. Lisboa, Ed. 70, 1984 2 v.  p I-28, I-132, II-130, II-231, II-279, II-375