Prefácios à ‘Poesia’ de Helder Macedo

Dos escassos prefácios que Jorge de Sena assinou em livros de poetas seus contemporâneos, somente seu amigo Helder Macedo lhe mereceu mais de um. Primeiramente, Sena prefaciou-lhe a coletânea Poesia 1957-1968, vinda à luz em 1969, pela Moraes. Depois, quando a mesma editora preparava a edição ampliada da obra — Poesia 1957-1978 — a solicitação de “um Post-Scriptum que actualizasse e completasse aquele prefácio” seguiu para a California. Porém, a morte colheu Sena antes de ele poder concluir o texto iniciado. Abaixo transcrevem-se os dois, o completa e o inconcluso, precedidos da esclarecedora “Nota do Editor”. Ressalte-se nestas apresentações críticas de Sena a ratificação de juízos já emitidos em carta de 1964 (ver): “Você é dos poucos que consegue que uma frase passe de um verso para outro, e com sujeito e predicado, como nos velhos tempos da gramática, e sem desencadear um arraial de comparações absurdas ou de abstrações sem sentido. Depois, encontro ainda, nos seus poemas, uma segurança rítmica que também é importante, quando parece que, em Portugal e no Brasil, toda a gente tem vergonha de acertar pelo menos ritmicamente um verso, a menos que logo empunhe, para a quadrinha a viola. E uma certa displicência no uso dos temas e das ideias poéticas, certo humor interno, igualmente me agradaram muito.”

 

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NOTA DO EDITOR

Para a edição, em 1969, da colectânea de poemas de Helder Macedo, Poesia (1957-1968), preparou Jorge de Sena um prefácio. Para a nova edição do livro que agora se apresenta ao público, ampliada com uma nova secção importante, O Lago Bloqueado, prometera Jorge de Sena escrever um Post-Scriptum que, actualizasse e completasse aquele prefácio. Quem conheceu Jorge de Sena, sabia que, nele, uma promessa era uma garantia: para isso contribuíam a sua grande integridade, um conceito de fraterna lealdade que não há muito exemplos entre nós e uma energia física e intelectual que não cessava: de deslumbrar os seus amigos, admiradores e até detractores. No caso vertente, Jorge de Sena fez, porém, mais do que prometer: chegou a começar a redação da prometida adenda ao prefácio.

De uma carta de sua viúva e excelente colaboradora, Mécia de Sena, dirigida a Helder Macedo, retiramos com sua permissão, a seguinte passagem: ‘De todos os trabalhos que considerava urgentes, acréscimo ao seu prefácio, estava na primeira linha. Constantemente dizia que era o que faria em primeiro lugar, mas, afora as explosões da cruzada de fúria santa que, o acometeu mais do que nunca, e que, quanto mais repenso estes dois meses, mails pasmo como teve forças de escrever, quando, a própria letra se lhe já desfazia se escrita à mão, não lhe deu a vida tempo para nada senão para ler devoradamente até que quase já nem o livro aguentava segurar (…). Mais, em todo o caso, ainda fez o esforço de tentar escrever a sua prosa que não passou do princípio e que lhe mando porque lhe pertence, como prova duma palavra impossível de cumprir. Na primeira página de «O Lago Bloqueado» há um memo: «notar os espelhos de antes e o Narciso de agora» e marcados os finais «não temos mais…», «Não rejeito o amor/…», «Cada vida é um corpo a fecundar/…», «Assim de novo quase, nos cumprimos». É pouco mas diz muito do gosto que de punha: em ter acabado’.

Jugámos importante publicar o pequeno fragmento do Post-Scriptum que Jorge de Sena planeava completar, não só pelo aspecto simbólico que essa publicação reveste, como alinda – e é o mais importante – pela pista reveladora que nele se contém para uma eventual leitura, porventura ainda não feita, da poesia de Helder Macedo.

Lisboa, Dezembro de 1978

 

PREFÁCIO*

Em 1957, Helder Macedo estreou-se em volume com Vesperal, um livro muito belo, de um equilíbrio refinado e de notável domínio da expressão e do ritmo Era então muito jovem, tinha cerca de vinte e dois anos, e nesse ano lançara, com António Salvado, as Folhas de Poesia. Os anos 1950-56 tinha sido, após a 1ª série de Cadernos de Poesia, a revista Mundo Literário, e a agitação Surrealista, os de Távola Redonda (1950-54), Árvore (1951-53), as duas séries seguintes de Cadernos de Poesia (1951-53), A Serpente (1951), Eros (1951-58), Graal (1956-57), etc. Também de 1957 foi o início das fascículos de Notícias do Bloqueio, e do ano seguinte as de Cadernos do Meio-dia. Em 1961 aparecem a nova série de Bandarra e «Poesia-61», quando, em fins de 1958, a antologia Líricas Portuguesas, –  Série, da Portugália Editora, preparada pelo autor deste prefácio, trouxera um «status» editorial público aos poetas nascidos entre 1909 e 1929 (com uma excepção para Antónia Gedeão, de 1906, mas revelado primeiro em 1956), ou sejam a gente que fizera o «neo-realismo», Os Cadernos de Poesia, o surrealismo e a Távola Redonda, com alguns poetas mais ou menos distantes destes grupos (que, na maioria dos casos, o não foram), ou marginais a eles, mas igualmente representativos da variada gama de tendências que havia assumido, com maior ou menor audácia, a vanguarda poética, depois da morte da presença, ou havia sida continuada com maior ou menor conformidade no que ela também representou de fusão academizante com tendências e formas de expressão e de tratamento rítmico anteriores à revolução modernista de 1915. Com muitas recorrências e entrecruzamentos, os poetas nascidos depois de 1930 (e esta data é, como todas as datas, algo arbitrária), ou seja de Herberto Helder para diante cuidado com a confusão de Helders! –, foram e são personalidades que tentaram, e por vezes notavelmente têm realizado, o que habitualmente se designa por novos caminhos. Isto não dizer que as anteriores, muitos deles, a não tenham feita ou continuem fazendo: sob este aspecto, a actualidade da poesia portuguesa não é menos valiosa ou menos interessante que muitas outras mais internacionalmente prestigiosas. Mas é caracterizar que, enfim, agente começa a poder abrir um novo livro de poemas, sem o temor agoniado de achar nele os que Miguel Torga desdenhou de escrever, ou os ecos do Fernando Pessoa ele mesmo e de Álvaro de Campos (conforme as criaturas escreventes pendem mais para a redondilha ou para as fáceis anáforas versilibristas).

Os poetas que se desenvolveram nos anos quarenta e cinquenta deste século haviam, de um modo ou de outro, repelido os credos «presencistas» (se alguma vez tal coisa existiu coerentemente para lá da que foi a expressão de certas figuras, ou persistência delas no exercício impenitente da crítica): aderindo mais ou menos a noção de uma missão protestativa da poesia, preferindo o refinamento estético do famigerado «humano», ou experimentando com o surrealismo. Alas a tendência dominante dos- anos 50, para lá da diversificada gama de personalidades, foi a de um apuramento formal da sensibilidade poética, e de uma muito lúcida elegância da expressão. Neste contexto, pode dizer-se que Vesperal de Helder Macedo foi, em 1957, um dos livros mais perfeitos que por esse tempo se publicaram.

Não era, como outros o não foram, uma abra epigonal, o que só sucede quando os poetas repetem e mastigam, reduzida a cliché e a receita, quanto a época lhes oferece no arsenal das experiências defuntas. Era, porém, um livro difícil para a jovem que a publicava, porque nada há mais constrangedor para um poeta do que estrear-se com o domínio de uma linguagem que sua fez do melhor e mais vivo que a tradição próxima lhe aponta como passibilidades expressivas; e também porque um livro assim corre grandemente o risco de a crítica precipitadamente ver nele a carácter epigonal que ele indica mas não é. De certo modo, um poeta que juvenilmente se estreia com tão singular perfeição terá de lutar consigo mesma muito mais que outro que se estreie como quem procura e não como quem encontra. E este livro de agora, em que o de estreia aparece seleccionado, e seguido por uma dúzia de anos de actividade poética em fases sucessivas, precisamente prova a que acabámos de dizei- e algo mais: tanto o primeiro livro não era epigonal, que o poeta soube libertar-se dele e ultrapassar a elegante beleza desses poemas, para criar uma diversa expressão, mais ressoanante e profunda, se bem que felizmente menos imediatamente bela. Porque a poesia não tem que ser bela, mas sim verdadeira. O que esta verdade seja depende inteiramente do poeta enquanto tal e de cada poema que escreve. Procuremos caracterizar qual é a deste.

 Em 1957, o poema titular de Vesperal era formado por quartetos de decassílabos (medida então muito do poeta), rimados abab, e cada um deles uma fechada unidade estrófico-semântica. O enjambement semântico se dava entre o último par de quartetos, para a asserção final. O sistema de rimas usava de todos os sons vocálicos simples (com excepção do a fechado), e em dois pares de rimas um ditongo (ia e ôi) – mas a predominância ia para o i e o u que, em partes iguais, tinham à sua conta metade das rimas. Tão habilmente isto era feito, que as primeiras quatro rimas eram todas em i, alternando o u com o io no quarteto seguinte. No 3.º quarteto, a alternância era á é, precedendo, no 4.º quarteto, o retorno do i, mas alternando com o u. O 5.° quarteto era em ôi-ê” precedendo um retorno do i, no 6.º, mas alternando com ó. Mas, para o par de quartetos finais, as rimas eram a alternância do u-ô, seguida da de á-u. E toda esta subtil graduação de sons vocálicas em rima consoante era acompanhada por assonâncias e aliterações, e como ela em estrita associação com o desenvolvimento do discurso poético, como o leitor poderá verificar, lendo silabadamente e com, atenção ao sentido. A dicção era de uma grandiloquência contida e abstraccionante nua de imagens mas densa de metáforas. Nos trinta e dois versos, todos os substantivos são adjectivados ou acompanhados de determinativo com excepção (pela ardem por que aparecem) de: rosto, vida, sangue, voz, noite, nada, mundo, liberdade. No último verso mais três substantivos isolados definem aquela «liberdade» (de quem nada tem, e para quem ela é por esta ordem – sarcasmo, passatempo, culto). A essencialidade substantiva da sequência acima apontada é precisamente o eixo semântico do poema desde a aparência da imagem à vida que a anima, ao sangue que é a mesma natureza da vida à voz que do próprio sangue brota, à noite do nada, de que esta voz se faz ouvir no mundo, em busca da liberdade. E esta, se frustrada – e os oxímoros evidentes ou subentendidos do poema apontam para uma denúncia desta frustração -, só se dignifica pela passagem, todavia irónica, de sarcasmo a passatempo, e de passatempo a culto. Como se vê, e não precisamos de pseudofilosofar literatamente sobre o «sentido» do poema citado, estava-se em face de uma peça lírica carregada de tonalidades contraditórias, que prosseguia com o vigor de uma demonstração’ para a culminância final. Mas tratava-se de um lirismo que se recusava à facilidade sentimental, ao emocionalismo superficial, à retórica convencional, como à fluência imediata de um discurso tradicional. As adjectivações insólitas (muitas vezes locuções adjectivas), as inversões sintácticas, os apostos intercalados, criavam uma atmosfera de solenidade expressiva, finamente associada à cadência rítmica dos versos, em que o melhor de quarenta anos de modernismo, de 1915 a 1955, se decantava numa expressão notável.

Tomemos agora, da última sequência deste livro de agora, o últimos dos poemas: VI de Orfeu, que o poeta declara de 1968:
 

Não há luz antes das sombras
Nem vida antes da morte
Há um óvulo vazio
fecundado
pelo corpo que o meu canto construir.

 

Este pequeno poema mostra que a abstração metafórica persiste e é uma característica profunda e permanente do poeta. Mas o discurso poético simplificou-se, tornou0se mais directo, e, ao mesmo tempo, menos regularmente musical. A este último respeito é mesmo interessante apontar como o poeta fez de um decassílabo heroico, quebrado pela cesura, os dois penúltimos versos, ou como «errou» outro no último, introduzindo-lhe um «por» inicial. Todavia, a expressão ganhou em real complexidade profunda, Note-se como quem fecunda não é o «canto», como qualquer poeta superficial diria, mas, realisticamente, o corpo que esse canto construir. Mas fecunda o quê? Um «óvulo vazio», O que pode significar que, antes de fecundado, ele é como que vazio; ou significar que, mesmo fecundado, ele continuará vazio, Todavia, ele é o que há, por oposição a não haver luz antes das sobras, nem vida antes da morte. Ou seja, a morte e as sombras não existem senão depois de, respectivamente, haver vida, e haver, ou ter havido, luz. Antes da morte e das sombras, só pode haver, no contexto, um óvulo vazio a ser (ou que seja) fecundado pelo corpo vivo que o canto de Orfeu constrói, isto é, o canto do poeta como expressão criadora de um sentido de vida, ainda que esse sentido possa criar-se do nada ou ser nada ele mesmo.

Central a este livro é a sequência de seis poemas Os Trabalhos de Maria e o Lamento de José, em que a vida de Cristo («Anunciação», «Natividade», «O Deserto», «Crucificação», «Ressurreição») é simbolicamente contada do ponto de vista de Maria, em quem ele foi gerado, e se conclui por um epílogo em que é José a resumir o drama, do seu próprio ponto de vista. De uma grande intensidade dramática e desinibida violência de expressão na análise da situação mitológica em que Maria e José se vêem colocados por força do papel que lhes é destinado, estes poemas distinguem-se por uma elevada concentração de metáforas referentes à geração, gestação e parto, em que raras vezes a sugestividade poética terá criado uma tão opressiva atmosfera digamos «visceral», em contraste de um destino espiritual e divino. Os versos quebram-se, paralelizam-se arritmicamente, definindo um ritma sacudido e arquejante, e que rimas consoantes finais não interrompem. Quer-nos parecer que esta sequência, para lá de admirável qualidade em que se situa, marca o eixo crucial entre o momento inicial e a final, representados nesta evolução de um poeta, que a presente colectânea selectiva é, e que acima representámos por dois analisados poemas.

 Com efeito, não a expressão progride em desarticulação rítmica até eles, como certo humor sarcástico que, na poesia interior, se escondia sob o aparente rigor de uma linguagem contida mas eloquente, surge no primeiro plano, o que vemos suceder no primeiro poema de «O Sete». É muito interessante notar que, entre os ingredientes desse humor, são eminentes as alusões sexuais que constituíam o suporte da violência expressiva de Os Trabalhos de Maria e o Lamento de José, e que vinham aliás sendo uma subterrânea corrente manifesta em muitas das construções metafóricas dos poemas anteriores.

 A presente colectânea mostra-nos pois um poeta que, partindo de uma acabada expressão, cria e desenvolve a sua libertação de quanto convencionalismo expressivo elaborara como seu, em busca de reformuladas formas de comunicar a sua experiência. Não se trata, de modo algum, de um poeta que procura, como é costume dizer-se, «novos caminhos». Mas de um poeta que prossegue logicamente o seu desenvolvimento, a partir de um domínio formal que corria o risco de tornar-se uma sua «maneira» o maior perigo de quem começa senhor da sua expressão. Por outro lado, a experiência que o poeta comunica não é aquilo que habitualmente se imagina ou aceita como tal, na crítica literária ainda presa a esquemas ultrapassados de pretenso humanismo subjectivo. É coisa muito diversa: a experiência do poeta enquanto tal, e não a do poeta como tal, que era aquilo que iludia e com que se iludia e ilude essa crítica. Ou seja: a experiência que resulta de o poeta conhecer-se enquanto poeta, sem pré-estabelecer romanticamente que, nele, o ser poeta é um privilégio especial que o desculpe de não elaborar profunda e interiormente os seus poemas. Num dos melhores conjuntos de poemas deste notável livro, é isto mesmo o que Helder Macedo afirma, ao terminar um deles:

 

……………………………………
e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.
 

O que, assim, poderia ser dito por um poeta que considera como domínio da expressão mais válida o que estiver além e para fora da «subjectividade» com que a si mesmo se haja encontrado e definido. E não é pois evidentemente par acaso que um outra grupo deste volume se chama exactamente «Das Fronteiras» (é o segundo livro de Helder Macedo, publicado em 1962). Dessa viagem para fora das «fronteiras» de uma expressão adquirida, ou de uma visão que possa tornar-se habitual, ou da própria e limitada experiência humana de cada um na sua subjectividade, é este livro como que o regista e o poético arquivo. Mas não é como viagem descrita que o livro vale e sim pela qualidade intrínseca, Qlbjectiva, de cada pO’ema por si mesmo. Não é um «diário» poético, mas a colectânea selecta do que um poeta autêntico pode encontrar, se cruza as suas «fronteiras». E não são muitos, na poesia portuguesa de hoje, os que tenham conseguido, com igual êxito, libertar-se de si mesmos e dos constrangimentos de uma expressão que, na maioria das vezes, não chegaram sequer a adquirir.

 

Madison, Wisconsin, USA, Julho de 1969

 

 

PS-1978

Em 1969, vai para nove anos agora, pediu-me Helder Macedo que prefaciasse a sua colecção de poemas, Poesia (1957-68), que agora reaparece, ampliada no conteúdo e na data, com uma nova secção O Lago Bloqueado que é uma sequência per se, tal como a vejo, e não uma selecção de poemas que o poeta haja entretanto recolhido do que escreveu nestes anos. Nestes decorridos anos de silêncio poético em volume, tornou-se ele crítico de Cesário Verde, com um estudo que causou alguma controvérsia, e um estudioso de Bernardim Ribeiro, com uma, importante e perturbante análise que, como seria de esperar, e a menos que, eu esteja mal informado do que se tenha passado em algum adro das lusitanas, aldeias literárias ou doutas ou ambas as coisas, não causou controvérsia nenhuma. Não menciono estes escritos para insinuar que os anos passados os gastou Helder Macedo a fazer-se, douto e crítico, com prejuízo da poesia – ele e os mais honestos dois meus leitores deste prefácio sabem que tanto ele como eu somos demasiadamente «estrangeirados», ele vivendo na Inglaterra (o que sempre é Europa), eu desgraçadamente no outro lado Atlântico (o que não é portuguesmente, coisa nenhuma), para que eu insinuasse coisas tão lucidamente como ver contradição entre ser-se douto e poeta. O que eu pretendo apontar é que ele, tão lucidamente criador desde a juventude como apontei no prefácio que actualizo agora, Helder Macedo, além de «estrangeirado», ingressou naquela categoria de poetas que são suspeitíssimo em Portugal, a não ser que lá vivam, lá ensinem, ou lá se tenham formado à sombra daquelas poéticas almas catedráticas que, como sabemos, por séculos e décadas, povoaram as cátedras portuguesas, com excepção de algum Nemésio que a gente nem entende como o deixaram sentar-se lá dentro. Além de que pôr no mesmo saco da nossa bagagem de livros críticos o «sentido oculto» de um Bernardim (tema absolutamente risível para os espíritos fortes, alimentados no, materialismo que nunca soube nem sabe que seja dialéctica, ou no, positivismo tradicional das supracitadas instituições supostamente de ensino) ou uma leitura «realista» de Cesário é contribuir excessivamente para a confusão das almas que, em Portugal, felizmente, vivem em permanente estado de bem-aventurada ou agónica confusão, preocupadas com a maneira de salvarem-se a si mesmas e aos seus corpos, para fora do lago bloqueado em que se meteram, e aos outros. Isto, no que aos citados livros respeita, independentemente do que tenha, sido dito, e bem, deles por quem saiba ou não saiba dos assuntos tratados (o que, em Portugal, não teve nunca, e cada vez menos tem qualquer significado, se aplicarmos o grau zero da escrita a que se chegou).

E ai alusões acima feitas nos trazem a um dos aspectos mais curiosos do conjunto de poemas, que justifica a existência deste P. S. Não é segredo para ninguém que Helder Macedo é como ditemos, um «espírito comprometido». Mas terá escapado a muitos que, a sua poesia, em 1957-68, não era uma poesia «desinteressada», uma poesia sem sensibilidade para um comprometimento – bastará, dito isto, relê-la, para encontrar poemas e versos que reflectem a, atomosfera suspensa e fechada de uma cultura portuguesa que, muitas vezes, ainda que isso seja inadmissível que se diga, os «estrangeirados» ou os que· vivem fora quase sempre (sem viver,em como aqueles exilados de França ou Brasil, que não se davam conta de que não estavam no Chiado, e por isso não aprenderam, nunca aquela noção de perspectiva que a Portugal sempre faltou, centro do mundo que se julgam todos, mesmo quando não contribuíram para construir ou para abandonar impérios, o que sempre é mais que não fazer nada) são quem melhor pode ver, sentir e dizer. Outros, de dentro, poderão elevar-se e acima das trevas da opressão ou dos nevoeiros artificiais da liberdade – e também dirão. Todavia, a frequência com que, em Portugal, todos se tratam uns aos outros de «o grande», sem jamais terem arriscado a sua, pele de doentinhos, ou a saudável queimada em praias caras, faz pairar certa desconfiança sobre o que vêem, o que sentem, e o que dizem, para lá daquele umbigo que, se a memória me não falha, foi precisamente o actual Secretário-Geral do Partido do Comunista Português quem descobriu e de público denunciou, vai para quarenta anos, como vicio secreto de José Régio e da poesia não comprometida, S1egundo os cânones então recém-criados do realismo, socialista, que proíbe essas actividades aos seus associados, do mesmo modo que tem de aceitar que as canções andem na praça que já não é da Figueira nem tem folha de parra, porque não é preciso, trocadas que foram as vogais, como naqueles tempos sucedeu com um romance do mesmo nome em forma de tapa-vergonhas. O que faz a gente pensar que uma grande limpeza se necessita na confusão de que tanta gente se tem aproveitado de quanto rendam realismos e socialismo, ou vice-versa.

Por extraordinário que pareça, é exactamente de tudo isto, desde dentro e feito metáfora, que tratam os poemas de O Lago Bloqueado. Comecemos pelo título que é uma aparente absurdidade lógica e objectiva, já que, por definição, um lago é «bloqueado» de terra por todos os lados, tal como reciprocamente as ilhas o são de água.

 

In: Helder Macedo, Poesia 1957-1977, Lisboa, Moraes/Círculo de Poesia, 1979 p. 7-22

[*] Com o título de “Sobre Helder Macedo, ‘Poesia (1957-68)”, este texto foi reproduzido em SENA, Jorge. Dialécticas aplicadas da Literatura. Lisboa, Ed. 70, 1978 p. 333-343