O Surrealismo em Portugal

Por ocasião do 60º aniversário da morte do poeta António Maria Lisboa realiza-se em Lisboa, de 18 a 21 de novembro corrente, o Congresso Internacional “Surrealismo(s) em Portugal”, focalizando “como nunca até então se fez em Portugal, um dos movimentos literários, filosóficos e estéticos mais importantes do século XX português”. Sob esse mote, aqui trazemos um texto ensaístico de Jorge de Sena, originalmente escrito em inglês e datado de 1974, provavelmente destinado a uma conferência, no qual sinteticamente nos apresenta suas observações sobre o movimento e sobre alguns dos artistas que a ele aderiram.   

 

Grupo Surrealista de Lisboa, Portugal 1949. Na foto, da esquerda para a direita : Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. I Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949.

 

O surrealismo como movimento organizado começou em Portugal em 1947, no despertar do renovado interesse sobre ele, por todo o mundo, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O movimento como tal não durou muito, mas deixou uma profunda marca quer na literatura (sobretudo na poesia) quer na pintura.

Portugal foi talvez o primeiro país fora da França onde o surrealismo foi mencionado, poucos meses depois da primeira proclamação do novo ismo de Breton. Aconteceu isto, na mais insólita maneira, por um crítico imensamente conservador,[*] num prefácio a uma antologia de poemas de um bem firmado poeta simbolista, publicado em 1925. O crítico estava bem informado acerca dos fins e estilos do movimento na literatura, e mencionava-os para condenar tal anarquia que ele via como resultado último de toda a Vanguarda. No fim dos anos vinte e trinta, todavia, as actividades surrealistas como tal não tiveram repercussão, em Portugal, nos círculos de Vanguarda. Há que esperar até 1942, quando o meu primeiro livro de poemas apareceu, incluindo exemplos de escrita automática e escudado com epígrafes de alguns escritores surrealistas. Ao contrário do que foi erradamente escrito posteriormente, eu não fui nunca membro de nenhum dos grupos surrealistas surgidos em Portugal, e a minha aspiração como poeta (o que me levou a publicar em 1944 algumas traduções de textos surrealistas) não era ser um surrealista, mas alguém que escrevia depois do que as experiências surrealistas tinham vindo fazendo e dizendo. O meu primeiro contacto com o surrealismo data do fim dos anos 30, quando tomei conhecimento da agora famosa e infelizmente esgotada antologia editada por Georges Hugnet. Aquele meu primeiro livro, tal como o segundo em 1946, foi mal entendido pelos críticos que não podiam ver nem pés nem cabeça num não declarado surrealismo que eles não conseguiam reconhecer sem um claro e polémico rótulo.

Podemos, contudo, dizer que o surrealismo era completamente ignorado em Portugal desde os anos 20 até 1942-44? Porque não atingiu formas claras, antes de 1947, como movimento? Para entender isto e responder a estas perguntas, é importante saber alguma coisa acerca do desenvolvimento da literatura e arte modernas em Portugal.

A literatura moderna, na maneira agressiva do Vanguardismo, começou em Portugal com a publicação, em 1915, da revista ORPHEU, dois números, seguidos por um único número de Portugal Futurista em 1917. O «establishment» do tempo, rotulou como loucos os poetas da primeira revista, mas apreendeu a segunda pela polícia. Destas duas revistas três grandes nomes surgiram: o poeta Fernando Pessoa e Sá-Carneiro, o primeiro agora a caminho de reconhecimento internacional como um dos grandes poetas do século, e o pintor José de Almada Negreiros. As primeiras tentativas escritas em prosa poética de Almada eram já exemplos de corrente do inconsciente antes que Joyce o tivesse desenvolvido. Outras obras destes escritores foram esparsamente publicadas em pequenas revistas depois da grande aventura de 1915-17, mas a principal corrente das letras portuguesas seguia nessa altura as linhas pré-modernistas, como se eles não existissem.

Havia algumas razões políticas para tal. De 1910 a 1926 Portugal foi uma república combatida pelos conservadores e pelos monárquicos pretendendo o retorno do trono que caíra em 1910. A arte dos modernistas era demasiado revolucionária para os conservadores, e eles eram pessoalmente demasiado conservadores (ou apenas queriam pretender que a República era demasiado ordinária para eles) para que os republicanos não se sentissem suspeitosos. Só nos fins dos anos 20 e nos 30 a sua influência se começou a fazer sentir, sobretudo porque um grupo – centrado na revista literária presença – iniciou uma campanha em apoio deles. A gente da presença, com uma ou duas excepções, contudo, se eram a favor da arte e literatura modernas, e de um renovo da cultura literária portuguesa, eram também por uma espécie de «establishment» que não viam o experimentalismo e a Vanguarda como movimentos mas apenas como uma influência literária que apoiava o que eles chamavam a expressão do humano. Era uma espécie de humanismo literário muito na linha da Nouvelle Revue Françaíse. Mas, entretanto, em 1926, um golpe militar derrubou a República e a democracia, e iniciou o regime ditatorial que só terminou em Abril último, como toda a gente sabe. A luta da literatura moderna, tal como a da arte, foi terrível durante estes anos. A independência do espírito tinha que ser defendida a todo o custo e a todo o momento, enquanto, por um lado, o regime tentava integrar os escritores e artistas no sistema, e por outro lado, a censura e a polícia coarctavam todas as tentativas de inconveniente liberdade. Para complicar ainda mais, as doutrinas do realismo socialista começaram a ser pregadas em sentido muito rigoroso e eram forte e criticamente impostas, nos anos 30, por parte da extrema esquerda, e com ela uma espécie de suspeição de toda a Vanguarda como conservadora ou burguesa decadência. Não se podia, de facto, num pais tão oprimido e onde a pobreza era um escândalo público, proclamar doutrinas de arte ou puras literatura com consciência limpa, sem de um modo ou de outro jogar o jogo oficial. Mas não subscrever o realismo socialista, ou pelo menos não aplaudir os escritores e artistas supostamente a tal comprometidos, era correr o risco de ser marcado (secretamente ou efectivamente) quase como fascista. Muitos de nós nesses anos caminhámos em corda bamba. Só no fim dos anos 30 e nos começos dos 40, ajudados pelo facto de que a guerra clarificara naquele momento os alinhamentos políticos (nem um importante ou significativo nome das letras ou da arte alinhou com o fáscio), puderam alguns jovens poetas desafiar por sua conta e risco, e ao mesmo tempo, o «establishment» presença, e a frente do neo-realismo. Durante a guerra Portugal foi neutral, mas o governo nunca escondeu as suas simpatias para com o fascismo. Estar do lado dos Aliados era uma maneira de estar ao lado da liberdade, incluindo nela a arte e a literatura. Curiosamente, o papel que poetas como Aragon e Eluard, ex-surrealistas, desempenharam na resistência francesa, e o facto de que eles eram comunistas, abriu o neo-realismo português para alguns aspectos surrealistas, ainda que se não interessassem pelo surrealismo como tal, e tornou alguns destes aspectosem moda nesses círculos. Nos anos 30 e 40, sem directa referência ao surrealismo, alguns bem informados poetas como Vitorino Nemésio, Edmundo de Bettencourt, e Adolfo Casais Monteiro, tinham já incluído nos seus poemas certas formas menos rígidas e certos meios associativos de criar expressão. Mas foi só no fim dos anos 30 e começos dos 40 que alguns jovens poetas como eu tentaram a renovação do Vanguardismo de 1915-17, tendo em vista todos os desenvolvimentos da Poesia Ocidental desde então. A diferença entre estes então jovens poetas (José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Tomaz Kim, e eu, a quem normalmente são acrescentados pelos críticos Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade) e os jovens poetas que irão promover o surrealismo era que nós estávamos mais preocupados do que ninguém o conhecimento da linguagem e das literaturas além do francês e da influência francesa, que era esmagadora em Portugal, como ainda é desde o fim do séc. XVIII. Dadas as condições que descrevi, é compreensível que, desde os anos 20 até aos fins dos anos 40, nenhum movimento definido tenha começado em Portugal, e que os poetas estivessem mais interessados em experiências suas, se as faziam, do que em lançar formalmente fosse o que fosse.

O que aconteceu com alguns jovens poetas e artistas em 1947, sob a liderança de um poeta mais velho e pintor, António Pedro (1909-1967), tornou-se possível por várias e curiosas circunstâncias.  António Pedro tinha, durante os anos 30 e começos de 40, tentado, em vão, ser reconhecido como poeta e artista de Vanguarda, no despertar da geração 1915. A sua poesia desenvolvera-se de um elegante tradicionalismo em exercícios de Vanguarda que, no entanto, conservou o delicado sentido da terra e das coisas vivas que caracterizam a sua obra. Em 1940, uma exposição da sua pintura conjuntamente com pintura de António DaCosta (n. 1917) foi a afirmação de dois artistas igualmente distantes quer do neo-realismo quer da mitigada Vanguarda, ou do convencionalismo do séc. XIX que estavam ainda em voga nos círculos conservadores. De facto, as obras de ambos eram surrealistas sem o rótulo ou pretensão de serem um movimento. Em 1942, António Pedro publicou Apenas uma narrativa uma bela e poética novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua. Entretanto, e até ao fim da guerra, António Pedro trabalhou para a BBC em Londres. As suas emissões, em português, foram como que a voz da liberdade – uma voz que podia levar-nos à prisão, se apanhados a ouvi-la. Voltou a Portugal como uma figura conhecida de todos e o homem que, com Mesens, tinha organizado em Londres a famosa exibição surrealista de 1945. Quando voltou encontrou um pequeno grupo de jovens poetas e artistas cansados do neo-realismo pelo qual tinham passado e queriam seguir um movimento rebelde, diferente dos caminhos que outros tinham seguido nos últimos cinco a sete anos. Ao mesmo tempo, os anos de 1945-47, quando a ditadura de Salazar estava abalada pela vitória dos aliados, permitiam uma espécie de entusiasmo e esperança de mudança, que culminou, em 1949, quando Salazar anunciou eleições presidenciais às quais um vasto espectro da «oposição» apresentou um candidato (que teve de desistir antes da eleição por causa das perseguições governamentais).

Em Outubro de 1947 tinha havido uma reunião atendida por vários poetas e artistas jovens, e por António Pedro, que foi na verdade o começo do grupo Surrealista Português, e que coincidiu com a exibição organizada em Paris por Breton como renovação do surrealismo. Mas quando o grupo, aproveitando a oportunidade da acima mencionada eleição presidencial (durante a qual o governo levantaria a censura para permitir alguma crítica da oposição), abriu uma exibição de pintura e colagens no atelier que António Pedro e DaCosta tinham na «baixa» de Lisboa, o grupo estava já separado em dois: um em torno de A. Pedro, e o outro em torno do poeta Mário Cesariny de Vasconcelos (n. 1923). O catálogo da exposição (apesar do levantamento da censura …) tinha tido a capa censurada, porque era uma declaração apoiando o candidato da oposição para a eleição presidencial. Outras publicações foram lançadas ao mesmo tempo: Prato-poema da Serra de Arga, de António Pedro, um longo poema, A Ampola Miraculosa, de Alexandre O’Neill (n. 1924), uma narrativa feita de gravuras velhas, e um Balanço das Actividades Surrealistas, de José-Augusto França (n. 1922), que se tornou mais tarde um conhecido crítico de arte. Na exposição dois importantes pintores se revelaram: Fernando Azevedo (n. 1923) e Vespeira (n. 1925). A exposição foi um grande sucesso e um retumbante escândalo, mas o grupo que a organizou não teve mais actividade colectiva como um definido grupo surrealista. No entanto, a presença do surrealismo nas artes e letras portuguesas, desde então, data daí. O grupo saído da divisão e tendo à frente Cesariny fez duas exposições, uma em 1949 e outra em 1950, e viriam a ser, anos mais tarde, a única atividade organizada, e a voz do surrealismo estrito. Em 1962, Vespeira e Azevedo, juntos com um jovem artista que se tornou mais tarde no Brasil, para onde emigrou, famoso artista, Fernando Lemos (n. 1926), fizeram uma exposição que ainda foi um sucesso de escândalo. Não cabe aqui escrever com grande pormenor uma história de todas as actividades surrealistas portuguesas, participação individual em exposições, publicações, etc. Mas de tudo isto o que resta ainda? Sem dúvida que uma definitiva presença do surrealismo na arte portuguesa, que prevalece e reforça a linha de Vanguarda. Nas letras, sobretudo na poesia, alguns poetas importantes além de António Pedro que então se converteu num reformador do teatro português com as suas ambiciosas produções. Estes poetas são o já mencionado O’Neill, Cesariny, e F. Lemos, e António Maria Lisboa (1928-53) que hoje se conta entre os melhore-s da língua. De todos eles, O’Neill é aquele que melhor funde a tradição do classicismo irónico e o realismo com a fantasia surrealista em poemas que descrevem com um agudo sentido a luta de ser-se um português em Portugal durante estes anos. Cesariny, que tinha um forte comando do lirismo ao grande estilo, sempre sacrificou – como o próprio Breton – muitas vezes os seus grandes dotes à intenção de ser um surrealista a qualquer preço. António Maria Lisboa, possesso de angustiadas e dramáticas visões teve uma trágica e curta vida, e é talvez aquele que abraçou o surrealismo completamente. Fernando Lemos, como Almada Negreiros no início da Vanguarda em Portugal, e António Pedro depois, trouxe à poesia a visão de um pintor imaginativo, para quem a intensidade de expressão iguala a pura compreensão das formas. Como movimento, o surrealismo, em Portugal, chegou tarde e viveu pouco. Mas a sua insidiosa presença tinha sido sentida nos anos 30 e nos 40; e os resultados da sua tardia aparição ainda pairam por sobre as artes e as letras portuguesas.

 

Outubro, 1974.

 

NOTAS:
[*] Referência a Agostinho de Campos, mencionado em dois artigos publicados em janeiro de 1974 no Diário de Notícias, sob o título “A primeira referência ao surrealismo feita em Portugal” e reproduzidos como texto único emEstudos de Literatura Portuguesa III, antecedendo no livro este aqui transcrito. A referência se repete no texto seguinte, o depoimento “Notas acerca do Surrealismo…”, que pode ser lido neste site (ver)

 

 

In: Estudos de Literatura Portuguesa -III, Lisboa, Ed. 70, 1988  p. 239-244