Das cartas de Jorge de Sena para Helder Macedo

De passagem pelo Rio de Janeiro, onde lançou seu último romance — Tão longo amor, tão curta a vida –, Helder Macedo ofereceu ao nosso site uma seleção das muitas cartas que trocou com seu amigo Jorge de Sena, sob a recomendação de editarmos somente trechos com interesse literário. Aprovado o recorte que delas fizemos — excertos de 8 cartas e 1 transcrita na íntegra —  pareceu-nos importante acrescentar algumas notas contextualizantes, para melhor situar o leitor. No que abaixo se lê, encontram-se várias referências a obras dos dois interlocutores — ambos professores, ensaístas, romancistas e poetas, aos quais, também por isso mesmo, não faltavam interesses comuns, o que não raro levou a uma colaboração mútua. Emitidas de Araraquara, Madison, Santa Barbara e Lisboa, entre 1964 e 1972, registram período de grande produtividade seniana, apesar das muitas mudanças geográficas. Transcrevemos por completo a única manuscrita, que é aquela enviada de Lisboa, onde “pousara” o casal Sena depois de um périplo africano e europeu, que aí está sumariado. E nesta sua “Lisbon revisited“, o poeta parecia já detectar indícios do que o Abril de 1974 traria a Portugal.  A leitura desta correspondência ainda mais se enriquece com o “testemunho” em video de Helder Macedo (ver)

 

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Araraquara, São Paulo, Brasil, 27 de Março de 1964

 ... enfim notícias suas. Depois disso, indirectas, tive-as quando me lembrei de si para conseguirem-se as gravuras que faltavam para o meu último livro de poemas[1], e soube que Você foi utilíssimo na resolução do problema. […]

O meu livro de poemas, que espero terá recfebido entretanto, aguardou dois anos e meio na COR, que me dissessem que afinal não iam fazer a edição pomposa que deveria ter sido a primeira, e esperei meses e meses que a Morais, que quis fazê-lo mais modestamente, o publicasse.[…]

Ainda há pouco, uma tremenda conspiração pretendeu cortar-me os subsídios que recebo do govêrno estadual para a edição que preparo da lírica de Camões, a pretexto de que Camões já está estudado e editado muito bem (como… é o que, para terror dos catedráticos portugueses, donos da indústria, eu ando demonstrando), e que ele e eu somos portugueses… Desta vez, porque também tenho as minhas influências, não levaram a melhor. Mas vai ser o bom e o bonito, quando sairem os volumes de estudos camonianos que tenho no prelo, um em Lisboa, outro em São Paulo… Será um escândalo de enormes proporções, porque se demonstra que ninguém foi às fontes originais disponíveis verificar sequer os textos… Todos os camonistas deste mundo, alguns já defuntos, todos em cuecas, é uma coisa que jamais me perdoarão, aqui, aí, e por esse mundo de Cristo.

Vamos agora ao seu livro[2]. Li-o, quando o recebi, e reli-o agora, para escrever-lhe. Gostei muito dele, porque cada vez menos suporto a retórica balôfa que em Portugal, em caudais de imagens sem nexo, ou em haikais informes, passa por ser poesia, com grande aplauso dos entendidos. Você é dos poucos que consegue que uma frase passe de um verso para outro, e com sujeito e predicado, como nos velhos tempos da gramática, e sem desencadear um arraial de comparações absurdas ou de abstrações sem sentido. Depois, encontro ainda, nos seus poemas, uma segurança rítmica que também é importante, quando parece que, em Portugal e no Brasil, toda a gente tem vergonha de acertar pelo menos ritmicamente um verso, a menos que logo empunhe, para a quadrinha a viola. E uma certa displicência no uso dos temas e das ideias poéticas, certo humor interno, igualmente me agradaram muito. Acho especialmente de meu gosto o poema que é a primeira parte, o quinto e o sétimo da segunda parte, e os dois últimos da última. A parte que apreciei menos foi a terceira, o que não quer dizer que não encontre nela belos versos. Mas tudo isto melhor direi, se os deuses me forem propícios, num artigo sobre poetas portugueses mais recentes[3]. Aqui, meu caro, depois do José Régio que poucos conhecem e acharam, com razão, muito antigo (pelo que lhe sobra de simbolismo de escola, cuja memória se perdeu em Portugal e aqui ainda não) não sabem quem é quem. Nem o Sá-Carneiro é conhecido devidamente. E, no entanto, graças a mim, como assessor que fui do Ministério da Educação, para a reestrutruação dos cursos superiores de letras, a nossa literatura é matéria obrigatória, que não era, de todos os cursos, e num mínimo de dois anos. Em Portugal, ninguém tomou conhecimento disto; e não serão os brasileiros que irão proclamá-lo…

 

Araraquara, São Paulo, Brasil, 8 de Junho de 1964

E agora peço-lhe um favor ainda: quer obter-me, se lhe é possível, uma lista das universidade inglêsas ou escocêsas com estudos de português (e, se possível, de literatura portuguesa e ou brasileira)? Não se trata de pesquisa académica. Mas, pura e simplesmente, de tentar a possibilidade de saír daqui para fora, porque não aguento mais isto. E a América espanhola, que está tentando muita gente, não me tenta a mim: é igualmente incerta, igualmente “peninular”, e igualmente americana. Eu, como a Natália Correia (tarrenego), descobri que era europeu… O que não quer dizer que não vá parar, se puder, ao México (que sempre teve os astecas), ou aos Estados Unidos (e então é que a comunistada lusa se queima de vez, pois que só deu alvará ao Rodrigues Miguéis para ser americano…)

 

Araraquara, São Paulo, Brasil, 10 de Julho de 1965

 Há quase dois mêses que estou para agradecer-lhe a sua carta de 10 de Maio, e o quanto ela representa de estima pelo meu livro[4], e de esfôrço para que ele passasse as barreiras da insularidade anglo-saxônica. Mas estes mêses carregados de trabalho têm sido, também, o de tratar eu de passar as barreiras individuais no mesmo sentido. Não sei se anteriormente lhe dissera que estava em perspectiva, por ter-se tornado muito parecida com um perigoso impossível a vida aqui, a minha tranferência para os Estados Unidos. E agora é certo. Irei, como “visiting Professor”, para a Universidade de Wisconsin, e partirei, com a minha tribu e a minha biblioteca, no dia 27 de Agosto próximo[5].

 

5 de Janeiro de 1968  [Madison, Wis., USA]

É evidente que, tendo saído do Brasil onde a vida se me tornara economicamente impossível com a inflação e com a atmosfera política (a gente não sai de uma para cair noutra…), me instalei no país que me convidou e me deu o “status” que tenho. Mas é evidente também que, com todo o hábito que fui adquirindo, cada vez mais me sinto em muitas coisas irremediavelmente europeu – do que espero tirar a prova na viagem que farei a partir, queira a Providência, já que a minha saúde é algo precária, de meados de Setembro do ano que ora começa. “Regressar à Europa”, isso não depende de mim, meu caro, mas da Europa…

 

30 de Junho de 1970  [Madison, Wis., USA]

PS – […] Não sei se nunca lhe disse que, naquele dia, em que, chegado a Londres, jantei na sua casa (e o dito cujo[6] se ausentara por razões óbvias) a conversa estava agradável e ficamos a falar e a falar – mas, de certa altura em diante, eu não podia deixar de pensar que o estafermo andaria talvez a fazer horas até que eu saísse, ou estava à espera de ver-me sair. E por isso mesmo e pelo gosto de estar convosco, deixei-me ficar até que o sujeito se fartou de esperar ou achou que eu já saira. E diverti-me bastante com a boa educação que ele, sabe Deus com que vontade, aceitou exibir, respeitando a sua casa de ser malcriado comigo. O curioso é que nós nunca tivemos, de perto ou de longe qualquer contacto – e nos teremos falado talvez, até hoje, umas quatro vezes: lembro-me de o ver na Sera Nova uma vez, quando o Lopes Graça mo apresentou como seu aluno de piano (seria?…); outra vez quando ele entregou poemas para os Cadernos de Poesia, com sorrisos, no Chave de Ouro[7] (e mais tarde foi à tipografia, brigou lá, e forçou a desmanchar-se toda a composição – mas nenhum de nós, dos Cadernos, assistiu à cena, nem ele deu qualquer explicação que lhe não pedimos); outra, na estreia de Jornada para a Noite, em tradução minha, dirigida pelo António Pedro, quando me veio dar informações que eu pedira para as Líricas[8] – terceira série, em preparação – e creio que, com o encontro em sua casa, é tudo. Quanto aos meus artigos sobre a famosa exposição, de que ele e “eles” da sua corte de Sampaios e Pachecos fazem cavalo de batalha, creio que ninguém os leu senão naqueles tempos de Seara – mas sairão em volume, qualquer dia, com a minha execução capital  deles todos. O mal não é essa gente ser má – o mal é ser rasca e ordinária: ser a grosseria de Alcantara aliada à putaria do antigo Bairro Alto, sem a inocencia natural de Alcantara ou as virturdes profissionais das putas. A maldade nunca me incomodou muito: o lixo, sim. E é isso que tanto odeiam em mim, meu caro. Mas, nisso tudo, perdoe-me que lhe diga, todos Vocês da sua geração e algumas ulteriores têm muita culpa, porque aceitaram como génio surrealista o espírito da defunta Praça da Figueira. E a poesia é outra coisa – e não é Villon ou Rimbaud quem quer.

 

20 de Maio de 1971 [Santa Barbara, Ca, USA]

Fiquei contente por saber que o seu livro[9] vai entrar em segunda edição – é bem feito, para os medos editoriais que havia. Mas não creio que isso se deva ao meu prefácio… – ou quem sabe? A coisa funciona, apesar da guerra de silencio que me fazem, e que, segundo depreendo […] assumiu extremos de raivoso ódio (o que é tanto mais cómico, quanto eu há anos que não faço crítica frequente a nada ou a ninguém da contemporaneidade e me consigno em deixá-los a todos no silencio da fava…)

[…]

O seu projecto de traduções de poesia portuguesa[10] parece-me coisa séria, e de boas perspectivas – sobretudo se viesse a significar o volume de poesia portuguesa que não há nas séries Penguin. Mas então, para esta séries, não está há séculos em gestação um volume de autoria do famigerado Alberto[11] (que há tempos publicou numa revista no Texas umas pavorosas traduções de Camões, em que até o largo rio do soneto das lágrimas é traduzido por Amazon river…)? A propósito, e para meu govêrno, essa flor está por ocasião da minha estadia a ornamentar as margens do Tamisa, ou não?

A sua seleção de poemas meus parece-me muito bem, e francamente gostaria que um dos sonetos ilustres aparecesse também (mas teria que ser, ainda que com correcções ou arranjos de poeta-linguista, traduzido por mim mesmo, para evitar que o interpretassem à maneira de Finnegans Wake, que de todo em todo não é o sistema). As traduções literais poderei fazê-las eu mesmo. Tinha, aqui na América, um excelente tradutor de poesia minha, um jóvem poeta americano que foi meu aluno, e que publicou numa revista de vanguarda vários poemas meus – mas não sei aonde ele pára. E outra pessoa que tem traduzido, e bem, com a minha colaboração, muita poesia minha é Jean Longland, bibliotecária da Hispanic Society of America, e que publicou há tempos um volume de poesia moderna portuguesa[12]. Acho que ela poderia ser – e não só para mim – excelente colaborador seu. Mas, em qualquer caso, eu preferiria fazer as traduções não apenas literais, sujeitas a sugestão revisora, porque sempre temo, em línguas muito fixas em tradições expressivas quando de tradução se trata, como o francês ou o inglês, a imposição de “estilos” já consagrados que fazem a gente parecer discípulo pobre de Eliots mais pobres que nós. Não me diz V. qual é a urgencia deste seu projecto – é coisa que posso tratar depois de voltar da Europa no fim de Setembro? Porque, agora, não encontro as publicações, nem os envelopes com as inúmeras traduções, muito boas, da Jean. E, no contra-relógio de acabar várias coisas antes de partir, não posso em verdade dedicar-me a uma coisa que tanto me interessa. Mas não deixarei de fazer cópias, caso encontre a papelada, das traduções que mais ou menos coincidam com a sua lista.

 

Santa Barbara, Cal., USA, 27 de Novembro de 1971

Recebi há dias da Jean Longland um punhado de excelentes traduções que ela entretanto lhe terá enviado, e às quais só tenho que sugerir uma que outra pequena mudança que ela, aceitando-as, lhe comunicará depois. Grande ideia de tentar o Griffin[13] para a minha Afrodite – dê-lhe as minhas mais afectuosas lembranças, diga-lhe que em breve lhe vou escrever.

 

18 de Maio de 1972  [Santa Barbara, Ca, USA]

A Jean Longland é pessoa de infinita paciência e gosto de acertar, e não ficará escandalizada que V. volte a insistir em certos pontos. Creio que o problema maior, precisamente nos pontos que V. torna a levantar para melhor acerto, resulta de que é americana, V. do inglês da Inglaterra, e que eu mesmo já sou menos sensível ou consciente de alguns sentidos duvidosos que expressões correntes aqui podem ter aí.

[…]

Os outros dois casos de First Variation[14] são, creio, diversos. Spasmic howls soa-me, e soou à Jean, menos expressivo, por o adjectivo ser “raro”, do que o uso do substantivo. Havíamos discutido isso.  Orgasmic howls talvez fosse melhor, embora eu não goste da palavra “orgasmo” em qualquer língua (o que significa, é outra questão… de que o poema aliás trata muito claramente) – quase preferiria uma crua obscenidade que evitei no português. Mas deixo o caso ao seu critério. Quanto a glances, que foi um dos pontos que mais longamente discutimos na pressa de entre-simpósio, o problema é a repetição variada: no 4º verso eu uso “olhos humanos”, mas no penúltimo terceto do poema digo olhares em vez de olhos, num contexto análogo, intencionalmente. Daí glances. O que a Jean quis dar foi esta variação – e, conversando, não conseguimos encontrar solução para tal. Concordo que, se olhares não podem espiar em inglês tão bem como em português, e como os olhos podem espiar em ambas as línguas – como havemos de dar a diferença entre “olhos” que espiam e provocam a impudicicia dos deuses, e “olhares” sequiosos e turvos, e que por isso fazem promíscuo o amor dos mesmos deuses (como o poema se desenvolve em acontecimento disso mesmo)? Ponho-lhe a questão. Que fazer realmente? Abandonar esta variação que me encanta? Ou ir para uma outra solução que a mim e à Jean não ocorreu, e pode, depois destas explicações, ocorrer a V.?

 

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Lisboa, 17 agosto de 1972

Meu caro Helder Macedo

 

A sua carta de 27 de Julho, remetida de Santa Barbara, chegou-me aqui há um par de dias. Das Áfricas pousámos em Lisboa há onze dias que têm sido uma correria tremenda; e dentro de dois ou três vou para o Porto, e depois Salamanca, Madrid, Paris, de onde volto a casa a 13 ou 14 de Setembro. Mas a Mécia volta daqui, no dia 24. Havíamos partido de casa a 24 de julho, para Nova York (2 dias), Atenas (3 dias), Roma (4 dias) e Moçambique, aonde estivemos sobretudo em Lourenço Marques, com pousos na Beira, Quelimam, Nampula, e uma visita magnificente à Ilha de Moçambique. Trago disso tudo um reportório fotográfico esplendido, tirado pelo Knopfli”[15], que sempre nos acompanhou. No regresso, estivemos dois dias em Johannesburg (recebidos pela D. Lidchi de sua fraternal e minha telefónica lembrança, e que é encantadora) e três em Luanda. Em artigos (quatro) do Popular rezei dos meus encantamentos e emoções, e, nas entrelinhas, das minhas indignações. Mas Moçambique é um país extraordinário que me comoveu profundamente. A gente foi admirável toda, em toda a parte – e acabei na última conferencia e no aeroporto, em lágrimas. Fiz quatro conferencias em L.M., duas na Universidade; e uma outra na Beira. Foram a modos que triunfais, e uma delas, que o secretário de governo proibira por ser para os estudantes, ganhei-a pondo prazo de ultimato… ou telefonava para Lisboa (o que teve o apoio do Min. da Educação, com quem já me avistei, por dever de pô-lo ao corrente do que se passa, e para obter, o que creio ter conseguido, um leitor para Santa Barbara). A imprensa – extrema direita e maoistas de mãos dadas, òbviamente – teve-me por incógnito, sem uma reportagem sobre as multidões que se juntaram; a rádio entrevistou-me várias vezes e furou quanto pôde o corte de notícias, em receios das mesmas  alfurjas da 1ª linha desta página[16]. Conheci o seu irmão que achei um admirável sujeito, mais a mulher dele, e ambos foram gentilíssimos comigo.

Muito obrigado pelas suas palavras sobre os Exorcismos, acerca de que houve só umas notícias e uma crítica de morde-não-morde. Mal distribuído o livro, não o vejo em parte alguma – e creio que todos têm medo de escrever sobre ele, apesar dos louvores (aterrados e chocados) que me chegam aos ouvidos.

Fico aguardando o volume das traduções, que bom será que me mande para Santa Barbara, aonde chegarei mais ou menos quando ele sairá.

O trimestre de Inglaterra está em grande marcha – antes de partir dos States pedi a licença que me foi concedida na base dos convites então recebidos. São agora cerca de 14, e penso que em Setembro virão mais. Como é que vou encaixar tudo isso, mais as viagens, em dois meses e meio, é o que resta vêr. Tenciono chegar aí em princípios de Janeiro para regressar à América em meados de Março, se não estou em erro, cansado e exausto como ando. Logo que os programas das andanças estejam estabelecidos, contactaremos, para arranjar-se o hotelzinho de Cartwright Gardens, aonde ficar nos “intervais”.

Não sei se em Novembro virei à Europa ou não, já que o Colóquio Camoniano de Lisboa e a reunião do júri do Grande Prémio Internacional de Literatura, em Oklahoma, mais ou menos coincidem – e é possível, a menos que as cartas estejam já muito marcadas para o jogo, que valha mais ir à 2ª reunião do que vir à 1ª.

A minha saúde continua muito precária, e não sei aonde vou buscar energia para tantas andanças e trabalhos: sinto-me literalmente “à bas [?] de la flamme”, sem vontade para nada, a não ser quando me picam – o que sucedeu com o entusiasmo a que me empurraram em Moçambique. E tremo do regresso a Santa Barbara, aonde me esperam a chefia da Literatura Comparada e mais chatices concomitantes (e até, no 1º trimestre, como no 3º, os cursos que eu deveria dar no 2º, em cima dos já estabelecidos para esses trimestres …)

Quanto a Portugal, de que agora só vi Lisboa, esta parece-me (para além das demolições delirantes que abrem espaço às caixas de fósforos em pé, odiosas, que inundam o mundo todo que vou conhecendo ou revendo), à luz de um verão algo desnaturado, a maravilhosa cidade que é minha terra e tanto amo – mas não vou deixar-me cair destes amores e das saudades abaixo, pois que, como sublinhei, indirectamente num dos “exorcismos”, não sou dos tolos que voltam para o anonimato quotidiano por parte destes ladrões de estrada, que compõem, com honrosas excepções, esta pátria de alguns herois e muitos malandros. No entanto, sente-se finalmente uma efervescencia e uma consciencialização indignada, a todos os níveis populares, de que é preciso sair do beco e “andar para a frente” – e, sobretudo, uma revoltada exigencia de que a ladroeira e a negociata sejam postas na ordem (o que pode, também, abrir caminho a todos os perigos – mesmo de D. Sebastiões chamados Spínolas). É aliás a atmosfera em Moçambique que creio à beira de todas as soluções que não sejam continuar à ordem dos “reinóis” (e o mesmo senti em Luanda). Creio que se está à beira de transformações que podem ser tão catastróficas como o período que se iniciou em 1820-22. Ou, então, como sonham uns idiotas Agostinhos das Silvas, às vésperas do glorioso 5º Império. Já que os Brasis marcham em grande força para as Áfricas portuguesas (com quem já projectavam uniões no fim do século XVIII, com combinações moçambicanas e tudo). O pior é isso poder ser feito por “coroneis” (cujo peso senti na maravilhosa Grécia) ou por “salvadores” da civilização ocidental, quais tive horrorizadamente ocasião de apreciar em Johannesburg.

Até breve, pois. Muitas e amigas saudades nossas para vós, e o grande abraço muito amigo para V. do

Jorge de Sena

 

PS.- Tenho ouvido mto. boas referências ao seu coloquial artigo[17]. Em Los Angeles foi aprovada uma tese que dá o Mendes Pinto como cristão novo… E eu já lancei as bombas do Camões filo-judeu! Ai Fé Católica!

 

 

NOTAS: 

[1] Metamorfoses (1963). H.M. obteve as devidas autorizações junto aos museus londrinos.

[2] Das Fronteiras (poemas), Covilhã: Pedras Brancas (1962)

[3] Salvo erro, o texto veio a ser escrito em 1967 sob o título de “Poesia Portuguesa de vanguarda: 1915 e hoje” (in: Estudos de Literatura Portuguesa III), onde H.M. é mencionado.

[4Trata-se do livro A Literatura Inglesa – ensaio de interpretação e história, que J.S. editara no Brasil em 1963 e tentava editar também em língua inglesa, pedindo a colaboração de H.M. nesse sentido.

[5] Afinal, a partida de São Paulo só ocorreu a 6 de outubro de 1965.

[6Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006), evidente desafeto de J.S. – o que não o impediu de declarar, em mais de uma oportunidade, que M.C.V. era “poeta de alta categoria”.

[7Café da Praça D. Pedro IV (Rossio), em Lisboa, já desaparecido.

[8] Líricas Portuguesas, 3a. Série – antologia organizada por J.S., editada em 1958, que inclui Mário Cesariny, em quem J.S. reconhece “excepcional talento de poeta”.

[9Poesia 1957-68, Lisboa: Moraes, 1969, com 2ª ed. em 1971. Como se deduz, é de J.S. o “Prefácio” do livro.

[10] Na bibliografia de H.M. constam 2 títulos relativos ao projeto: Portugal: Modern Poetry in Translation, 13-14, Londres, 1973; selection of poems, supervision of translations and notes  e  Contemporary Portuguese Poetry, Manchester: Carcanet, 1978; Introduction, notes, supervision of translations and collaboration (with E M de Melo e Castro) in selection of poems.

[11] Alberto de Lacerda (1928-2007)

[12] Selections from Contemporary Portugese Poetry, Hispanic Society of America, 1966

[13] Jonathan Griffin (1906-1990)

[14] “Variação Primeira” é poema do livro Metamorfoses

[15] Rui Knopfli (1932-1997)

[16] “que o secretário de governo proibira…”

[17] “A Menina e Moça e o Problema do seu Significado”, Colóquio/Letras, 8, Lisboa, 1972