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Porto Grande (S. Vicente de Cabo Verde)

Escrita em 1940 e com forte marca autobiográfica (recorde-se que o jovem cadete Sena deixara a Armada em março de 1938), esta primeira parte de “Duas Medalhas Imperiais com Atlântico”, hoje em Antigas e Novas Andanças do Demônio, ganhou sua primeira publicação, de modo autônomo, no número 98 de O Mundo Português, de fevereiro de 1942. Misto de conto, crônica e ficção, constitui relato pungente da miserável realidade de Porto Grande nesse tempo “imperial” português.
Ao fim da tarde, a baía vista de cima dos mastros, não reflectia só o céu. O mar costuma reflectir a cor de todo o céu e desprezar as nuvens, mas, naquelas tardes serenas, até os vultos dos navios estavam inteiros dentro de água e dela subia, em diagonal até à superfície, uma outra corrente de âncora.

Era então muito nítido no contra-luz do sol já posto, aquele perfil humano formado por vários montes. E um pequeno barco atravessava a baía, com imperceptíveis arrancos de remadas no seu deslizar vagaroso; parava junto de uma pequena torre escura e solitária, uma luz se acendia e o barco voltava, com o mesmo cerimonial mais cadenciado ainda.

Sabia-se, porém, que a torre não era torre, mas a chaminé de um barco afundado. Contam que um temporal terrível ali encalhou e afundou o barco de cabotagem entre as ilhas. (Talvez nem temporal nenhum. Por que hão-de ser terríveis os temporais que dão naufrágio? E por que não imaginar a tragédia maior de um singelo afundamento nesta serenidade?) O barco de agora está ali do outro lado, muito branco — e, não tarda uma linha, vamos embarcar nele. Também podemos dar uma volta à baía aqui dentro, ensaiar mesmo — e àté a remos, com certo esforço e receio, lá podemos ir — uma incursão no canal, recordar o contorno do Ilhéu dos Pássaros. De resto, a encosta da ilha de Santo Antão, além defronte, é uma rampa tão vasta que sair das ondas e subir por ali acima é capaz de não custar nada; ficávamos, apenas, sujos da sua terra vermelha.

Mas estamos no mastro, por enquanto. Este segundo cesto em que nos encontramos é, como o primeiro, apenas uma plataforma — e, de verdade, não se chama cesto, chama–se vau do joanete. Sério, quem se chama cesto, e de gávea, é o que está mais abaixo. Os outros mastros também têm tudo igual, mas este é o mastro grande. Mastro grande! O céu, visto daqui, é cónico.

Reparem. A ilha toda parece que foi chegando por pedaços, mal soldados e mal limados ainda, que se reuniram à volta de uma baía inicial, abstracta. A única montanha verde ergue-se por detrás da cidade — toda aquela verdura será vegetação poderosa, daqui parece musgo; o único terreno verde, verde de poucas árvores, está nuns areais entre a cidade e os montes de perfil humano, e o nome diz que há lá uma ribeira.

A cidade. Desembarca-se numa ponte-cais. Uma vez, à chegada da canoa, na água andavam manchas vermelhas fervendo. Eram pequeninos peixes que rodeavam os pilares. Serão estes peixes os que espinoteiam dentro do corpo dos afogados?

Muitos garotos esperam — Money! Money! — e as ruas da cidade sucedem-se com casas baixas. Portas, portas remendadas de tábuas. Há casas mais altas com varandas cobertas e vazias de gente. Passa-se um largo ajardinado. Um coreto. Em certos dias, uma espécie de banda toca «mornas», e as pessoas aparecem, vão-se juntando, juntando, e percorrem apressadamente o perímetro exterior do jardim, numa aplicação de fuga metódica. Raparigas escuras, de grandes olhos luminosos e uma humidade branda nos seus modos. Nos arruamentos ensaibrados, segue-se ao compasso da música.

Nas praias de pedras, o mar rola-as, traz umas, leva outras. O barulho, porém, não se ouve aqui. É um silêncio a esta altura, os sons sobem devagar, cansam-se, pairam no ar com as asas abertas.

Será uma águia de asas abertas, quem além está toda de bronze, à beira-mar? Passou um avião; era o primeiro, arranjou-se uma pedra branca e acrescentou-se à escuridão da ilha. As casas tão manchadas! Têm gente dentro, gente esperando a noite, o dia seguinte, a voz surda das ondas largas da calema (quando for tempo da calema, os mastros vão a um lado, hesitam, voltam, vão ao outro lado, hesitam…); as ondas de calema não são sinceras para com o mar, não lhe sobem à flor da pele.

Um dos poucos automóveis da ilha passa na estrada ao longo da baía; irá ao outro lado, que não sei se existe, ou subirá até ao miradouro isolado que domina a entrada — isolado, a ele vêm dar todas as verdades do mundo.

Mas também é verdade — e não vai lá — o peixe-martelo que mergulhara, um dia que andei num escaler à vela, e que estava, lá em baixo, desconfiado, sentindo a sombra do barco sobre ele. Uns pretos que o tinham visto fugiram para terra, fazendo voar na ponta dos remos a canoa pequena. Não devem ser — e quem sabe? — os mesmos pretos que saltam à água para apanhar moedas, quando os navios chegam. A moeda cai, vai descendo cerimoniosamente, e a sombra negra aproxima-se, apanha-a. Outra sombra negra se aproxima. Estremeci de medo, sentindo eu próprio a mordedura incrível, como a imaginei nos dias de banho na praia de pedras. Mas não: é outro preto; ambos sobem, riem, esperam mais moedas.

Os meus olhos descem. O navio parece um charuto, e nós tão fora! Um marinheiro vai andando para a proa; leva as horas consigo, dá-as ao sino, o sino toca.

Afinal não chegámos agora a embarcar no pequeno paquete, não visitámos ainda Santo Antão. E é pena, porque, quando voltássemos à noite, encontraríamos, já dentro da baía, a frota de pequenos barcos da pesca da baleia, com a qual nos teríamos cruzado no mar. Uma peça na proa de cada um, «passarelle» da ponte até à proa e, a meia nau, os arpões enfileirados verticalmente e descansando; aponta-se à baleia, e o comandante vem correndo pela «passarelle» disparar a peça.

Toca o sino outra vez. Escureceu quase de todo — o sino adiantou a escuridão. Olhemos, ainda uma última vez este «Porto Grande». Agora vamos descer. Desçam com cuidado. Eu fico mais um instante. Adeus.

Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me: —Mas leva, leva… — e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei: —Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu–me: —Leva… se ele fica aqui, morre de fome.

1940.