Os Amantes

TheKiss_AugusteRodinSobre este conto, dirá Antonio Candido: “em Assis, Jorge de Sena escreveu muito […]. De alguns de seus escritos fui o primeiro leitor, depois de dona Mécia, é claro. […] E lembro a profunda impressão que tive com o admirável conto “Os amantes”, composto segundo uma técnica de reciprocidade de perspectivas, graças à qual o mesmo ato é praticado e visto em termos de duas subjetividades que se equivalem, funcionando ambas como focos da narrativa” *

 

 

A natureza de todas as outras criaturas é definida e restringida pelas leis que Nós fixámos; tu, pelo contrário, isento de tais restrições, podes, por teu livre arbítrio, cuja custódia Nós te atribuímos, traçar por ti mesmo as linhas da tua própria natureza (…) Fizemos de ti uma criatura nem do céu, nem da terra, nem mortal, nem imortal, para que possas, como livre e altivo escultor do teu próprio ser, modelar-te na forma que preferires.

Pico della Mirandola – De Hominis Dignitate

 

I
Num ímpeto brusco, que o despegou do corpo dela, rolou e parou deitado ao lado, com a mão esquerda estendida por cima dos cabelos soltos dela, que roçava, e a mão direita pousada entre os dois seios, sentindo, menos que o coração batendo, a tremura ténue que a ficara percorrendo. De olhos fechados, ela trouxe as mãos sobre a dele, segurando-a, sem força, contra o peito. Então, a mão, sob as outras, deslizou um pouco e, entre o polegar e os dedos estendidos, tomou a curva da inserção do seio, que, com um jeito oscilante do pulso, ia contornando cariciosamente. As mãos dela apertaram a sua, e ela, descaindo a cabeça, fitou-o.

Olhou-o docemente, num olhar húmido e quebrado em que as feições dele evoluíam incertas, ao sabor das sombras e do encantamento que ainda perdurava nela, e tomando aspectos diversos, ora confundidos, ora sucessivos, em que havia traços dos retratos dele em criança e em adolescente, quando o não conhecera, e recordações de ângulos em que surpreendera a cabeça dele e lhe haviam ficado pela sobressaliência, que destacara então, de um pormenor qualquer, uma comissura dos lábios, um recanto de pálpebra, uma nódoa da barba, um delicado contorno da orelha.

Sempre a espantava como gostara dele, como se lhe dera, como ele a despertara para um amor em que não havia lugar para mais nada, nem ideias, nem sentimentos, e que se renovava a cada vez que, numa posse exasperantemente consumada em ternura e lucidez que não deixavam desvão dela sem o roçar palpitante de uma ardência que as suas pernas não se cansavam de apertar, toda a contenção apaixonada, de que era tão ciosa, se diluía numa imensa ondulação em que rangia os dentes, e os seus braços,. num desespero que era vontade de arrancá-lo para que ele voltasse com uma brutalidade que lhe justificasse o abandono, o empurravam para um longe que se fazia mais perto e para uma expectativa que contagiava todas as suas vísceras que, tensas, se contraíam derradeiramente. Muitas vezes se interrogava, e a interrogação nestas ocasiões fazia-se risonha e repousada, se, quando o vira pela primeira vez, quando cedera a conversar com ele em mais intimidade, quando aceitara juntar ao dele o seu destino, ela soubera sempre que seria assim, que assim seriam os momentos de cujos intervalos a sua vida quotidiana era dormência paciente, ansiedade de todas as horas, silêncio em que o seu corpo se fechava; ou se, pelo contrário, tudo lhe fora transmitido, imposto, insinuado, sugerido, gravado por uma presença que punha, em tocá-la e em repeli-la, em ignorá-la e em possuí-la, um capricho implacável e inescrupuloso, um alheamento descuidado e, no entanto, exigentemente cioso, um desapego que a entontecia, a inquietava, a fechava à sua própria consciência.

Sorriu ligeiramente, para aquele rosto em que pairava, junta com uma suavidade de pele, que a fascinava, uma ironia subtil e gratuita.

O rosto, que se deixara contemplar, ensombrou-se repentinamente, para abrir-se, logo depois, num sorriso, em que a mão se retirou do seio para, dando uma volta no ar, como que ter feito que o corpo rolasse sobre si mesmo, para ficar então deitado de costas. E os olhos fecharam-se-Ihe.

Ela esperou, e ergueu-se sobre um cotovelo, como lhe era irresistível quando a nudez dele se alongava assim sobre a cama, branquejando, num halo que as suas narinas aspiravam, enquanto os olhos iam percorrendo o corpo todo, que mantinha ainda, apesar dos anos, uma imprecisão adolescente e uma fragilidade enganadora, cuja força ela gostava de ir reconhecendo sob a penugem suave que só no peito e no baixo-ventre era um brilho negro, e na inocência do sexo, ainda entumescido mas tombado.

A mão esquerda dela, como que a ocultas da sua própria vontade que a reteria se não estivesse a distrair-se quase voluntariamente com a decisão de retê-la, veio vindo até junto do braço esquerdo dele, que os dedos subiram, em pontas, por altura da axila. Aí, sem pousar-se, a mão parou, expectante, porque a consciência de estar ali temeu, entre divertida e receosa, um alongado e sacudido gesto, que a fizesse cair. Mas o braço continuou imóvel. A mão, então, depois de, na ponta dos dedos, ter esfiado os pêlos que despontavam entalados entre o braço e o tronco, saltou para este e, com o indicador, afagou o mamilo escuro e áspero. O peito respirava pausadamente, envolto numa ténue humidade fria que a palma da mão já conhecia e era quase uma secura assetinada.

Não saberia dizer se aquela frialdade contraditória lhe repugnava ou não, uma vez que sempre ela fizera parte da sua surpresa, ainda que a conhecesse e a esperasse. Era talvez, até, um dos aspectos peculiares que a destacavam de tudo o que jamais imaginasse e se consubstanciava nele. Mas, ao mesmo tempo, era um dos outros aspectos que, como a ironia e a distância calculadas, formavam uma rede inextricável e finíssima, ante a qual o seu espírito sentia uma espécie de paralisia e de mudez, um medo de perder-se e de aniquilar-se.

A mão, espalmando-se no peito, esfregou os pêlos ao arrepio deles, que não eram crespos, mas, salvo num ou noutro redemoinho, dirigidos no sentido do ventre, a cujo umbigo pareciam apontar. Senti-los assim correr na sua palma revirados, e poder repô-los depois com repetida carícia, era uma forma de exorcismo, uma maneira de afugentar a apreensão que a pele dele, atraindo-a, lhe causava. Foi descendo depois com a mão, prolongando pelo tronco abaixo as carícias com que repunha os pêlos. Numa aspiração entrecortada e dupla, como um indistinto soluço, ele suspirou.

Então, a mão ficou retida no umbigo. E os olhos perscrutaram o rosto dele, que continuava imóvel, pálpebras cerradas, sobrancelhas soerguidas, boca ligeiramente entreaberta. Só o nariz parecia palpitar. A mão levantou-se e pairou hesitante: pousaria quieta, afagaria um pouco, regressaria, avançaria, ou retirar-se-ia?

Embora conhecesse por experiência as reacções que a tudo, diversas, ele poderia ter, não sabia, na solidão que começava a invadi-la, qual das reacções preferia, para estilhaçar-Ihe o vidro que se interporia nela, entre o ardor sequioso, latejando no pescoço e no ventre, e a coragem de provocar um gesto decisivo que poderia ofendê-la, ou humilhá-la, ou magoá-la mesmo, ou dominá-la apenas.

A mão pousou, porque ela sentiu que não desejava nada; e, porque, repentinamente, uma imensa tranquilidade grata era o que latejava afinal em compassado ardor, a mão foi avançando e penetrou os dedos na massa crespa em que os enleou. O cotovelo afrouxou, dormente, no que o corpo se apoiava. E a cabeça, descaindo para a frente, pousou suavemente, acomodando-se, no peito dele.

Entre ambos ficou o braço dele, que ela sentiu esgueirar-se e envolvê-la depois, sem a tocar, de que ficou esperando, contraída e desagradada, que ele fizesse o que fez, percorrer-lhe com as pontas dos dedos a espinha até às ancas, onde a mão se espalmou, aberta, para apertar-lhe logo com força a carne. Então a mão dela avançou mais, roçou com as costas ao longo do sexo, que deu um lento salto, mergulhou nas virilhas, e demorou-se sentindo, nas costas, os movimentos interiores, ora lentos, ora súbitos, dos testículos.

Repentinamente, a mão que, apertada a carne das ancas, ficara pousada e como lá esquecida, levantou-se e, agarrando-a no pescoço, por detrás, fê-la levantar-se e cair deitada, enquanto o tronco e o outro braço vinham sobre ela, e os dentes a mordiam no lábio inferior com uma violência que tentou repelir. Mas logo a sua própria língua lhe embateu nos dentes, que descerrou para que ela viesse encostar-se à outra que, abrindo-lhe os lábios, a buscava.
II

Num Ímpeto brusco, que o despegou do corpo dela, rolou e parou deitado ao lado, com a mão esquerda estendida por cima dos cabelos soltos dela, que roçava, e a mão direita pousada entre os dois seios, sentindo, menos que o coração batendo, a tremura ténue que a ficara percorrendo. De olhos fechados, ela trouxe as mãos sobre a dele, segurando-a sem força contra o peito. Então a mão, sob as outras, deslizou um pouco e, entre o polegar e os dedos estendidos, tomou a curva da inserção do seio que, com um jeito oscilante do pulso, ia contornando cariciosamente. As mãos dela apertaram a sua, e ela, descaindo a cabeça, fitou-o.

Quando ela o fitava assim com aquele olhar húmido e quebrado, que ao mesmo tempo lhe perscrutava as feições e abstraía delas em transfigurações imaginosas da ternura, o que ele como que via no flutuar difuso em que o próprio olhar vagava atento para além dele, apetecia-lhe torcer nos dedos duros os seios entre os quais a mão pousava. Sentir a tremura ténue que a ficava percorrendo não era uma carícia, nem uma metamorfose do desejo em estima, nem mesmo, em atenção de pele contra a pele, o prolongar em táctil sensação as vibrações da posse. Era, antes, reter na carne o que tendia a repercutir, em concêntricas ondas, na imaginação e na memória. Para ele, nunca recordar ou imaginar acrescentava nada ao, seu amor, pois que este não existia fora de uma sensualidade que se dispunha abruptamente a aceder às solicitações tímidas em que ela punha uma paixão humilde, ou a violar essa mesma humildade para possuir não um corpo que lhe pertencia a todos os instantes como se sempre estivesse a penetrá-lo, mas os recantos em que o espírito dela se comprazia em, solitariamente, adorar uma sua imagem compósita e perene, na qual, ainda que ignorando-a, se não reconhecia. Fora de tal sensualidade, as pequenas coisas da vida assumiam para ele uma importância enorme, eram uma insistência teimosa e metódica, a propósito de tudo, com que o amor se defendia de tornar-se um hábito, ou de transformar-se em algo mais que aquela segurança inquieta e cínica, a que um jeito hábil e oscilante do pulso dava o preciso sentido de domínio precário, de incerteza, de renovada investigação e, sem que o confessasse, adolescente apelo.

Sempre se espantara de como gostara dela, como ela se lhe dera, como ele a despertara para um amor em que não havia lugar para mais nada, nem ideias nem sentimentos, e que se renovava a cada vez que, numa posse que era sua vaidade fosse exasperantemente consumada em solicitude e em lucidez, de que o seu prazer se acrescia, e na arte das quais não havia desvão dela que não sentisse arder e que não acusasse, no corpo que abraçava, todo o toque, a contenção apaixonada e dolorosa, ao fundo da qual ela lhe parecia sempre um pequeno animal acossado e aflito, se abria num ranger de dentes e num empurrá-lo, que, erguendo o tronco sobre os pulsos, primeiro, e agarrando os dela, logo após, ele transformava numa calculada imobilidade, de que então caía sobre ela na contracção em que coincidiam ambos, graças à tensa expectativa com que, contendo-se, precipitava a mesma coincidência. Muitas vezes se interrogava, e a interrogação, nestas ocasiões, fazia-se carinhosa e displicente, se, quando a vira pela primeira vez, quando tentara conversar com ela em mais intimidade (intimidade, que palavra absurda!), quando aceitara juntar ao dela o seu destino, ela tinha em si mesma, virtuais, aqueles momentos de cujos intervalos a vida quotidiana de ambos era uma vigilância azeda, uma serenidade extravagante, um silêncio em que o corpo dele simulava desinteresse; ou se, pelo contrário, tudo ele transmitira, impusera, insinuara, sugerira, gravara, com uma presença que punha, em tocá-la e repeli-la, em ignorá-la e possuí-la, um capricho implacável e inescrupuloso, um alheamento descuidado e no entanto exigentemente cioso, um desapego com que a entontecia, a inquietava, a fecharia à própria consciência.

A perplexidade, um pouco angustiada mas também confiada, com que vacilava nestas conjecturas, fê-lo afivelar no rosto um ar de ironia, vago e indeciso. Ela sorria-lhe, sem dúvida menos pela carícia no cimo dos cabelos soltos, que pela curiosidade ante o falso mistério das suas feições suspensas. Esta contemplação sorridente acabava sempre por irritá-lo, porque lhe parecia que ela se sugestionava de imaginações a seu respeito, para justificar-se de amá-lo como amava, numa atracção que ele próprio explorara e não podia ter outra causa. Para ele, era quase inconcebível que o amor fosse aquela preferência exclusiva que nela cultivara, e de que a virgindade que ela lhe oferecera diminuía o alcance. Como podia amá-lo tanto, e dar-se tanto, achando-o único, se único mesmo é que ele fora? Com alguma ostensividade, ensombrou repentinamente o rosto, retirou as mãos, deitou-se de costas. Este deitar-se de costas era um prazer contraditório, já que também, pelas mesmas razões, detestava a contemplação embeveci da que, nela, ao seu corpo se transferia, enquanto não deixava de haver certo exibicionismo, que reconhecia adolescente, naquele expor-se e a uma virilidade que não se cansava de confirmar e de descobrir. Fechou os olhos. Quando assim os fechava, estendido ao comprido, com os braços ao longo do corpo, sabia que mão dela não tardaria em vir extraí-lo da sonolência expectante em que, por instantes, deixava de, no fundo, interrogar-se sobre o que se passaria nela, a que ponto continuava a dominá-la e a possuí-la, mesmo quando lhe era evidente a desistência dela em retrair-se.

Quase sentia a indecisão da mão que avançava como uma aranha, pé ante outros pés, para o seu braço. Os dedos tocaram-no, subiram e hesitaram. Subiam eles, e foi-lhe preciso conter conscientemente o sacão do braço que os sacudiria, fazendo-os cair voltados, como um insecto infeliz, sobre a cama. Teria de abrir os olhos, executar gestos de ternura, restabelecer artificiosamente uma confiança que, natural, não seria crível. A mão, então, apertou entre os dedos os pêlos do sovaco, que ele sentiu repuxados e entrecruzados, e saltou para o tronco. A isto, que era uma manifestação da travessura infantil que nela, em raros instantes, se revelava intacta, e era também uma carícia de íntima confiança que o lisonjeava, nada oporia que a contivesse. Além de que lhe dava um prazer inconfessado que a mão dela, como agora estava acontecendo, tocasse no mamilo. As mãos por pouco se não levantaram, direitas novamente aos seios dela, para macerarem, sem aquela delicadeza coceguenta, as pontas grossas e carnudas. A mão espalmou-se-lhe no peito.

Não saberia dizer como aquela tepidez da palma, em que os seus pêlos se ajustavam às linhas da pele, era uma forma de comunicação. A húmida friagem que entre as duas peles sentia interpor-se, exercia um papel de amaciante do carácter, era uma espécie de pomada que, isolando uma da outra as duas carnes recobertas, permitia que a sua respiração, o bater do coração, e um fluxo que o percorria todo num fluir ondulante, se conjugassem num silêncio benevolente e receptivo, que se abria afável e desprevenido para receber a vida dela.

A mão esfregou então, ao arrepio deles, os seus pêlos do peito. E voltava a alisá-los, numa sedosidade em que, sentindo-a na palma da mão dela, se diluía a compreensão tácita que ele concentrava na mesma palma aberta e repousada. A mão foi descendo, prolongando pelo tronco abaixo as carícias com que repunha os pêlos. À medida que a compreensão se diluía, o desejo começava a encaminhar-se de todo ele para o sexo, num palpitar que era como um cortejo de luzinhas deslizantes ao longo dos seus tecidos, das veias, da consciência, e que substituía por um movimento dirigido aquele fluir ondulante e disperso, de que a compreensão se suspendera. A perda de contacto, que o entendimento da carne iria consagrar, constrangeu-lhe a respiração, fê-lo suspirar. Um breve instante, a procissão de luzes hesitou num redemoinho lento.

A mão ficou retida no umbigo. E a respiração dele tornou-se de uma suavidade indistinta, contida, que em nada influísse nas decisões transmitidas àquela mão, que, repentinamente, lhe apeteceu agarrar e calcar contra o sexo. O gesto apenas se efectivou num tremer das narinas. A mão levantou-se e pairou. Que iria fazer? Pousaria quieta? Afagaria um pouco? Regressaria? Avançaria? Retirar-se-ia?

O que ele faria ou não dependia afinal tão-pouco do que a mão fizesse! Ou, antes, não dependia apenas disso, e não havia, portanto, uma correspondência exacta que para ele era imprevisível, entre o gesto e a reacção dela. Se a mão pousasse quieta, poderia pegar nela e levá-la ao sexo; mas também poderia levá-la, precipitando o gesto dela, se a mão avançasse. Se a mão pousada o afagasse no ventre, poderia acontecer que, como quando regressasse ao peito, ele se voltasse e quisesse retribuir, com uma raiva maldosa que apertaria o ventre dela ou a cintura em dedos que a magoassem, a solidão acompanhada que o afago retido ou recuado mais sublinharia. Se a mão se retirasse, desistindo, era bem possível que – e também o era, se a mão pousasse quieta – ele, calculadamente, voltasse as costas, simulando uma indiferença que acabaria por tornar-se real, forçando-o então a voltar-se a seguir para ela e a acusá-la, num gesto brusco, da indiferença que só ele estabelecera. Na espontaneidade marginal que o amor mal permitia, ele não sabia qual das reacções preferia, qual a mais directa ou mais certeira para elidir os meandros de uma decisão que, solitária, se transformava, pouco a pouco, num esquecimento dos corpos, ou numa lembrança dos corpos em que as sensações latiam tranquilas, confundidas, inlocalizadas.

A mão, afinal, pousou. E ele, sentindo, na tepidez tranquila da palma que assentava, que a mão ia avançar, foi invadido, num tumulto suave, por uma piedade enorme, uma doçura terna, uma camaradagem leal e condescendente por aquela fragilidade infantil e tímida, cujos dedos acabavam de penetrar, enleados, na suada e crespa cabeleira do seu sexo. Quando a cabeça dela, como esperava, se deixou pousar, acomodando-se, no peito dele, imperceptivelmente as coxas se afastaram para que a mão se aninhasse, sem que tivesse de forçar o pudor que, ao longo do braço dela, era a própria delicadeza do gesto.

Retirou, esgueirando-o, o braço que entre os corpos ficaria mais preso, e imobilizado, se o não retirasse antes de ela ficar à espera do afago que a outra mão viria fazer-lhe no rosto. A liberdade do braço, que era também a liberdade de, tocando-a, forçá-la a despertar de um encanto inocente que, continuado, o entristecia, manifestou-se em percorrer-lhe a espinha, em apertar-lhe a nádega. E a mão dela pôde, no domínio que a distraiu, avançar mais, roçar as costas ao longo do sexo, cuja contracção ele supôs ter decidido, e demorar-se de maneira a que ele sentisse, contra ela, os movimentos interiores, ora lentos, ora súbitos, dos testículos.

Repentinamente, com a mão que ficara pousada e como que esquecida, após ter apertado a carne das ancas dela, agarrou-a no pescoço por detrás, o que era um modo de carinho para com o animal acossado e assustadiço que havia dentro dela. Fê-la, assim, levantar-se do peito dele e cair deitada, numa espécie de surpresa em que o susto se tornava confiança na carne reconhecida e reconhecendo-se. E o tronco e o outro braço foram sobre ela, dando-lhe em peso e em sufocação a imobilidade com que tentaria repeli-lo, quando lhe mordesse, como estava mordendo, na fúria com que a língua rebuscando a língua dela se antecipava a penetração em que, fazendo-a possuí-lo até ao âmago, a inundava de uma demora torturada e feroz que era a raiva de um amor que só existia nela, por ela e para ela, cuja posse o projectava ante si próprio, em cada recanto em que, penetrando-a ou mordendo-a ou apertando-a nos braços, encontrava uma marca de si mesmo.
III

Ali deitados ambos, separados já, quem são? Será que o sabem? Será que voltarão a ser o que antes eram? De nada vale que perguntemos; de nada adianta que, nos gestos de um e de outro, tentemos ler o que eles por si mesmos tentam ler.

Seria um erro, porém, supô-los imortais, fora do tempo e do espaço, vivendo apenas de tortura e de gozo, ou tortura-gozo, em que seriam natureza humana. Outro erro, porém, e não menor, seria supô-los mortais, isto é, confinados a si mesmos, entregues a si mesmos.

Não são então a natureza humana, livre e responsável, que, mesmo morrendo, ou porque morre, da morte se liberta? Nem são esse limite, esse confinamento, em que ficará preso e aniquilado o ser admirável que não mais se repete?

Não, não são. A vida de ambos, ambos a conhecem. Como a pobreza os constrangeu, como quereriam ter filhos, querem tê-los, e vão dolorosamente sofrer por esta hora que passou agora. Como estes instantes são raros, mesmo na comunhão em que os repitam muito. As apreensões, as preocupações, o trabalho, o mundo em que vivem, tudo isso pesa. Mas pesam também essas famílias que os geraram e os criaram; pesam os amigos e os inimigos que lhes revelarão tanta malícia da vida; e pesa sobretudo esta obrigação diurna de viver, em que os braços ficam na curva inútil de um corpo que, mais tarde, não encontrará neles a sua forma em que os modelou.

Podemos deles e para eles inventar tudo. A alegria. A dor. A amargura. Uma casa. Móveis. O emprego. Os passos repetidos. A inquietação ante um colarinho que se esfia. O gosto dos alimentos que comem. As doenças súbitas. As palavras cortantes. Os sorrisos. Os olhos que se fecham para não compreender. Os olhos que se fecham para compreenderem melhor. E a cidade, e o bairro. E o país. E a época. E a janela que se abre para a madrugada. Ou a que fica aberta ao ar nocturno. As pancadas na porta. As escadas. Os domingos sonolentos. O mar em que se banham. Os transportes em que outros os apertam.

E tudo o que inventássemos era a mesma, a minuciosa, a concreta, a exacta, a rigorosa vida deles, tal como é de facto, no dia a dia, noite a noite, hora a hora, em que eles 8. vivem ou são por ela vividos.

Mas inventar para quê? Se vão separar-se para sempre, se alguém se interporá entre eles, se o amor morrerá de súbito, tão arbitrariamente como é, agora, a própria essência _ tão frágil, tão incerta – da vida de ambos; tudo isso será que nos importa? Será que nos diz respeito?

Sem dúvida que importa e que nos diz respeito. E até bem mais do que reconhecemos na nossa curiosidade, no nosso prazer de aferirmos por alheias as nossas vidas, na nossa amargura de referirmos a nós mesmos as vidas dos outros. A sorte deles não pode, por forma alguma, ser-nos indiferente. É fundamental que saibamos avaliá-la, saibamos distingui-la, possamos resumi-la num caso, num problema, numa situação, para intervirmos, ao menos uma vez, a tempo e no lugar mais próprio. Apertaríamos a mão dele, com simpatia. Beijaríamos – será que beijaríamos? – a mão dela com ternura e carinho. Faríamos tudo que estivesse ao nosso alcance para salvá-los (ou para perdê-los).

Estarão então em perigo? Perigo de quê? De crueldade? De luxúria? De egoísmo? De frieza? De amor em excesso?

Possivelmente, sim, estão em perigo. Mas é difícil, muito difícil, dizermos em que perigo. Perigo de serem criaturas vivas que se tornam personagens. Perigo de serem personagens que se transformem em criaturas vivas. Estes dois perigos juntos para ambos, ou um dos perigos para cada um deles. São perigos imensos.

Mas, se não soubermos como são personagens ou criaturas vivas, o perigo que eles correm é maior. Se errarmos de socorro, que será das suas vidas?

Não, o melhor é olharmos, em silêncio, contendo a respiração, como eles dormem. Porque, entretanto, estão dormindo ambos, enlaçados. E nem sequer sabemos se é dia, ou se é noite. Dormem serenamente, saciados, felizes. Felizes? Não foi que um deles contraiu o rosto? Apenas num reflexo? Ou sonho inquietante? Dormem. Estão dormindo. Mas dormirão por muito tempo ainda? E se estivermos aqui, tão perto deles, quando eles acordarem? Que pensarão de nós?
Assis, 12 de Setembro de 1960.

 

* Gobbi, M.V.Z. et alii, org. Intelectuais portugueses e a cultura brasileira: depoimentos e estudos. São Paulo/Bauru: UNESP/EDUSC, 2002. p. 30