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O Indesejado – um posfácio (Parte II)

Nos assuntos nacionais, porém, ao menos para nós, há um termo, além do qual a cena não suporta o verso. D. Sebastião é talvez o último carácter histórico a quem ainda pudéssemos ouvir recitar endecassílabos; daí para cá duvido. Do tempo de Frei Luís de Sousa pode ser que ainda se ature o verso em assunto ou bem trágico ou bem heróico: dependerá porém muito do modo por que os fizerem, e os declamarem, os tais versos. GARRETT —Nota C à «Memória ao Conservatório Real».

 

A metrificação de O Indesejado é, quase na íntegra, construída com o verso de 10 sílabas, ou, mais exactamente, de cinco pés. Quem conhecer as minhas obras poéticas anteriores ou contemporâneas da composição desta peça sabe que, mesmo no interior de poemas livres, é essa uma medida que me é peculiar. Não vem agora ao caso tratar desse curioso tema das medidas peculiares aos vários poetas ou a uma linguagem nacional. Se nisso faço pessoal reparo, é para, desde já, sossegar o ânimo de quem, nestes tempos de metro telegráfico, possa assustar-se com mais de 2000 versos, que me deram só o trabalho de esperar pacientemente por eles, e de os retocar, adequando-os mais à expressão dramática e às necessidades da dicção teatral, o que, apesar da vocação pátria para receptáculo das inspirações divinas, me não parece coisa muito feia ou desprovida de tradições respeitáveis.

Também o verso de 10 sílabas tem grandes tradições na literatura portuguesa. Com ele se compuseram algumas das mais belas obras da nossa poesia; e uma das obras máximas do nosso teatro — A Castro, de A. Ferreira — é quase toda nesse metro. O decassílabo concilia duas exigências da dicção teatral na nossa língua: uma extensão que não excede as possibilidades respiratórias normais, uma flexibilidade rítmica que permite o seu ajustamento à intenção dramática [1]. O verso de doze sílabas seria demasiado pomposo, mais apropriado no teatro à declamação enfática. Outro verso de menor medida não teria a extensão silábica ao mesmo tempo compatível com a dignidade da tragédia e a naturalidade do discurso teatral. Tanto assim é, que, por exemplo, um Calderon, em La vida es sueno, usa metros mais extensos sempre que a acção se intensifica, metros menores quando a acção se dilui em lirismo dramático. O mesmo havia feito Gil Vicente, por exemplo, no Auto da Feira, ou no Auto da História de Deus.

Mas porque teatro em verso? Porque, se em verso, em verso medido? Porque, em verso branco? A causa principal não me compete esclarecê-la— cabe à outra crítica dizer, se souber e quiser, por que razão me aconteceu assim.

À primeira pergunta poderia, porém, responder-se com outra: porque teatro em prosa? É evidente que, se no teatro a mais importante revelação do texto é confiada à dicção, mesmo a prosa do grande teatro em prosa não é nem pode ser uma prosa vulgar, descuidada, construída em desatenção dos valores fonéticos e emocionais da linguagem. Sirvam de exemplo um Bernard Shaw com a brilhante euritmia expressiva do seu diálogo, um Gabriel Mareei tão denso e cauteloso, a linguagem cadenciada de um Garcia Lorca, a grande retórica fonético-discursiva do José Régio de Jacob e o Anjo.

A prosa narrativa, ou evocativa ou abstractamente introspectiva, que, com valores sintáticos complexos, é apanágio da literatura de ficção, ainda quando, por exigências da acção dramática, penetra no monólogo ou no diálogo teatral, beneficia de uma simplificação. Esta simplificação nada tem que ver com os preconceitos realistas da «naturalidade» do diálogo. A verdadeira naturalidade verbal em teatro é a eficiência expressiva da dicção. Será sempre, sob este aspecto, eficiente aquela linguagem que concorde, rítmica e morfologicamente, com a espécie de teatro que se pretende que exprima. Tão «natural» é a magnificência de um Christopher Marlowe como a secura irónica de Pirandello no Henrique IV. Tão natural o barroquismo lírico de Calderon como a pureza retórica de A Castro, de Ferreira. Tão naturalmente se exprime o Juiz da Beira, de Gil Vicente, quanto Juliano Apóstata, em Imperador e Galileu, de Ibsen.

Se a linguagem teatral é uma linguagem cuja naturalidade reside na adequação estética dos seus valores e das suas intenções, visto que procede por alusões fonéticas, alusões imagísticas, alusões rítmicas, que a prosa comum, impressa, pode confiar ao próprio grafismo das palavras, e é, portanto, uma linguagem especial, destinada a servir não só a encarnação das personagens, mas também a vivência virtual dessas personagens — uma medida regular suporta melhor a elocução, a cadência das frases, a gradação das emoções a transmitir.

É tanto mais importante este aspecto quanto, entre nós, se encontram, frente a frente, para serem absorvidos e transmutados em significação artística, dois estados de coisas miseravelmente incompatíveis: a nossa natureza dialéctica (e, consequentemente, a nossa condição trágica) e a decadência sónica de uma língua rica, que ninguém conhece nem explora nas suas possibilidades sonoras e rítmicas. Se a própria inspiração, ou o que queiram chamar-lhe, e a exigência de dignidade de uma condição excepcional me não houvessem conduzido à tentativa de reabilitação do teatro em verso, a necessidade de dar, quantitativamente formada, aquela dignidade, a quem, pela voz, a há-de transmitir, seria bastante para justificar tal modo de criar.

O verso livre, de medida demasiado confiada à insciência dos poetas, mas, mais ainda, ao capricho rítmico de quem tiver de o dizer, só poderia exercer a mesma função teatral, se sobrecarregado de associações rítmicas e simbólicas. Pela magia dos seus versículos assim construídos, é que se defende cenicamente o teatro de Claudel. Mas não esqueçamos que esse teatro, originado na difusão expressional da escola simbolista e na pompa personalista de Walt Whitman, por dramático que seja, expõe uma concepção providencialista e de optimismo transcendente, que é intrínseca ao pan-catolicismo de Paul Claudel. A total presença da chamada Criação, o perfume vegetal de um mundo desdobrando-se, que esses maravilhosos versículos exalam, não são para este extremo europeu, crucificado entre uma transcendência escolasticamente abstracta ou idolatricamente concreta, e uma imanência, dolorosamente pobre e carecida, de povo sem mitologia e sem pão [2]. Natural será, pois, uma vez consciencializado artisticamente um símbolo trágico, que as personagens se exprimam numa regularidade que as vista de uma majestade provisória, de uma dignidade cuja nostalgia moral é parte da nossa tragédia, como humanos e como nacionais. Adquirida cenicamente a dignidade, e prestes a ser obtida a coroação in extremis: natural é também que a regularidade se dilua — é quase livre o último monólogo de D. António, são em prosa as cenas da coroação. E só no fim Diogo Botelho falará em verso medido, cuja medida final o eco do Coro e da consciência dos espectadores, cujo ouvido se habituou à cadência, terá angustiosamente de completar, participando, o que é da essência da tragédia.

Depois de tudo isto, que o verso seja branco, isto é, não rime, que significado terá? O verso teatral tem tradições de rima. O teatro clássico francês, o teatro romântico francês, o teatro espanhol do Século de Ouro, algum teatro isabelino, Gil Vicente, tudo isso rima sempre ou quase sempre. Shakespeare, exceptuadas as cançonetas intercaladas em muitas peças, raro rima, e o verso branco é, de resto, um dos aspectos honrosos que a tradição poética britânica costuma alardear. A rima, no teatro, pode ser ou não ser um defeito, conforme a missão expressiva confiada ao verso. Refiro-me evidentemente à rima consoante final, que é uma rebusca, um hábito do ouvido, um gosto de caixa de música, muito belos em soneto. Que a rima é coisa mais vasta, e toantes e aliterações são o pão nosso de cada dia de quem escreve versos sonhando ouvi-los. O prestígio de muita linguagem poética, aparentemente seca, reside nessa tendência natural da expresão poética para a associação sugestiva de constantes sónicas. Pode mesmo afirmar-se que a nobreza da linguagem com que um autor ou um povo se exprimem varia proporcionalmente a essa riqueza musical do ritmo. Refiro-me, portanto, apenas à consoante final, que é, de resto, o que o vulgo e os poetastros de fado mais ou menos corrido têm, na culta ou ingénua mente, por rima.

De certo modo, essa rima define, no discurso metrificado, o limite do verso. Conforme a inspiração e os hábitos formais em vigor, os poetas procuraram encerrar uma proposição ou um sujeito lógico em cada verso, o que a rima final acentua; assim procederam, por exemplo, Racine e Molière. Nos casos, aliás muito excepcionais, em que as proposições transbordam de verso para verso, a rima defende os versos contra a diluição auditiva da medida deles, na elocução correntia do discurso lógico. Acontece, porém, que essa defesa do verso não parece compensar uma monotonia sonora em contradição com a continuidade do discurso ao longo de numerosos e idênticos versos; nem a beleza musical, aliás demasiado fácil como o «colorido» em música, parece, por seu lado, compensar a perda de uma secura retórica, que deve ser a linguagem do teatro trágico. Por secura retórica entenda-se a ausência de toda a ornamentação sonora e de toda a imagística puramente ornamental, mais da alegria de produzir que o autor sente, que das circunstâncias psicológicas e cénicas, através das quais sentem e falam as suas personagens.

O verso branco, a que uma ou outra rima consoante, súbita e discreta, empresta algum encanto, permite, simultaneamente, a dignidade do discurso e uma fluência que a acção teatral, se nem sempre a exige, aceita de bom grado para melhor se animar. Que para quem os ouve esses versos o não pareçam, é de somenos importância; fundamental é, porém, que sejam como tal sentidos e ditos por a quem couber a missão de os apresentar. E, aqui neste ponto, surgem para versos dificuldades graves de dicção, nascidas da já referida falta de sensibilidade, que actualmente se verifica, para os valores ritmicamente expressivos da linguagem.

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São fracas, entre nós, as tradições de eloquência autêntica. Frequentemente se confunde com ela uma redundância florida e fácil ou até uma facilidade em falar muito. A eloquência verdadeira pode, pelo contrário, falar pouco e concisamente — é mais da exactidão no sugerir e do ritmar no dizer, que propriamente do alongar-se num delírio verbal, de ebriedade com a própria torrente insignificativa. Se acaso esta última eloquência se prolonga, só o fará, naturalmente e com verdade, quando abandonada à libertação onírica, o que também, e infelizmente, não é da tradição da nossa literatura. Mesmo esta expressão «literatura», com o que implica de sacrifício da liberdade vocal ao artifício lógico da palavra escrita, já de si representa uma triste contrapartida, que se opõe, originariamente, à existência escrita de eloquência pura. Ora o ritmo da dicção, se existe, como existe, no texto escrito que terá de ser dito, está lá exactamente como na escrita musical: requerendo intérprete. Ainda quando mentalmente alguém lê, a perfeita apreensão de um texto postula que o leitor possua uma educada sensibilidade rítmica.

Ninguém pode, em perfeita consciência, pretender que a linguagem atinja uma precisão e lógica expressivas, muitas vezes incompatíveis com a ambígua existência ôntica de sensações, imaginações, pensamentos contraditórios. Nem toda a vida humana e nem toda a consciência humana serão, como tais, jamais redutíveis a um mesmo que complexo esquema lógico. Ainda que o sejam, sê-lo-ão como representação simbólica mais adequada às operações logísticas, do que à descrição circunstanciada da realidade que representam. Deste modo, não é, nem será, do senso comum desprezar o significado do ritmo, que, evidentemente, não sobreviveria à redução lógica do discurso a que serve de suporte. Não sei se os matemáticos da linguagem são, na sua maioria, amadores de música. Não me admiraria que o fossem; admirar-me-ia, sim, que o fossem de toda a música, inclusive a romântica, a impressionista e a de depuração folclórica, tudo formas de criação musical em que não predominam os desenvolvimentos intelectuais de adequação da matéria musical às regras harmónicas preestabelecidas. A riqueza de sentidos, de gradações. de orquestração imagística das sugestões, a plenitude de um mar de ritmo e não de um caprichoso mas rígido canal — tudo isso apenas é transmissível e captável, na linguagem, pela consciência rítmica de uma ordenação e de uma associação de sons, de ideias e palavras, uma e outra adequadas ao estado de alma a exprimir. O homem, na sua vida e na expressão dela, vive muito abaixo (ou muito acima) das ideias que necessita claras para sua segurança jurídica. O tempo e as emoções, antes de serem pensados, possuem já um ritmo. Creio que era Bülow quem dizia, paralelizando a expressão de S. João, que «ao princípio era o ritmo», ou seja a pulsação da vida e do universo, sob todas as formas e aspectos. Poderemos manter-nos um pouco mais longe da hórrida metafísica… — e todos reconheceremos que o ritmo é suporte possibilitante da expressão total, sem o que ela não exprime totalmente, senão a magra sombra produzida pelo critério de realidade que a iluminou.

Após tantos anos de verso livre, bailados, cinema, falar de ritmo é falar da mais banal das palavras. Toda a gente ajuíza do seu gosto por uma obra pelo «ritmo» que lhe encontra, trate-se de uma peça de «jazz» de Duke Ellington, dos «entrechats» de um Babilée, de uma sequência de imagens de Orson Welles. As possibilidades de investigação que o cinema, as células foto-eléctricas, o gramofone, etc, oferecem hoje ao conhecimento do ritmo, no que respeita a sons, imagens, movimentos, excedem, em muito, as especulações de outros tempos em que mais se meditaram essas questões. E, no entanto, entre uma popularidade que encobre todas as improvisações e uma virtualidade científica demasiado oculta, o pobre ritmo continua a ser, ou melhor, é mais desconhecido ou ignorado do que nunca.

Ninguém reparou ainda, por exemplo, que os melhores versos livres — aqueles que mais sugestivamente se nos comunicam— são, naquelas línguas em que versificar «livremente» e abandonar a relação do número de sílabas para a acentuação, precisamente as sequências de palavras que regressam a uma regularidade podálica, quantitativa. Mesmo nas línguas, como a inglesa, que mantém, de certo modo, a medida em pés, o verso livre é uma inconsciente experimentação de outras combinações quantitativas. Não admira que assim seja. À linguagem pertencem características rítmicas. Se o centro de gravidade da linguagem se desloca, com a evolução dialéctica, para outras regiões de expressão da realidade, natural é que, subsistindo o que é intrínseco à natureza da linguagem, sejam procuradas novas combinações, adequadas ao que é mais aprofundado, mais subtilizado, mais discriminadamente sentido. Porque o progresso dialéctico da sensibilidade é nesta discriminação que se revela.

Tudo isto é ritmo; e o ritmo define-se, afinal, pela lei ou leis de variação e de repetição de certos esquemas qualitativos — e (ou) quantitativos — de intensidade, de altura, timbre, alternância, duração relativa destas categorias rítmicas. O que é válido para os sons, as cores, os volumes, as proporções arquitectónicas ou decorativas, exactamente como para a linguagem, adaptadas as categorias àquilo que, para cada tipo de expressão (ou de arte), realmente correspondem, ou seja, partindo-se das gamas correspondentes a cada forma de arte. Sem disto uma consciência válida, falar de ritmo é o mesmo que falar de abóboras.

No teatro, se a linguagem do autor se ajusta ao tipo de teatro que escolheu, à personalidade das figuras, à economia das situações, sem dúvida que parte da tão celebrada «intenção no dizer», que é coroa de glória de muitos actores, será confiada ao próprio ritmo das frases. A inteligência do actor, uma vez integrada na elocução conveniente, ficará liberta para aplicar-se a mais subtis inspirações cénicas. Impõe-se, portanto, para prestígio do teatro e sua autêntica eficiência, que a dicção seja foneticamente cuidada, ritmicamente consciente, de uma dignidade mais entregue à elocução que à severidade do dizer. Escusado será sublinhar que são estas qualidades precisamente as que escasseiam nos nossos palcos, e até nos agora tão populares recitais poéticos. Escusado será sublinhar que tais qualidades podem conseguir-se por uma direcção cénica inteligente, como o comprovam experiências recentes.

A unidade e o ritmo (como sói dizer-se) de um espectáculo dependem, em grande parte, desta segurança linguística. O mesmo é afirmar que, sem ela, nem o grande teatro atingirá aquela significação que as frases e as rubricas do texto em si contêm.

Porém, do ponto de vista rítmico, é da própria essência da movimentação cénica que o verso dramático possua, a par de um ritmo seguro, uma capacidade de desarticulação, cesuras múltiplas, que possibilitem como que um requebro rítmico da linguagem, pelo qual transparecerá mais cruciantemente definida, a situação pendente dele. Um verso que se reparte pelas deixas de duas ou três personagens assemelha-se à exposição sinfónica, em que um tema é continuado e retomado por dois ou três naipes diversos. Neste sentido, as regras clássicas de repartição do verso, de limitação do número das figuras dialogantes, se faziam ganhar ao verso uma estrutura mais evidente ao ouvido, obrigavam-no a perder — e às cenas — uma possibilidade de ondulação rítmica da acção, ecoada sucessivamente por várias figuras. Ao monólogo, convenção magnífica que simultaneamente imita a realidade e a transcende — porque o homem fala só muitas vezes, em voz alta, mas não diz, nesses momentos, todo o discurso que o teatro permite—, cabe, na versificação, a comunhão com o espectador. Um verso que se desdobra em várias personagens é como um bailado a que se assiste. E os versos que uma personagem diz para si próprio são, no teatro, o regresso da comunicação rítmica com a assistência, são a intimidade da personagem, que musicalmente abre o seu espírito, não aos olhos do espectador como no teatro realista, mas aos seus ouvidos e ao seu coração. Alguém, na penumbra de uma sala, revela, ao ouvinte silencioso, as amarguras da sua vida, as tristezas da sua imaginação; e o ouvinte, entre pudibundo e curioso, lhe transmite, no palpitar da sua presença, a liberdade que se expande e o pulsar da outra humanidade. É assim que a tragédia vive. Um coro invisível será o acorde complementar que o pensamento do autor a tal situação justapõe, para acentuar-lhe o significado, a intenção, a ressonância que o ritmo, pulsando livre, absorverá submisso.

A flexibilidade glótico-dramática do verso é assegurada por continuidade sónica das palavras, elisões naturais à linguagem falada, etc, que, com outros artifícios, surgidos naturalmente na composição de versos cuja dicção dramática acompanha, na mente, a sua formação, constituem o singelo aparato sobre o qual assentará a acção verbal. Desses artifícios são particularmente interessantes o partido métrico-expressivo a tirar das pausas, da pontuação intencional, etc. Tudo isto foi da ciência da composição em épocas mais sábias do que a nossa. Ciência bem inútil, se para si própria; mas indispensável ao teatro e à dicção de versos, se por ela também o ritmo, anseio máximo do nosso tempo, melhor se revela e se apoia. Por exemplo: a medida dramática de certo verso exige, para correcção rítmica, uma elisão. A vogal elidida necessariamente na linguagem escrita não o deve ser na linguagem falada, mas sim dada discretamente, como quase muda. Continua o verso correcto, como convém, e a dicção resulta mais elegante. E a elegância da dicção, que não é ênfase deslocada, é indispensável não só ao «ritmo» mas às condições cénicas do teatro, visto que é preciso, para ser-se entendido, recitar claramente, por muito realista e algaraviada que seja a linguagem do texto. O cuidado na dicção é índice da cultura de um povo, e nada melhor do que o teatro, expressão e ara sacrificial do pensamento colectivo, poderá servir e servir-se do que, «em nós, é mais nós que nós próprios».

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Terá ficado claro não serem as preocupações de dicção (quer de elocução dos actores, quer de estilo e estrutura dos textos) preciosismos de ordem literária, mas imperativos do valor espectacular do teatro. Certas memórias ocultas do aspecto grosseiro, imediato, vaidoso, da «commedia dell'arte», ainda vivas na presunção dos actores, como a euforia de meios da encenação moderna o estão na independência dos encenadores, fazem com que muita gente suponha a existência de oposição entre teatro literário e teatro espectacular, ou seja — que uma peça é tanto mais apresentável quanto mais literariamente descuidada. Admite-se mesmo, embora não como teatro (acção dramática), a existência de teatro para ser lido, isto é, para ser «representado» apenas na imaginação do leitor. Grandes escritores o admitiram e com essa consciência o escreveram. Acontece, porém, que essas peças, se nem nos desejos dos autores chegaram à realização cénica, é porque excedem — ou excediam — as possibilidades contemporâneas de tal realização. Peças como The Dynasts, de Thomas Hardy, ou Imperador e Galileu, de Ibsen, estariam nestas condições, e são de extraordinária categoria teatral e intelectual. E, no entanto, a rapidez actual de montagem e os meios de trucagem que a técnica de iluminação, de tapetes rolantes, de sobreposição de cinema permitem, uma e outros tornam quase ilimitada, dentro das convenções cénicas, a liberdade de realização actual. Le Souliar de Satin, de Claudel, tem sido representado com êxito, e a maquinaria já era uma coroa de glória do teatro espanhol do «Século de Ouro». Mas não se trata propriamente de meios mecânicos.

Se aquilo a que habitualmente se chama acção dramática fosse condição de representabilidade, com êxito, de uma peça, os dramas de Tchekov, certas peças de Maeterlinck, Strange Interlude, de O'Neill, teriam sido insuportáveis, dada a preponderância do diálogo, e até do silêncio, sobre a movimentação cénica. Seria insuportável o teatro de Racine. E todo esse teatro teve, no seu tempo, e tem uma força representativa que sobrepuja a movimentação e a pseudoviolência de muito teatro recente, ligado à ainda não ultrapassada nossa época.

Também a penetração psicológica do diálogo, se não analítica, mas sugestiva das situações psíquicas das personagens, não é nem nunca foi óbice ao valor espectacular de uma peça. Ao contrário do que julga o assíduo leitor, a subtileza de um diálogo, desde que seja uma subtileza inteiramente ligada ao que se pensa em cena, é bem mais facilmente apreendida pelo espectador atento que pelo leitor inteligente. É que não basta ser-se leitor inteligente para, mesmo à leitura, compreender uma peça de teatro; é preciso ser-se igualmente — ou até ser só — espectador atento. A compreensão obtida não será, da parte do espectador atento que é o apreciador de teatro, tão lúcida como, em meditações sucessivas, poderá vir a ser a do leitor inteligente; mas, sem dúvida, é mais adequada ao próprio critério de sugestão, e não de intelecção, sobre que se apoiam o diálogo e a acção teatral. Ninguém pode, sem tê-la visto representar, proclamar a sua plena compreensão de uma peça; e disto têm plena consciência os autores, os realizadores, os actores e os verdadeiros críticos dramáticos, quando discutem hipóteses diferentes de encenação de uma obra.

Há, evidentemente, obras híbridas, vazadas em moldes aparentemente teatrais, e que não devem ser confundidas, quer com as peças que excedem o quadro cénico, quer com, por exemplo, romances, em que é aproveitada, como artifício narrativo, a forma escriturai do teatro. Essas obras não são teatro, porque não são espectáculo, por muito espectaculares em palavras, penas, plumas e gente, que os autores as sonhem.

O teatro é, fundamentalmente, um espectáculo. A intensidade crucial dos momentos trágicos, a explosão irresistível de certos momentos fársicos, a sedução funambulesca de bem conduzidas cenas de alta comédia, tudo isso é um sacrifício da abstracção intelectual à natureza espectacular do teatro. Por isso é natural que a espíritos extremamente argutos, mas abstractivos, passe desapercebido ou desagrade francamente o que permite precisamente a exposição cénica daquelas ideias que perseguem. Por isso não admira que espíritos menos argutos, apenas desejosos de assistir a uma representação, se deixem prender por peças absolutamente vazias, óbvias, mas excelentemente carpinteiradas.

O espectáculo tem as suas leis próprias, seja teatro declamado, teatro lírico ou teatro dançado. Leis a que os próprios executantes musicais se sujeitam como executantes e como criaturas que pisam um tablado. As ideias são compreendidas; os espectáculos impõem-se. É mesmo essa imposição, essa força sugestiva, a qualidade primordial que o público exige a um espectáculo, porque é, afinal, da natureza intrínseca da relação público-visão, que o espectáculo estabelece.

A literatice, e não a literatura, é inimiga do teatro. E todavia, notemos que, ultrapassada inteiramente uma sensibilidade colectiva determinada, nos parece insuportável literatice o que foi uma agudíssima vivência dramática. Sirva de exemplo todo o teatro simbolista, de escola. Às vezes, sucede que a aversão manifestada por certas formas significa, pelo contrário, um desfasamento entre aquilo de que realmente se gosta e aquilo de que se desejaria gostar. Exige-se dos outros que nos façam o favor de não suscitar em nós aquelas apetências que sentimos não se coadunarem com a atitude que, em face da voluntária compreensão do momento que passa, entendemos dever eticamente assumir.

Ao teatro cabe, infelizmente, como espectáculo que é, suscitar tudo isso. A própria poesia é menos lírica e mais dramática, na medida em que tal suscita também. O que não quer, evidentemente, dizer que lirismo e espectáculo sejam incompatíveis. Apenas um lirismo que se não desdobre, que se não despersonalize, que se não submeta às situações cénicas que imaginou ou ilumina — apenas esse é incompatível com o espectáculo. Todo o outro é condição essencial à própria existência superior deste: pois que, no teatro máximo que é a tragédia, a significação se refugia precisamente na pungência lírica do discurso das personagens, quando, no momento supremo, expõem a si próprias a sua condição trágica. Como as surpresas e os reconhecimentos, o lirismo é condição do espectáculo. Ora o lirismo, a grande poesia, só é exprimível com a categoria intelectual e linguística compatível com a sua própria altura. Em vez de declamatória, a expressão será discreta; em vez de expositiva, sugestiva; em vez de analítica, densa. Enfim, tudo aquilo que no teatro é a expressão convencional da vida viva, como na poesia lírica é a própria vida da poesia.

 

 

Notas:

1. Diz Garrett, de quem me servi para epígrafe, em outra nota à mesma «memória» — «Gil Vicente usou de todos os metros possíveis em português mas raríssima vez do endecassílabo. E todavia este é quase o único a que a prosódia da língua dá harmonia e força bastante para soar bem sem rima. Que se há-de fazer? Variar-lhe o ritmo, quebrar-lhe a monotonia da cadência como fez Alfieri, a quem todavia o toscano faltou com as desinências fortes que não tem, e que no português abundam tanto».

2. «Sem mitologia» quer aqui significar — sem imaginação. Toda a história da mais alta expressão nacional — a poesia — demonstra a quase ausência de imaginação transfiguradora. A grande poesia, entre nós, terá sido sempre atingida por vias de abstracção intelectual, como é tão visível em Camões e Pessoa. Mesmo um António Nobre não imagina: evoca e convoca pessoas e lugares. Mesmo um Pascoaes pode definir-se, sob este aspecto, por um verso seu, magnífico: «o que há de aparição no seio da aparência» — quer dizer: o que exsurge do que os seres e as coisas parecem.