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A Noite que fôra de Natal

“Foi publicado pela Editora Estúdios Cor, como “brinde de natal” distribuído à crítica, aos seus clientes e amigos, em Dezembro de 1961, numa plaquete ilustrada com desenhos que seriam bons, se estivessem de acordo com o conto. […] Publicado o conto, e porque nesse tempo eu ainda não agredira as “viúvas de Aquilino Ribeiro”, teve ele boa recepção da crítica. Nem toda gente, é claro, sabia que Saulo de Tarso é São Paulo; e nem terá saboreado a alusão à morte de Pã, que provém, salvo erro, do De defectu oraculorum, de Plutarco; nem entendeu, que, influenciado eu há muito por um ensaio de Norman Douglas, em “Siren Land”, o imperador Tibério, me era simpático. Mas isso são questões de somenos importância… O que importa é que o conto agradou, principalmente a muitos que não perceberam, ou fingiram não perceber o que ia nele:  por exemplo, o escândalo de ser S. Paulo a aventar a hipótese, na conversa com o pagão, do adopcionismo (pela qual primitivos cristãos consideram Cristo elevado a Messias no momento em que Deus o teria escolhido, ou lhe dera uma consciência de sua missão), contra a qual foi precisamente o paulinismo quem fundou o dogma cristão”. JS. 

 

Se Deus desce em pessoa à humanidade é que abandona a morada que é a sua. Do mesmo passo, abala o universo. Alteremos do universo a mínima parcela, e todo o conjunto desaba.

Celso, cit. por Orígenes, in Contra Celsum

I

Era como se a noite, de negra, fosse apenas o estron-dear das vagas invisíveis no sopé da escarpa e a aragem fria que salina sentia na boca e nas narinas e, cortante, nas orelhas e na inserção dos caracóis da testa. Envolto no manto de lã, nada mais sentia; e os olhos, absortamente fitos na distância alta, além do parapeito, opaca e sem horizonte, não perscrutavam, apenas alongavam por ela dentro imagens que lhe enchiam a memória vaga.

— Marco Semprónio…

Voltou-se e só então ouviu, por sob o estrondo das vagas invisíveis, os passos arquejantes que haviam precedido o chamamento. No clarão indistinto que difuso vinha de entre as colunas do palácio, reconheceu a barba de Quintílio Vero; imagens da memória, refluindo também para os seus membros, deram-lhe a lembrança da barca, dos exercícios de natação pelas grutas, dos remos batendo na água transparente, e de um cadáver de escravo emanando de si, no azul do fundo, uma nuvem vermelha que se dissipava.

— Que é?

Quintílio Vero tentou ler-lhe no rosto a disposição de ouvi-lo. Mas havia, na inquietação que todo o agitava, uma decisão de falar.

— Os pescadores de Áqua Lívia, tu sabes. Marco Sem-prónio, os de Áqua Lívia — (e no tédio de Marco Semprónio desenhou-se a pequena praia com garotos saltando por entre o peixe que saltava também) —, quando dobravam o cabo, esta noite, ouviram…

— Ouviram o quê? — e a voz soou distante, distraída, timbrada da claridade dardejante da areia da pequena praia.

— Ouviram uma voz que gritava, não gritava, não, mas soluçava, uivava, era um rugido triste, dentro da noite, em cima do cabo, ou dentro dele…

Marco Semprónio, como que para precipitar as delongas narrativas, principiou a atravessar o terraço lajeado. Junto da estátua de Eros, que se erguia no sopé dos degraus da colunata, voltou-se, uma das sandálias no primeiro degrau.

Quintílio Vero, com o seu andar balanceante, aproxi-mou-se devagar. Marco Semprónio, olhando por sobre ele o negrume da noite além do parapeito, sorriu, torcendo os lábios.

— Marco Semprónio… eles ouviram uma voz que dizia… — e Quintílio Vero, esquecido das conveniências que se manifestaram num fugidio franzir do sobrolho de Marco Semprónio, sentou-se cabisbaixo no primeiro degrau, junto da sandália de cordões de ouro.

— Ouviram então uma voz. E que dizia a voz? — perguntou Marco Semprónio, fitando a nuca revolta do pescador.

Quintílio Vero torcia as mãos. Marco Semprónio começou a sentir uma leve agonia, como que um enjoo, e teve subitamente um frio que lhe lambia as pernas depiladas. Aconchegou-se no manto, e subiu as escadas.

A voz do outro chamou-o, quando roçava a coluna de mármore e o manto se pegava nos espinhos da roseira que a envolvia.

— Marco Semprónio… Avisa o Imperador… Eles ouviram dizer… era o cabo quem falava… que tinha morrido…

Marco Semprónio parou sem se voltar.

— Marco Semprónio, não me deixes com esta notícia. Nem digas ao Imperador que eu vim trazê-la. Eles ouviram dizer que morreu o Grande Deus Pã.

Marco Semprónio voltou-se, desceu os degraus até à estátua, encostou a cabeça às ancas de íEros e perguntou:

— O Grande Deus Pã?

Quintílio Vero não respondeu.

— Mas os deuses não morrem, Quintílio Vero, os deuses são imortais.

— Eu sei, Marco Semprónio; eu sei, que sou piedoso. Mas foi o que eles ouviram. E a voz uivava tanto, que deve ser verdade.

Marco Semprónio veio até junto do vulto agachado. Sob o manto, sem desagasalhar-se, tirou da bolsa moedas que tilintaram no lajedo.

— Vai, Quintílio Vero, e não repitas a ninguém essa história. E os pescadores de Áqua Lívia que a não repitam também, ou o Imperador os mandará matar por blasfemos.

E Marco Semprónio subiu os degraus e penetrou no palácio.

II

Na grande sala, iluminada por archotes fumarentos, Marco Semprónio passou devagar por entre os coxins dispersos, alçou cuidadosamente as pernas por sobre um escravo estendido e nu, que já devia estar morto, e reclinou-se, alargando o manto, ao lado do imperador. O olhar vagueou-lhe do rosto envelhecido do César para outro escravo também nu que, em frente deles, pendia, pelos pés, de um varão de ferro, com as pontas dos dedos a roçarem de leve o mármore do pavimento. Mais uma vez Marco Semprónio verificou que um corpo de homem, assim suspenso e exangue, tinha uma beleza estranha, que não teria noutras circunstâncias, por belo que fosse. E aquele era-o. As imagens que haviam flutuado na noite, além do parapeito, configuravam-se agora na recordação daquele corpo vivo, vigoroso, jovem, tão submisso e hábil, e que ele próprio cedera ao imperador. Apurando a vista, examinou-o minuciosamente, e deteve os olhos no pequeno golpe no pescoço, de onde, escorrendo em fio pela cabeça acima — sorriu da inversão dos termos que a suspensão impunha —, o sangue pingava escuro para uma bacia de prata entre as mãos pendidas. Um instante apenas, meditou em porque esquecera a bacia, a não vira quando se sentara, mas às mãos, mais nada. Por certo as mãos pareciam vivas, e é que estavam ainda vivas. Sentiu um saboroso arrepio, uma saudade antecipada e agradável daquelas mãos que morriam. Suspirou.

O imperador dormia, respirando tranquilo, ridiculamente descomposto, e no chão estava o punhal sujo de sangue. Marco Semprónio curvou-se, apanhou o punhal, limpou-o na túnica de Tibério, pousou-o novamente no chão, e levantou-se. Olhando de esguelha o imperador, bateu palmas. Dois escravos surgiram com uma pedra e uma corda, que amarraram aos pés do cadáver por cima do qual passara Marco Semprónio.

E, carregando-o, saíram para o terraço. Marco Semprónio aguardou, de pé, sem olhar o imperador, que eles voltassem, e fê-los desaparecer com um gesto.

Tornou a sentar-se, meio recostado. E divertiu-se a examinar o imperador, que, pelos fugidios brilhos que entrevia nos seus olhos semicerrados, agora fingia dormir. Como estava velho, cheio de refegos no pescoço e no corpo! Como parecia um sileno emagrecido e exausto! Como as rugas e as peles pendidas das faces pareciam com o seu peso esticar mais a pele do crânio, que brilhava suada sob o cabelo ralo! Como o nariz parecia uma tromba ou um sexo, e como o sexo parecia um nariz! Fingindo solicitude e carinho, desenvencilhou-se da sua capa, e com ela cobriu o imperador. Tibério abriu os olhos, sorriu-lhe, acomodou-se melhor sob a capa. Os lábios finos e descaídos, que pareciam esvaziados do que haviam sido de carnudos, entreabriram-se.

— Obrigado, Marco Semprónio. Que seria de mim sem os teus cuidados?

Marco Semprónio baixou modestamente os olhos, e disse: — Bem sabes, César, que a vida para mim não vale senão ao teu serviço.

— E não é fácil servir-me, não é fácil — e a voz tornou–se-lhe amarga para acrescentar: — Se até eu estou farto de servir-me! — e depois, com humor, continuou: — Mas também há quase setenta anos que me aturo e tu, Marco Semprónio, há dez apenas.

— É como se tivesse sido ontem.

— E é verdade, porque te estimo. Mas igualmente é verdade, porque, nesta ilha e neste palácio, tu e eu suprimimos o tempo. Graças a nós, o tempo não passa. Ou passa como as ondas sempre iguais e que são sempre outras com o mesmo mar. Não temos, nesta ilha, rios, Marco Semprónio. E os rios é que são o tempo que passa. Quando agora mandaste deitar ao mar o escravo cuja morte algum prazer me deu, tão pouco, eu claramente senti como aqui nem com a morte o tempo passa. Ou não passa precisamente porque é morte. Repara, Marco Semprónio, naquele sangue que pinga. É como se a vida se esgotasse na água que pinga na clepsidra, e a morte se esgotasse, e com ela o tempo, naquele sangue que escorre, gota a gota, de uma clepsidra humana que voltámos. Quando o sangue pulsa em nossas veias, ele é o tempo que passa. Quando escorre assim, é o tempo que fica.

— Mas, César, porque não abres as tuas veias, para que, com o teu sangue, o tempo acabe?

Os olhos de Tibério olharam ironicamente Marco Semprónio.

— Porque, se as abrisse ou mandasse abrir, eu seria igual àquele escravo que me deste. Seria alguém, um ser, um animal, a quem, como imperador, eu dava a morte. E a última coisa que eu desejo, Marco Semprónio, e por isso deixo que o Império se governe, é ser imperador de mim mesmo.

— Nunca deixaste de governar o Império, César.

— Não, na verdade nunca deixei. Mas não consigo governá-lo senão longe dele. Eu cansei-me de traições, de perfídias, de ambições, de lutas, das pompas imperiais, dos sacerdotes, da família, de tudo. No meio disso, eu não podia governar nem ser quem sou. Assim, nesta ilha, que é como se fosse no fim do mundo, eu sou para eles o Imperador, o imperador ideal, o imperador invisível, que os deixa fazer todo o mal que querem e todo o bem que desejam, em meu nome, e cujos decretos sagrados às vezes descem sobre eles como uma voz divina. Os meus decretos são como a chuva de ouro que fecundou Dánae. E a lenda das minhas crueldades e das minhas devassidões, aqui, ampliada pela ignorância e pela fantasia de cada um, que tem os limites da nossa, mas não tem a minha liberdade para executá-las, só me torna, cada vez mais, um deus temeroso e longínquo que vive na imaginação deles. Por minha parte, nunca me senti tão humano.

Novamente fitou, com fascinação entediada agora, a bacia onde o sangue coalhava espesso.

— Dizem os poetas, Marco Semprónio, que morrem jovens os que os deuses amam. Acreditas que eu amei esse escravo? Ele era belo, jovem, inteligente, sabias que ele era inteligente?, e está ali suspenso, esvaindo-se tão submissamente como um cordeiro que não entende porque é sacrificado pelo arúspice. Pois é verdade, eu amava-o muito; e quero crer que ele foi das poucas pessoas, admitindo-se que um escravo o é, que às vezes se esqueceu que eu era o Imperador. Provavelmente, os deuses amavam-no, porque os homens, qual sou, nunca acreditei que possam ser deuses.

— Foste então o instrumento do amor dos deuses, César Augusto.

— Fui, Marco Semprónio, e não em vão.

Marco Semprónio deitou-se para trás, de olhos fechados. Tibério sentou-se, e olhou-o. Sem abrir os olhos, Marco Semprónio perguntou: — Que foi que ele revelou antes de desfalecer?

— Que morria feliz, porque hoje nascera um deus. Não falou muito claramente, era um murmúrio indistinto, foi preciso que eu me ajoelhasse e encostasse o ouvido à boca dele. Já vou ficando surdo para escutar os oráculos.

Tibério levantou-se, acomodou pelos ombros o manto de Marco Semprónio, e aproximou-se do escravo suspenso. De leve, percorreu-lhe com uma das unhas o flanco, que estremeceu num arrepio.

— Marco Semprónio, ajuda-me a despendurá-lo.

O tribuno sentou-se, olhando surpresamente o imperador. Era tão raro aquilo.

—Ajuda-me a despendurá-lo, Marco Semprónio. Eu quero que ele viva.

Mais surpreso ainda, o outro levantou-se, e disse: — Mas, Tibério, se queres que um deus tenha nascido, é preciso que o deixes morrer.

O imperador não lhe respondeu. Então, ambos, erguendo o corpo inteiriçado e também, como por partes, flácido, tiraram do varão o gancho que havia na corda que lhe amarrava os pés, e conseguiram deitá-lo, cambaleantes, no leito próximo. Tibério, rasgando uma tira da túnica, fez-lhe uma ligadura no pescoço. Marco Semprónio seguia os movimentos do imperador: pegar numa ânfora, deitar numa taça um pouco de vinho, vertê-lo na boca entreaberta, debruçar-se para os olhos esbugalhados e vítreos.

— Marco Semprónio…

Este inclinou-se para o escravo, afastou Tibério com um gesto e, curvando-se, auscultou o peito imóvel e rígido. Depois, foi a uma mesa próxima e trouxe um espelho de metal polido, que chegou à boca entreaberta e que examinou.

— César Augusto, ele está morto.

III

Marco Semprónio recordou os imperadores que a todos tinha conhecido de perto: o grande Tibério, que lembrava com saudade; Calígula, que se imaginara poder ser Tibério; Cláudio, que tremia de ser imperador, e este petulante de agora, cuja vida (era evidente, pois que até ele, Marco Semprónio, conspirava) devia estar por um fio. Na sua «vila», contemplando os netos que brincavam à sombra das parreiras, vigiados por um escravo idoso (como sabia histórias, como era músico, que lições de retórica não dava ele às crianças!), Marco Semprónio não se queixava (ah, não) da vida. Queixava-se, sim, das dores que o não largavam, nem naquela secura tranquila das encostas floridas. A esposa morrera (o túmulo, que mandara fazer-lhe, era umas das curiosidades mais admiradas na Via Apia), as filhas haviam casado (eram de uma delas os pequenos), os dois filhos viviam longe, na Bitínia um, na Tarraconense o outro, ambos magistrados, ambos casados e felizes. As suas comunicações científicas sobre a rigidez dos corpos, e a distribuição dos humores sanguíneos, haviam-lhe granjeado o respeito dos sábios do Império, que todos conheciam as possibilidades que tivera de fazer experiências. Igualmente estimada era a sua «Apologia de Tibério», de que Nero mandara fazer uma edição especial para ser distribuída aos funcionários (coitado, convencido de que, por comparação, se justificaria).

Sentado no banco de pedra ao pé do lago, Marco Semprónio olhava o poente que avermelhava as folhas das parreiras, e punha nos cachos, quase maduros, laivos purpuríneos. Olhando o poente, os risos das crianças eram-lhe uma música suave sublinhando o fim da tarde, com os gritos longínquos dos pastores, os balidos das ovelhas, os chocalhos, as conversas dos escravos no pátio da cozinha.

Pela álea areada, um escravo vinha correndo em direcção a ele. Era o ibero que o filho lhe mandara. Marco Sem-prónio sentiu um baque, um mal-estar, uma angústia, uma curiosidade receosa. Nero teria caído? Tê-lo-ia envolvido numa das conspirações que descobria todos os dias? Ou chamava-o, mais uma vez, para aconselhá-lo na perseguição àquela seita absurda que fazia todas as provocações necessárias para ser perseguida e clandestina?

Marco Semprónio olhou o seu jovem secretário, em quem tinha (não é verdade que tinha?) a maior confiança, a ponto de perdoar-lhe inúmeras faltas, caprichos, grosserias. Átis (era o nome que lhe pusera) parou junto dele, e disse:

— Marco Semprónio, está ali um homem à tua procura, que diz ser um velho amigo teu, mas nunca o vi. Pede para falar-te.

Marco Semprónio achou que, como sempre, Átis dramatizava para dar-se importância.

— Os meus amigos velhos já morreram todos — e sorria.

— De onde é que ele me conhece? Ele disse?

— Da Judeia e da Síria. Diz que tu e ele eram amigos, quando foste o pretor de Antioquia.

— Antioquia? — e Marco Semprónio levantou-se, aprumando com esforço a elegância que era ainda a sua. — Átis, como é ele? Um homem alto, moreno, de barba negra, olhos de fogo, que não é capaz de estar quieto?

— É alto e moreno, e tem olhos de fogo. Mas a barba é grisalha, e nunca vi ninguém tão sereno a não ser meu amo Marco Semprónio.

Este, dando uma palmada no ombro de Átis, declarou:

— Só pode ser o Saulo. Manda entrar.

— Para onde? Para aqui?

— Para a biblioteca. E serve-lhe, enquanto me preparo, daquele Salerno especial. Como ele gostava de Salerno!

E, seguindo Átis que corria, Marco Semprónio, apoiado ao seu bastão, caminhou para casa. Momentos depois, lavado e perfumado, com roupas impecáveis de brancura, assomava à porta da biblioteca e, alçando cuidadosamente as pernas, para não tropeçar numa série de livros que, espalhados no chão, eram o sinal da sua vida estudiosa, aproximou-se do vulto que, de costas, examinava um rolo retirado da prateleira dos poetas.

Marco Semprónio parou e disse: — Tens o mesmo faro de sempre — e já o vulto se voltava, súbito, de papiro na mão, e avançavam, de braços estendidos, um para o outro, quando concluiu: — É um manuscrito grego. — E abraçavam–se, com certa efusão convencional, quando explicou: — São poemas atribuídos a Platão, mas creio que são falsos.

Ficaram depois frente a frente, observando-se mutuamente. E o outro, com voz suave e firme, disse:

— Toda a filosofia é falsa, Marco Semprónio.

Sentaram-se ambos, a um gesto de Marco Semprónio,

e o outro pousou na mesa, onde um jarro e taças brilhavam, o rolo de papiro.

—: Há quantos anos! Que fazes tu em Roma? — perguntou Marco Semprónio. —Nunca mais soube de ti… Que tens feito?

— Nada do que devia. Mas estou em Roma para servir a causa da justiça e da liberdade.

— (Nero é um monstro, com efeito. Não imaginei, porém, que fosse preciso vir da Síria conspirar em Roma, Saulo… Aqui, o mal é precisamente haver conspiradores de mais.

¦— Bem sei, mas para nós a situação é muito grave. E foi por isso que te procurei, em risco de comprometer-te e com-prometer-me.

— Porquê?

— Porque eu sou, Marco Semprónio, pela vontade do Senhor, um dos chefes desses cristãos que tu persegues.

Marco Semprónio olhou-o, estupefacto: — Tu, Saulo?

— Eu.

— Como é possível? Mas há cristãos da tua categoria? E, quando alguém da tua categoria se torna cristão, consegue ser cristão de categoria?

— A minha categoria não era, e não é, nenhuma, Marco Semprónio.

— Mas tu rias deles, Saulo, que eu recordo.

— Ria. Acontece, porém, que eu não sabia o que fazia, e crucificava todos os dias o Senhor em mim mesmo.

Marco Semprónio calou-se, e um silêncio se demorou na biblioteca, durante o qual se ouviram, abafados, no crepúsculo que punha sombras pelos cantos, os ruídos domésticos da «vila». Foi Saulo quem o quebrou.

— Marco Semprónio, é preciso que a perseguição acabe.

— Qual perseguição? Sabes bem que os teus amigos tentaram incendiar Roma. Foste tu quem ordenou?

— Não fui. Cheguei por isso mesmo. Foi um erro monstruoso que é preciso corrigir. Há sempre quem suponha, na sua paixão, que destruir Roma, a devassa Roma, a pecadora Roma, é dar testemunho dos desígnios de Deus. Mas só uma Roma devassa e pecadora deve ser destruída pela oração e a humildade: a que corrói os nossos corações. Eu nunca falei de outra. E quando vós, romanos de Roma, os perseguis, apenas suscitais um amor do martírio, que, um dia, será amor da perseguição. O meu mestre disse: «Amai-vos uns aos outros.» É no amor que o Senhor nos conhece e o conhecemos. Venho pedir-te que uses da tua influência, que é grande, para sustar, no começo, esta cadeia de erros. Para que Roma não seja os Neros que a governam, nem os cristãos venham a ser os Neros que hão-de governá-la.

Marco Semprónio ficou pensativo, e depois fitou o rosto moreno, de nariz fino e longo, as barbas grisalhas e, por fim, os olhos com aquela ardência de sempre: — Mas, Saulo, eu não tenho, esta é a verdade, influência alguma. Neste momento, ninguém a tem. E não creio, desculpa que te diga, que alguma vez os cristãos governem Roma.

— Hão-de governar o mundo, Marco Semprónio. E hão–de até fazê-lo maior, além das Hespérides, para maior glória de Deus.

— Estou a lembrar-me das nossas conversas de Antioquia. Do entusiasmo com que discutias, pela noite dentro. Saulo, tu transferiste para a religião o teu entusiasmo apaixonado. Naquele tempo, todas as filosofias te eram verdadeiras, quando eu achava que nenhuma o era. E hoje, quando eu acho que só a filosofia pode ser verdade, ah, uma filosofia que eu nem mesmo sei o que seja, tu achas que nenhuma o pode ser e que os cristãos hão-de governar o mundo… Quem sabe o que os fados nos reservam? Mas Roma é tão dura, Saulo, que nem nós veremos, nem os nossos netos, uma tal coisa.

— Mas, se tens netos, Marco Semprónio, pensa neles.

— Se eu pensar muito neles, Saulo, são eles quem não pensará em mim. Mas que queres tu que eu faça? Que posso fazer por ti, apenas por ti, já que os teus cristãos, segundo entendo, se não contentam com ser teus?

— Nem têm que contentar. É sozinhos que os homens se salvam ou se perdem. Deus não lhes dá mais do que uma alma, e o seu infinito amor, e os preceitos que devem entender com o coração. Sempre insisti nisso em tudo quanto escrevo.

—São teus esses escritos que por aí circulam, anunciando a chegada próxima do reino de Deus? E contando histórias de milagres?

— Nem todos. E só porque o Espírito sopra onde Ele quer é que eu não sei dizer-te, nem quereria, quais serão os meus.

Marco Semprónio sorriu: —Alguma coisa te ficou, bem que eu dizia, de quando eras filósofo. Mas que pensaste que eu poderia fazer? E, repito, que eu, se puder fazer, o que não creio, só farei por ti, em nome da nossa velha amizade.

Tornou a fitar nos olhos luminosos e profundos o interlocutor, e uma perturbação o percorreu.

— Que eu não sei se podes ser o mesmo amigo. Deves ter ouvido, a meu respeito, horrores. Em Antioquia a minha fama precedera-me. Se mudei muito, se ninguém lembra já o que mais de quarenta anos de Império tornou vulgar, não menos devo ser, para ti, uma dessas Romãs corruptas, um desses corações que não há incêndio que purifique.

— Como te enganas, Marco Semprónio! Tu não conheces a infinita caridade do Senhor, o poder que ele tem sobre a ^Natureza. Nenhum homem pode gabar-se de não ser inestimável aos olhos de Deus. E tu próprio, só porque falaste, acabaste de confessar isso mesmo.

Marco Semprónio franziu o sobrolho, e soltou uma leve gargalhada, pousando com firmeza divertida as mãos nos pontiagudos joelhos.

— Saulo, a melhor maneira de que eu possa ser-te útil não é começar por converter-me.

O outro levantou-se, e deu uns passos pela sala, remexeu nas estantes e, cruzando os braços, encostado a uma, olhou Marco Semprónio e disse: — Nem tenciono. De resto, não te esqueças, nós só procuramos aquilo que, no fundo dos nossos corações, já havíamos encontrado.

Marco Semprónio tossiu secamente.

— Saulo, vou dizer-te uma coisa. Tu falaste do poder do teu Deus sobre a Natureza. Quero crer que o teu Deus se parece com a essência divina dos alexandrinos que estimavas tanto. Mas não importa. Além de que os teus cristãos, na maior parte escravos de todos os cantos do Império, não devem, como tu eras, ser entendidos em alexandrinismos. Sabes que, vai para quarenta anos ou mais, eu era, em seu exílio voluntário, o companheiro fiel do imperador Tibério, que os deuses tenham na sua santa glória. Certa noite, e eu nunca contei isto a ninguém, nem mesmo, nessa ocasião, a Tibério, um pescador veio dizer-me que outros pescadores haviam ouvido, dentro da noite, uma voz que anunciava a morte do deus Pã. Ao imperador, um escravo muito amado, que se esvaía em sangue, anunciara, antes de morrer, oh, eram experiências que nós fazíamos, que morria feliz porque nascera um deus. Ambos os factos sucederam na mesma noite, uma noite cerrada em que nada se via. Eu não acredito em portentos. Achas que as duas coisas se relacionam? Quando foi que nasceu esse homem que os cristãos consideram Deus, um deus mortal?

— Dizes que isso foi há quarenta anos. Nessa altura deve .Ele ter começado a pregar a Palavra de seu Pai. Não me parece que tal noite coincida, pois, com o nascimento dele, mais de vinte anos antes, nem com a sua morte na cruz, alguns anos mais tarde.

— Tibério, depois, mandou fazer inquirições secretas por todo o Império. A história da morte de Pã foi recolhida nos pontos mais distantes. A do nascimento de um deus não foi. Ou não o foi, por maior excesso ainda, já que, para toda a gente, se lhes perguntarmos, há sempre um deus que está nascendo. Será que aquele escravo era cristão? Era tão moço, viera para Roma quase criança, tu dizes que o teu Mestre começou a pregar nessa época, não é possível.

Saulo desencostou-se da estante, veio até Marco Semprónio, parou diante dele, que levantou os olhos papudos e vazios.

— Marco Semprónio, tu sempre meditaste nisso ou foi agora, ao falares comigo, que te lembraste?

— Na verdade, não sei.

— Porque é possível.

— Possível?

— Sim. Imagina que foi nessa hora que Ele reconheceu em si a sua missão, e sentiu em si mesmo que era filho de Deus e o próprio Deus. Não foi, portanto, nessa hora que o meu divino Mestre nasceu de novo, pela segunda vez, na plena integridade do seu Ser? E no momento em que Deus, Ele e a Palavra se tornaram um só, uno e indivisível, na sua consciência, não foi que o deus Pã morreu?

Quase se não viam um ao outro. E ficaram ambos silenciosos e imóveis, até que um escravo entrou com uma candeia que pousou na mesa. O jarro brilhou. O escravo, tão suavemente como entrara, saiu.

Marco Semprónio levantou-se e perguntou: — Voltas para Roma esta noite? Ficas para cear comigo?

Saulo respondeu: — Volto.

— Ao menos bebeste desse vinho de Salerno, que mandei servir-te? Tu gostavas muito de Salerno.

— Não bebi.

— Então bebamos juntos uma taça.

Foi à mesa, encheu duas taças, uma das quais estendeu a Saulo. Este pegou-lhe, e ambos, de taças em punho, eram iluminados amareladamente pela candeia.

Saulo disse: —Sabes, Marco Semprónio, que o vinho santificado é o sangue do meu Mestre?

Marco Semprónio pensou: «Tibério bebia o sangue dos escravos», mas respondeu apenas: — Não, não sabia. — E levantou a taça: —Para que os deuses, todos os deuses, nos sejam propícios.

— Para que o Senhor te proteja.

Beberam e pousaram as taças.

— Saulo, eu na verdade não tenho influência alguma. Mas farei o que puder.

Foram caminhando para a porta, tropeçaram nos rolos que estavam no chão.

— Saulo, se fores preso, não deixarei que te torturem, que te crucifiquem. Tu, afinal, és um cidadão romano. Só podem decapitar-te.

— Eu nunca invocaria, para tanto, a minha condição de cidadão romano, que meu Mestre não foi, porque não sou mais do que Ele, na minha pequenez humana. Mas agradeço-te, porque, último dos seus discípulos, não sou digno da cruz em que Ele morreu.

— Não terei influência para mais.

— É muito já. É tudo. Deus te abençoe.

Marco Semprónio não o viu sair.

 

Araraquara, Dezembro de 1961.

In: Antigas e Novas Andanças do Demónio, 4a.ed., Lisboa: Ed. 70, 1984. pp. 135-148.

(As informações aqui fragmentariamente reproduzidas como introdução encontram-se nas “Notas” finais ao livro.)

 

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