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Mural de Diego Rivera, Cidade do México

Sobre o Modernismo na América Hispânica

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Dentre os vários textos que Jorge de Sena consagrou a temas hispânicos e/ou hispano-americanos, aqui reproduzimos um excerto da sua monumental Poesia do Século XX no qual traça sucinto “panorama histórico-literário” do que se passa nos tempos do Modernismo entre os poetas hispanófonos da Europa e do “Novo Continente”.

 

 

Se, de uma maneira ou de outra, o modernismo vanguardista teve grande repercussão na Rússia, ou, melhor, este país contribuiu para ele decisivamente (ainda que largamente ignorado no “Ocidente”, por muito tempo, o contributo), foi muito diversa a situação da Espanha e da América Espanhola, que no entanto deram ao Modernismo importantes ou excepcionais figuras. A Espanha emergiu lentamente de um Romantismo muito retórico e superficial, na poesia, e que, na prosa, foi já um realismo cortado pelo pitoresco e a idealização. E costume hoje dizer-se que um tom novo. ainda que diversamente, apareceu em duas personalidades: o sevilhano Bécquer (1836-70) e a galega Rosália de Castro (1837-85), esta última mais conhecida e lida em Espanha e por estudiosos da Espanha nos seus versos castelhanos do que pelos galegos em que é verdadeiramente grande (é notória a antipatia castelhana pelas línguas “estrangeiras” da Espanha ou da Península Ibérica, por imperialismo cultural de Castela). Um e outra representam aspectos muito individuais, a influência que tiveram é muito discutível, e na verdade, é a grandeza deles, em comparação com os poetas que os precederam ou foram seus contemporâneos, o que os projecta. A primeira grande voz a surgir após eles é a do filósofo, ensaísta, novelista, etc, Miguel de Unamuno (1864-1936), cuja poesia intensamente pessoal e densa de pensamento, ao mesmo tempo que recusava o sentimentalismo romântico, é a que melhor reflecte a busca de uma nova poesia. Pertence ele à geração dos romancistas Valle-lnclán (1869-1936) e Baroja (1872-1956), dos ensaístas Ganivet (1865-98) e Azorín (1873-1967), do dramaturgo Benavente (1866-1934), ou sejam aqueles que, com outras personalidades, são ficticiamente chamados a Geração de 98, ou seja os que despertaram ou tentaram fazer despertar a cultura hispânica para as realidades, após o assalto que o império espanhol sofrera, naquele ano, por parte do imperialismo norte-americano. Aposição, muito diversificada, desses homens é em geral dupla: por um lado, contra o provincianismo cultural, uma modernização europeizante da cultura, e, por outro, uma rebusca crítica das tradições espanholas. Note-se que, fora de escolas e movimentos, muitas dessas personalidades escreverão obras de carácter experimental, tendo por isso poderosamente contribuído para a criação de uma atmosfera de modernidade. A grande revolução poética (que na prosa teria enorme impacto também) veio toda da Hispano-América, na pessoa do nicaraguano Ruben Darío (1867-1916), se bem que ao cubano José Marti (1853-95) e ao colombiano Asunción Silva (1865-96) se atribuam também honras de iniciadores que o último, com a sua poesia intimista e sensual, por certo foi (apenas Darío teve de vida mais vinte anos para proclamar-se) [1]. Aquilo que é identificado com Darío é o que, em terminologia hispânica, é chamado “modernismo”, e não pode ser confundido com o que o termo significa para França, Inglaterra, América do Norte, Portugal e Brasil, e os mais países em geral. O que, a par de outras tentativas, foi lançado, em 1888, por aquele poeta, e se propagou à América espanhola e à própria Espanha, era uma fusão do parnasianismo que não penetrara a cultura de língua espanhola, com o simbolismo recentemente proclamado em França, e com as tendências decandentistas que a este haviam precedido. E não é, de modo algum, sem muito restritas qualificações, o Modernismo que desponta por 1905-06 na Europa. Há que reconhecer, todavia, que a grande libertação das estrofes livres, medidas insólitas do verso, que vão até ao verso livre, a rima ocasional, níveis coloquiais ou familiares da linguagem aplicados ao intimismo sentimental, etc, deram àquele “modernismo” hispânico características que foram mais avançadas que muito simbolismo noutras línguas — o que muito contribuiu, abado ao tradicionalismo cultural da hispanidade oligárquica, para diminuir ou atrasar, mais tarde, o impacto ou a penetração do Vanguardísmo, de um ponto de vista do experimentalismo formal, e o diluiu no sentimentalismo retórico de raiz romântica, que usou desse “modernismo” para perpetuar-se. Importantes figuras do modernismo hispano-americano foram também o urugaio Herrera y Reissig (1875-1910), o peruano Santos Chocano (1875-1934), o mexicano Amado Nervo (1870-1919), etc, entre uma multidão de poetas e prosadores que sobrevivem antològicamente pela preocupação de dar a todos os países um lugar no panorama da Hispano-América. A influência pessoal (por acção própria e prestígio literário) de Ruben Darío [2] foi importantíssima e nefasta — superior sensibilidade poética, senhor de todos os recursos técnicos, servido por um internacionalismo cultural e sem qualquer ideia profunda, fascinado pelo exotismo cosmopolita dos simbolistas e fantasistas menores de França, e ocultando sob a sumptuosidade retórica um espírito muito conservador político-socialmente e muito sentimental, abriu à Língua espanhola as portas do vácuo rebrilhante, um pouco como o português Eugénio de Castro que foi seu rival em prestígio internacional, e tido por mestre na Hispano-América [3]. A Espanha sucumbiu ao magnetismo de Darío, e é sob a égide dele que poetas como António Machado (1875-1939) e Juan Ramón Jiménez (1881-1958) iniciam as suas carreiras, ainda quando muito devam — e foi o que os salvou — ao contacto directo com o decadentismo e o simbolismo franceses. E ambos não tardaram a sublimar pessoalmente aquela herança alheia à profundidade que ambos continham, e à austeridade expressiva de que dariam exemplo. Entre eles e o grupo de poetas de língua castelhana que desenvolverão o movimento modernista, ergue-se Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), escritor interessante e menor, que teve em Espanha a importância de ter divulgado as vanguardas europeias (em 1909, traduzia ele o manifesto de Marinetti, na sua revista Prometeo). Na continuidade de Machado e de Jiménez, é que aparece em Espanha a chamada Geração de 1927: Pedro Salinas (1891-1951), Jorge Guillén (1893-1984), Garcia Lorca (1898-1936), Dâmaso Alonso (1898-1990), Rafael Alberti (1902-1999), Luís Cernuda (1904-63), Vicente Aleixandre (1898–1984), Miguel Hernández (1910-42), ou sejam os poetas que, com alguns anteriores, são destruídos ou dispersos (salvo dois ou três) pela Guerra Civil de 1936-1939. Ainda que a modernidade de muitos deles tenha aspectos vanguardistas, o impulso de Vanguarda veio de poetas hispano-americanos: Vicente Huidobro (1893-1948) e César Vallejo (1892-1938). O Ultraísmo foi lançado em 1920, e tocou muitas dessas personalidades, tal como presidiu ao início das carreiras do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) e do chileno Pablo Neruda (1904-73).
Notas:

1. É de notar que, sem prejuízo dos antagonismos e rivalidades ditas nacionais, ou de em cada país ser estudada a literatura própria, as nações da Hispano-América vêem as suas literaturas num plano geral de evolução conjunta. Há várias razões para tal. que não resultam só do facto da língua comum. Por um lado. históricas. Muitos dos países, ainda quando a separação deles uns dos outros e do império espanhol tenha seguido, em vários casos, o que eram áreas de facto dentro do império americano da Espanha, foram criações artificiais das manobras das potências europeias e dos Estados Unidos, interessados em “balcanizar” o continente. Por outro lado, sociais. Países de origem colonial, cm que a estrutura foi mantida pela independência política (que, na maioria dos casos, foi feita por classes dirigentes altamente comprometidas com a Espanha ou com o colonialismo) e pelo imperialismo económico das grandes potências, a literatura tendeu a ser criação de minorias aristocráticas ou de alta burguesia enriquecida, com uma relação senhorial e patriarcal com o ‘”povo”, e com apenas uma reduzida classe média urbana como clientela sua. Assim, certa indiferenciação das culturas resultante dos fenómenos políticos da inde pendência (que separam nações algo fictícias), recebia a sua compensação de uma internacionalização facilitada pela comunidade da língua, e que era também efeito de ser uma classe com possibilidades de contactos e de deslocamentos a que fazia a literatura (situação que, hoje. mesmo com escritores revolucionários não deixa ainda de ser semelhante). Por razões diversas, as literaturas da Hispano-América sentem-se um pouco como as literaturas alemã, austríaca, suíço alemã, ou como a da Bélgica em relação à da França. Um outro factor, de ordem política, tem tido igualmente influência na visão unitária, e é o pan-americanismo. Este, em grande parte dirigido ou instigado pelos Estados Unidos para isolar culturalmente os países das suas raízes europeias, tem todavia facetas contraditórias: ou uma fascinação ambígua ante o potencial norte-americano que aparece às classes aristocráticas e burguesas como o protector c a imagem da riqueza, ou um desejo de unidade contra precisamente esse potencial, e que contribui para uma unificação cultural da Hispano-América (e também em face de outros imensos países de língua diversa como o Brasil ou o Canadá). Assim é que, mesmo dentro da América de origem espanhola, é geral a aceitação do conceito “literatura hispano-americana”. De resto, como seria de esperar, só dois ou três países vieram a criar “literaturas”‘ (Argentina, Chile, México): os outros têm o seu provincianismo e produzem eventualmente figuras de projecção continental. Estas, quando atingem o plano internacional europeu, têm todavia atrás de si não apenas um país, mas muitos…
2. Para uma análise estrutural do estilo de Darío e da ideologia subjacente, veja-se. do presente autor, o estudo “La Dulzura del Ângelus, de Ruben Darío”, no volume colectivo Antologia Comentada del Modernismo, “Explicación de Textos Literários”, ed. Porrata e Santana, Medellín, Colômbia, 1974, que, com todo o respeito devido em língua espanhola ao eminente poeta, é um desmascaramento que a crítica hispânica tem elidido no seu conservantismo tradicional. [O aludido texto de JS encontra-se reproduzido em Dialécticas Aplicadas da Literatura, Lisboa, 1978]
3. Por pouco que se pense — e algo injustamente — de Eugénio de Castro, é lamentável que não haja um estudo português da imensa repercussão que ele teve na Hispano-América.