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"O Poeta é um Fingidor" (Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais) – 1a. parte

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Congresso “faraônico” foi como Luciana Stegagno Picchio classificou o Colóquio da Bahia, que lhe permitiu sua primeira visita ao Brasil e o primeiro contacto com seu futuro grande amigo Jorge de Sena. Segundo o programa, Sena nele interveio 10 vezes (como expositor e como “Relator” de 9 comunicações). Quantas vezes mais não teria usado da palavra? Sobre o texto que aí apresentou, anota: “Este ensaio foi apresentado como tese ao IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, que se realizou na cidade de Salvador – Bahia – Brasil, em Agosto de 1959, e no qual o autor participou a convite do Governo Brasileiro e da Universidade da Bahia, e onde foi designado para exercer funções de relator na Secção de Literatura. Outro relator, o Professor Ernesto Guerra da Cal, foi quem relatou esta tese. Mais tarde, “O Poeta é um fingidor” foi lido, em 1 de Junho de 1960, no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, no âmbito das comemorações fernandinas por esse organismo promovidas. Leu o texto o poeta e crítico David Mourão-Ferreira. A redacção actual apenas altera pormenores e amplia notas, em relação à que os anais do Colóquio incluirão”.

Esta nota do autor no livro publicado em 1961, que levou o mesmo título da tese apresentada na Bahia, encontra-se reproduzida em Fernando Pessoa e Cª Heterónima, obra que reúne os muitos textos que Sena, antes e depois, dedicou a Pessoa.

Num breve ensaio sobre «Fernando Pessoa e a Literatura Inglesa»[1], disse eu que era «flagrante certo paralelismo de tom entre as suas prosas preciosísticas e o ensaísmo inglês dos anos noventa, um tom ao mesmo tempo sentimental e agressivo, irónico, e profundamente empenhado em afirmar contraditoriamente a verdade, e que preparava, por um lado, pelas afinidades de raiz nietzscheana, Pessoa para as eventuais aventuras “futuristas”, para as quais, por outro lado, Whitman lhe libertara a imaginação evocativa».

Retenhamos, desta longa citação, «a raiz nietzscheana», que é atestada, para o esteticismo britânico, e entre outras, por um estudioso tão insuspeito, e minuciosa e directamente informado, como Holbrook Jackson [2].

E, agora, observemos o seguinte fragmento poético de Nietzsche, escrito no Outono de 1884 (quando a Fernando Pessoa ainda faltavam quatro anos para nascer), e do qual destaco os três versos que vão interessar-nos:

DIE BÖSEN [3]

Der Dichter, der lugen kann
wissentlich, willentlich,
der kann allein Wahrheit reden.

e para os quais se poderá propor a seguinte tradução:

OS MAUS

O poeta capaz de mentir
conscientemente, voluntariamente,
só ele é capaz de dizer a Verdade.

Isto é, segundo Nietzsche – e esta atitude contraditória é largamente patente na sua obra o poeta, para dizer a Verdade, precisa de, em consciência e vontade, ser capaz de mentir. Claro que esta capacidade de mentir não significará o «criar ficções» – terminologia que durante tantos séculos dominou a poética ocidental -, nem significa o pura e simplesmente fingir, qual os detractores de Fernando Pessoa leram no primeiro verso (e não nos outros) da «Autopsicografia» que de «ele-mesmo-ele mesmo» o poeta da Ode Marítima escreveu. A «mentira» consciente e voluntária do poeta, qual nietzscheanamente é proposto, no fragmento citado, refere-se especificamente à ordem do conhecimento, ou mais exactamente, à ordem da expressão autêntica de um conhecimento do Mundo. Só o poeta que se domine conscientemente e voluntariamente, durante a gestação do poema cujo significado desconhece ainda (e cuja complexidade significativa lhe escapará em parte), só ele será capaz de atingir, tão mais de perto quanto possível, uma verdade não perturbada pelas circunstâncias factuais da criação, as quais se cifram em imagens recorrentes, em tópicos analogicamente sugeridos, em ritmos de respiração momentânea, nos inúmeros escolhos que o ambiente, a idiossincrasia, a cultura, a educação, as tendências ideológicas, o momento político, etc„ propõem a uma gestação difícil, para que ela naufrague na comodidade, no hábito e até no virtual aplauso do público e da crítica. Mas não apenas isto, sem dúvida. Implica, principalmente, um critério de o que seja em poesia a verdade, isto é, uma coisa diferente daquela que o poeta diria, se não soubesse mentir. Em poesia, e para além dela, já que o Dichter de Nietzsche possui notoriamente conotações – aliás bastante correntes na cultura germânica – de sibila e de profeta. Esta mentira, que urgiria saber dominar, saber ultrapassar, não é, pois, apenas o engano da própria sensibilidade, o qual seria vencível pela lucidez, mas também o engano da própria vivência existencial na medida em que ignora a estrutura fenomenal da verdade. «O conceito de verdade é um contra-senso. O domínio do verdadeiro-falso refere-se às relações entre essências, não ao em-si (…). Não existe essência-em-si» [4]. Donde decorrerá que a verdade em poesia, aquela verdade não perturbada pelos factores ocasionais, e aquela verdade que é visão, resultarão da elisão da antinomia «verdadeiro-falso», elisão essa que irá processar-se através de um ultrapassamento do em-si do poeta, ao qual tradicionalmente se identificava a essência da poesia que o poeta materializava, existenciava objectivamente. Isto mesmo, à sua maneira, realizou Fernando Pessoa.

Em 1917, no celebrado Ultimatum, de Álvaro de Campos, preconizava ele, através do heterónimo a que foi na vida mais longamente fiel (ou o autor do «Opiário» foi nele), para transformação da sensibilidade, e para conseguir-se que esta se torne «apta a acompanhar, pelo menos por algum tempo, a progressão dos seus estímulos», a «intervenção cirúrgica anticristã» que implicaria, em primeiro lugar, a «abolição do dogma da personalidade», com o resultado «em arte» da «abolição total do conceito de que cada indivíduo tem o direito ou o dever de exprimir o que sente» («Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. Não confundir com a “expressão da Época”, que é buscada pelos indivíduos que nem sabem sentir por si-próprios. O que é preciso é o artista que sinta por certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro. O artista cuja arte seja uma Síntese-Soma, e não uma Síntese-Subtracção dos outros de si, como a arte dos actuais.»), e com o resultado «em filosofia» da «abolição do conceito de verdade absoluta»; em segundo lugar, «a abolição do preconceito da individualidade», visto que «a ciência ensina (…) que cada um de nós é um agrupamento de psiquismos subsidiários», e com o resultado «em arte» da «abolição do dogma da individualidade artística» («O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma semelhantes [5], dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e indivisível.»), e com o resultado, «em filosofia», da «abolição total da verdade como conceito filosófico, mesmo relativo ou subjectivo»; e, em terceiro lugar, «a abolição do dogma do objectivismo pessoal», uma vez que «a objectividade é uma média grosseira entre as subjectividades parciais», com o resultado, «em arte», da «abolição do conceito de Expressão, substituído por o de Entre-Expressão» («Só o que tiver consciência plena de estar exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma… pode ter alcance.»), e «em filosofia» a «substituição do conceito de Filosofia por o de Ciência» [6]. E termina por proclamar o advento do Super-homem («o mais completo, o mais complexo, o mais harmónico»), como, em 1912, teorizando fulgurantemente acerca dos poetas do grupo da Águia, de que logo se afastou, proclamara a vinda do Super-Camões…

Desnecessário é insistir nos ecos nietzscheanos deste escrito de carácter polémico, que encerra todavia as bases explícitas, menos de um programa de reforma da arte poética e das suas correlações filosóficas, que de uma autopsicografia do próprio autor. Em 1917, já todos os heterónimos se definiram completamente, o mesmo tendo sucedido à expressão «ortónima» que foi talvez a que teve hesitações mais visíveis em orientar-se.

Mas voltemos à «mentira». Na Vontade de Poder, diz Nietzsche: «A mentira não é coisa divina? O valor de todas as coisas não provém de que são falsas? Não se deveria crer em Deus, não porque ele não é verdadeiro, mas porque é falso? – … não são justamente a mentira e a falsificação, a interpolação, que constituem um valor, um sentido, um fim?» [7]. E, em Para lá do Bem e do Mal, afirma: «… fundamentalmente inclinamo-nos a manter que as mais falsas opiniões (às quais pertencem os juizos sintéticos a priori) são-nos indispensáveis; que sem reconhecimento das ficções lógicas, sem uma comparação da realidade com o mundo puramente imaginado do absoluto e do imutável, sem uma contrafacção constante do mundo por meio de números, o homem não poderia viver – que a renúncia às opiniões falsas seria uma renúncia à vida, uma negação da vida. Reconhecer a não-verdade como condição da vida: isto é certamente impugnar as ideias tradicionais de valor por um modo perigoso, e uma filosofia que se aventura a tanto coloca-se por si mesma para lá do bem e do mal» [8].

Temos nestes dois excertos de Nietzsche, em correlação com o «tema» da «mentira», dois outros que, neste pensamento, intimamente se lhe ligam e são da maior importância para a compreensão de Fernando Pessoa: o problema da realidade da transcendência, e um pragmatismo trágico que reconhece a existência indispensável das ficções lógicas (e pode comprazer-se por isso mesmo nelas) como jogo vital em relação ao «puramente imaginado do absoluto e do imutável», e como condição de fuga ao silêncio e à morte. Um outro tema ainda – além daqueles dois [9] -, aliás consequente, no pensamento nietzscheano, da situação que a descrita atitude filosófica automaticamente se cria, é o da situação desta atitude para lá do bem e do mal. Estes, uma vez postulada a relatividade vital dos valores éticos, perdem um sentido que só a acção pragmática pode restituir–lhes, na ordem prática. Mas – e é esse precisamente o ponto que nos aproxima da posição especificamente «fernandina» -, na ordem teórica (identificando-se esta com a visão anterior, perscrutadora, do carácter fenomenal da verdade), que será um Deus em que se crê, não por ele não ser verdadeiro, mas por ser falso? Sem dúvida que um Deus em-si, não referido ao domínio do verdadeiro-falso que é, diversamente, o das relações entre essências… Mas um Deus em-si, quando não haja «essências-em-si», é um Deus existencial, um Deus «in progress», um Deus em acto de existenciar-se, e cuja progressão – no mesmo sentido em que algures expressamente Nietzsche o afirma da verdade – é descontínua. As correlações esotéricas do pensamento nietzscheano são conhecidas [10]; e é manifesta a importância que a noção de um Deus «imperfeito» veio a ter em expressões filosóficas ulteriores, mais ou menos ligadas, como é natural, a meditações de ordem axiológical [11]. Porém, uma descontinuidade como aquela, intuída nas circunstâncias culturais do fim do século XIX, quando, por idiossincrasias e ambiente social, se não aderisse a um hegelianismo contra o qual um Nietzsche ou um Kierkegaard se haviam erguido [12], e se não aderisse também à reinterpretação marxista da dialéctica hegeliana [13] – descontinuidade posta no «ser-em-si» por excelência não poderia deixar de ser, segundo fosse contemplada no próprio Ser ou no Tempo, respectivamente um agregado de hierarquias, ou uma sucessão (ascendente ou descendente) de Paixões e de Quedas [14]. É isto exactamente o que Fernando Pessoa declara, com minuciosa concisão hermética, nos três sonetos «No Túmulo de Christian Rosenkreutz», numa linha em que já, na viragem do III para o IV século, Lactâncio dizia no seu Hino à Fénix:

II est son propre fils, son héritier, son père.
II est tout à la fois nourricier et nourri;
II est lui et non lui, le même et non le même,
Conquérant par la mort une vie éternelle.
[15]

A posição de escândalo perfeitamente definida por Nietzsche na citação de Para lá do Bem e do Mal foi aquela em que, sociologicamente, moralmente e psicologicamente, se colocaram as figuras entre as quais é a de Fernando Pessoa que nos ocupa. Ao escândalo romântico propriamente dito que foi, nas imaginações continentais, representado pela personalidade de Lord Byron [16], havia sucedido, no plano da vida socio-literária, o escândalo baudelairiano que Benjamin Fondane resume magistralmente assim: «A importância da obra de Baudelaire vem de que ela institui uma ruptura no tempo ordinário dos homens e abre para um Mundo onde tudo se passa ao invés do que sucede neste. Apresenta-se-nos como uma dessas festas do Sagrado, tempo de licença e de deboche, de violência e de desordem, de sacrilégio deliberado e de audácia premeditada, licença e deboche sagrados, pelos quais o indivíduo (ou o grupo) retoma um contacto intenso mas provisório (e talvez caricatural) com o tempo primitivo em que não havia ainda tempo, nem leis, nem moral, e em que nada era sacrilégio, uma vez nada nele ser tabu. Sabe-se que esta licença e este deboche tinham nos festivais do Sagrado, a missão de mimar o tempo dos deuses, a fim de reabrir a fonte primeira dos actos que permitem a vida, a fundamentam e renovam»[17]. Já o próprio Nietzsche, com o qual vem fundir-se, no simbolismo e no post-simbolismo, como no estetismo britânico, o espírito baudelairiano, havia notado – e em Byron – os sintomas da transição do escândalo, e dele tirara consequências que são também verídicas para alguns volantes do político que é Fernando Pessoa: «… não é possível crer nesses dogmas da religião e da metafísica, se, na cabeça e no coração, temos o método estrito da verdade (…)». Do que provém também o perigo de o homem se ensanguentar ao contacto com a verdade reconhecida, mais exactamente, com o erro penetrado. É o que exprime Byron nos seus versos imortais: «Conhecimento é dor; os que mais sabem, mais têm de profundamente chorar sobre esta verdade fatal. A árvore da Ciência não é a Vida». Contra tais inquietações, nenhum meio é melhor que evocar a magnífica frivolidade de Horácio (…) e dizer consigo, como ele: «Por que atormentas com aspirações eternas uma tão pequena alma? Por que não iremos antes estender-nos à sombra deste alto plátano ou deste pinheiro?»[18]. E Fondane, por seu lado, retornando a Byron, completa esta fenomenologia do escândalo baudelairiano: «…e sofremos a fascinação do Abismo, como se, nesse instante, nós, e não mais ele, tivéssemos algo a dizer. Nesse instante, participamos numa aventura inaudita que transporta o homem para os seus próprios poderes, esses poderes cuja perda – que a experiência vulgar diz irremediável – é a substância mesma da sua meditação e do seu drama quais Byron os pintou, com uma força notável:

To feel me in the solitude of kings,
Without the power that makes them bear a crown.

«(…) Garantir-nos a existência desse poder, tal é talvez a função da poesia; o porquê de termos dela tamanha necessidade. Porque a necessidade de poesia é uma necessidade de outra coisa que não de poesia»[19].

Retenhamos os seguintes pontos: a ruptura no tempo ordinário dos homens; as festas do Sagrado, tempo de licença e de deboche, de violência e de desordem, de sacrilégio deliberado e de audácia premeditada; a magnífica frivolidade; o transporte do homem para os seus próprios poderes; e a necessidade de poesia como garantia de poder. Relembremos que Pessoa-Alvaro de Campos preconizava que o artista deverá ter várias personalidades, «organizando cada uma por uma reunião concretizada de estados de alma semelhantes» [20].

E retomemos a consideração dos temas da «mentira», do «problema da realidade da transcendência» e o do «pragmatismo trágico», que fomos apontando. Notemos ainda como Schopenhauer criticara a criação artística: «A vida verdadeira de uma ideia dura apenas até ao momento em que eja chega à palavra, esse limite… Desde o instante, com efeito, ém que o nosso pensamento encontrou palavras para exprimir-se, não mais vem do fundo da alma, perdeu, no fundo, toda a seriedade…»[21].

Esta última observação aproxima-nos do tema da «mentira» em Fernando Pessoa, visto que, notava ele, «toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela»[22], e, para ele, a transmutação das emoções se dá quando «o que em mim sente está pensando», segundo o verso célebre [23].

Com todos estes dados, não só nos situamos no âmago do escândalo baudelairiano, como na crise espiritual de que nascerão, em poesia, o «modernismo» genérico e o modernismo em particular qual a personalidade de Pessoa o realizará, iniciando-a escandalosamente com a sua participação activa na publicação de ORPHEU, em 1915. Já, em 1912, os artigos sobre os poetas da revista Águia e da Renascença Portuguesa haviam constituído um escândalo. Mas de outra ordem. Daí em diante, com alternâncias de hesitação e de retraimento, Pessoa intervirá, sempre que o escândalo sirva os seus fins. O permanente apoio crítico dado à obra de António Botto (que é o escritor de quem mais vezes e mais largamente Pessoa se ocupou) [24] e o apoio panfletário dado, em 1923, a Raul Leal, o autor de Sodoma Divinizada, não teriam de resto outro sentido, se não constituíssem ilustrações práticas de um pensamento dual, em conexão transcendente com o dualismo esotérico da divindade. Este dualismo é inseparável do hermetismo, cujos traços são notoriamente distinguíveis em Pessoa como noutros seus pares post-simbolistas. Por outro lado, e ainda nas conexões ideológicas que nos estão interessando, essa dualidade é condição de sageza. Em carta a Gast, de 1881 [25], Nietzsche afirma: «Um homem só, só com as suas ideias, passa por louco, muitas vezes a seus próprios olhos [26]: só a dois começa o que se chama a sageza». Por seu lado, Baudelaire perguntara: «O artista só é artista com a condição de ser duplo, e de não ignorar qualquer fenómeno da sua dupla natureza?» [27]. E Nietzsche, num fragmento de 1872, dissera expressamente (e neste passo vê Bertram a génese de Zaratustra): «Voz amada (…), graças a ti, tenho a ilusão de não mais estar só, e mergulho numa miragem de multidão e de amor, porque o meu coração tem repugnância em crer que o amor haja morrido, não suporta o frémito da mais desolada solidão, e força-me a falar, como se eu fosse dois» [28]. É o que Pessoa repete por sua conta, em 1935: «(…) o espírito toma consciência de cada emoção como dupla, de cada sentimento como a contradição de si mesmo. O homem sente que, ao sentir, é dois» [29].

Mas a dualidade oferece ainda outro aspecto nietzscheano que importa relembrar aqui. É o que resulta da oposição do elemento apolíneo e do elemento dionisíaco, cuja distinção se fundamentará, segundo Nietzsche que os aponta, na relação vital com o principium individuationis, do qual «Apolo pode ser considerado como a gloriosa imagem divina», enquanto Diónisos surgirá do «vero colapso» daquele princípio. Do terror que este colapso suscita já havia falado Schopenhauer [30]. E na mesma obra sobre a Tragédia, ao tratar de Édipo, Nietzsche medita: «Este mito parece querer insinuar-nos que a sageza, especialmente a sageza dionisíaca, é um horror contranatura; que quem quer que pelo seu saber, precipita a natureza no abismo do aniquilamento, deve necessariamente contar com sofrer em si próprio a dissolução da natureza» [31]. É isto o que não pode ser dito. «E Kierkegaard garante-nos que o demoníaco é um pensador caracterizado pelo seu hermetismo; não pode dizer nem confessar o que lhe é mais íntimo do coração, nem aliviar-se, derramar a sua miséria no ouvido complacente dos seus semelhantes» [32].

CONTINUA

 

Notas:

1. Publicado no suplemento literário de O Comércio do Porto, de 11/8/953, e incluído no volume colectivo Estrada Larga, 1958.
2. Cf. The Eighteen Nineties, 1.° ed., 1913.
3. Uso o texto da edição: Nietzsche – Poésies Complètes – texte allemand presenté et traduit par Ribemont-Dessaignes, Paris, Seuil, 1948. A apresentação não é profunda, e as traduções são muito imprecisas.
4. Nietzsche cit. por Karl Jaspers – NIETZSCHE, introduction à sa philosophie – trad. fr., 1950.
5. O sublinhado é meu.
6. Os excertos são transcritos de: Fernando Pessoa – ULTIMATUM de Álvaro de Campos, Porto, s.d. reimpressão recente desse texto. Num poema de 6/11/32 («Que suave é o ar!…»), Pessoa diz: «A alma é literatura».
7. Citado por Ernst Bertram, Nietzsche, essai de mythologie, trad. fr., 1932.
8. Traduzido de Beyond Good and Evil, in The Philosophy of Nietzsche, Modern Library, s.d. Os sublinhados são do próprio Nietzsche.
9. Tema é aqui tomado e usado já referencialmente, quanto à utilização ou cristalização poética no autor em estudo, Pessoa.
10. Cf. no livro citado de E. Bertram, o capítulo «Eleusis» .
11. Em Max Scheler, por exemplo; mas não devemos esquecer o que, nisto, já provinha das filosofias do «inconsciente», com frutos tão importantes na poesia portuguesa: Antero, um dos poucos poetas portugueses que Pessoa mais respeitou.
12. Escusado será notar a importância que já, nesta linha de atitude, tivera Schopenhauer, cujo pensamento, legitimando a «arte» como actividade em si, aliás desenvolvendo consequências da Crítica do Juízo, de Kant, trouxe fundamentação à orientação simbolista que, latente desde o primeiro romantismo, veio a organizar-se como escola e a dissipar-se em individualidades metastásicas quais são os grandes post-simbolistas: Pessoa, A. Machado, Milosz, Yeats, George, Hofmansthal, Rilke, etc., cuja lição foi apreendida pelos expressionistas. Não será, de resto, por acaso que um pensamento de «retorno às origens», como o de Martin Heidegger, se tenha sucessivamente interessado pelo primeiro elo e pelo último desta cadeia na poesia germânica: Holderlin eTrakl.

A possibilidade de um nexo entre o pensamento de Pessoa e os de Nietzsche e Schopenhauer não escapara já a um professor de literatura que tentativamente a apontou numa obra que é dos mais sérios estudos sobre Fernando Pessoa (J. do Prado Coelho – Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, pp. 107-108) dados a público (esse em 1951). A verificação efectiva, o cotejo e a exploração deste aspecto decisivo para a interpretação de Pessoa estavam, todavia, fora do escopo daquele trabalho.

13. Cf. Jorge de Sena, «Fernando Pessoa, indisciplinador de almas», in Da Poesia Portuguesa, Ática, 1959. [Incluído na presente obra.]
14. Max Heindel – The Rosicrucian Cosmo-Conception – 20.” ed., 1948.
15. Trad. franc. in Anthologie de la Poésie Hermétique, Ed. Montbrun, 1948.
16. Que era, todavia e sob certos aspectos, uma sobrevivência social do libertino esclarecido setecentista, tipo humano cujas associações com ideais maçónicos e rosicrucianos não devem ser menosprezadas, aliás.
17. Benjamim Fondane – Baudelaire et l’Expérience du Gouffre, Paris, 1947, pág. 383.
18. Citado de Humano, Demasiado Humano, por B. Fondane, ob. cit., pág. 333. A citação de Horácio, que Nietzsche faz, é da Ode XI do Livro II.
19. Ob. cit., pág. 369. Será interessante e pertinente aproximar esta citação de Byron do que diz Christopher Marlowe no seu Tamburlaine the Great que é uma meditação ainda renascentista sobre o poder, em que se entrelaçam o titanismo mágico característico da época pré-barroca (por sua vez descendente do humanismo alquímico da Idade Média – ver Alexandre Koiré, Paracelse, in «Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuse» da Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, 13.° ano, 1933, n.° 1 e 2-e cujo último descendente, em reversão irónica, é o cepticismo esotérico de Fernando Pessoa, que apontei no ensaio citado («F. P., indisciplinador de almas»), e o naturalismo geometrizante de um intelectual domínio maravilhado da realidade, cuja «coroa» ainda não pesa (e só pesará na derrocada social que se inicia com as duas Revoluções Industriais, após as quais ficará a um Fernando Pessoa uma intersecção psicológica da «solidão dos reis», a que ele faz referências directas ou indirectas, com a marlowiana «doce fruição de uma terrestre coroa», que é a luciferina disponibilidade do espírito que, após a abdicação byroniana, se compraz nas «ficções lógicas», na comparação da realidade com o mundo puramente imaginado do absoluto e do imutável, na contrafacção constante do mundo por meio de números, como vimos na citação de Nietzsche, anteriormente feita. E como, na contrafacção do mundo por meio de números, se inscreve o hobby astrológico de Fernando Pessoa!). Os versos de Marlowe são:

Nature (…)
Doth teach us ali to have aspiring minds:
Our souls, whose faculties can comprehend
The wondrous architecture of the world.
And measure every wandering planet’s course,
Still climbing after knowledge infinite,
And always moving as the restless spheres,
Wills us to wear ourselves and never rest,
Until we reach the ripest fruit of all,
That perfect bliss and sole felicity,
The sweet fruition of an earthly crown.

Poderíamos ainda notar que, por um discretíssimo desvio semântico – e qual sociológica e estilisticamente sabemos – o adjectivo sole, mesmo neste contexto, conteria já o drama que Pessoa herdará, e a que não é alheia a «magnífica frivolidade de Horácio», que Ricardo Reis se aplicará em espelhar. Como, por outro lado, poderíamos notar no «still climbing after knowledge infinite», correlacionado com o «infinito é a Queda» dos pitagóricos (ver Aristóteles, Ética a Nicómaco, L. II, 6,14), correlação que se insere perfeitamente na linha do humanismo alquímico e do naturalismo geometrizante, uma premonição e um paralelismo da concepção rosicruciana de Deus, que Pessoa expõe nos célebres sonetos citados e na sequência dos Passos da Cruz, curiosamente em soneto também.

20. A tal ponto esta afirmação representava uma consciencialização que Pessoa tomara de si próprio e de si próprio no mundo, que, em carta a Adolfo Casais Monteiro, de 20/1/935, ano da sua morte e dezoito anos depois de Ultimatum, diz «… Vou (…) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou antes, de fingir que se pode compreendê-lo» (Páginas de Doutrina Estética, pág. 275). Uma identificação de «personalidades» com os, segundo ele, três processos (clássico, romântico e um «terceiro»), que correspondem a «estados de alma semelhantes», de «utilização da sensibilidade pela inteligência» exemplifica ele numa nota sem data, revelada por J. Gaspar Simões (Novos Temas, pp. 189, 90, 91), e recolhida também naquelas Páginas (pp. 350-1-2-3-). De um ponto de vista «psiquiátrico» (é o termo que Pessoa usa) resumira ele a criação de várias personalidades, dizendo: «seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação» (Páginas de Doutrina Estética, pág. 260 -carta de 31/12/35 a Adolfo Casais Monteiro). Na célebre carta de 11/12/31, de mais de três anos antes, a J. Gaspar Simões, afirmara expressamente: «… E o estudo a meu respeito que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir». Este seu conceito de simulação – e o sentido que deveria dar-se-lhe – explicara-o ele numa das notas de Ambiente, (textos publicados em 1927 na revista presença, e recolhidos nas Páginas de Doutrina Estética pp. 165 e seguintes): «Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente». Mas, num texto publicado em fins de 1924, e que é o ensaio de apresentação da revista Athena, de que foi co-director, aprofundara o afirmativismo cortante do Campos que assinara Ambiente: «A só sensibilidade, porém, não gera a arte; é tão-somente a sua condição como o desejo o é do propósito. Há mister que ao que a sensibilidade ministra se junte o que o entendimento lhe nega. (…) A arte é a expressão de um equilíbrio entre a subjectividade da emoção e a objectividade do entendimento» (Páginas de Doutrina Estética, p. 126). O ciclo destas citações fechar-se-ia iluminantemente com a estrofe –
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

– pertencente ao poema «Deixo ao cego e ao surdo», de 24/8/30, se, em função do hermetismo demoníaco e do dualismo intrínseco, a ironia do «fingir que se pode compreendê-lo (ao mundo)» não tivesse um eco retumbante no célebre aforismo: «Interpretar é não saber explicar. Explicar é não ter compreendido». (Pág. de Dout. Est. , p. 106.)
21. Cit. por E. Bertram, ob. cit., pág. 450. A genealogia desta visão, qual foi apontada na nota 12, corrobora as aproximações nesta altura praticadas.
22. A crítica «poética» desta afirmação, coincidindo com a interpretação do poema de Nietzsche, ao início deste estudo, é feita por Alberto Caeiro em toda a «sua» poesia, e em especial no passo:
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras.

(Alberto Caeiro, pág. 66)

Mas, numa nota assinada por Álvaro de Campos e publicada em 1935 (in Sudoeste 3 e Pág. de Dout. Est., pp. 285, 6), Fernando Pessoa diz, em função da «sinceridade intelectual» que é a que «importa no poeta»: «O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior o que julga que deve sentir».

«Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente; é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. (…) Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia?»

Escusado será aproximar esta nota e a cadeia de citações da nota 20.

23. Uma linha de transformação deste conceito, desde Oliveira Martins, foi já sumariamente estabelecida (cf. Jorge de Sena, Da Poesia Portuguesa, p. 83), e não é difícil, pois, aproximá-la da filosofia do inconsciente que tocou Antero (ver nota 11).
24. É curiosíssimo observar que Fernando Pessoa, in «António Botto e o ideal estético em Portugal» (escrito publicado em 1922), depois de ter definido o «esteta»,declara: «Nisto claramente se distingue do mau cristão decadente, como Baudelaire ou Wilde» (Pág. Dout. Est., p. 70). Já em 1917, no «Ultimatum», Pessoa ataca, nas apóstrofes iniciais, o Yeats primeiro, «o da céltica bruma. A roda de poste sem indicações, saco de podres que veio à praia do simbolismo inglês!» (ed. cit., p. 8), ou seja, quem representaria então a mais conseguida expressão do decadentismo britânico, para um espírito que se alimentara de Walter Pater e se libertara de todo o decadentismo pela «leitura da Degénérescence, de Noudar»… (resposta a um inquérito de 1932, in Pág. Dout. Est., p. 299). T.S. Eliot, no ensaio «Baudelaire in Our Time» (primeiro publicado em volume in For Lancelot Andrews, 1928, e mais tarde incluído em Essays Ancient and Modem), ao criticar as traduções de Baudelaire, feitas poi Arthur Symons, conspícuo vulto dofin-de-siècle, cita Symons longamente, paia comentar: «Este parágrafo é de extraordinário interesse por várias razões. Até nas suas cadências invoca Wilde e o espectro mais remoto de Pater. Igualmente conjura Lionel Johnson com a sua “vida como ritual”. Não consegue livrar-se da religião e das religiosas figuras de retórica» {Essays Ancient and Modem, 1936, p. 66). E o decadentismo o que faz Pessoa chamar «mau cristão» a Baudelaire e à Wilde, segundo o quadro que o decadentismo, a partir de Huysmans, deu de si próprio (ou polemicamente a reacção contra ele desenhou) e que Eliot intencionalmente citara de Symons. Mas (ibidem, p. 74), uma citação de Charles Du Bos esclarece a posição de Eliot: «A noção de pecado, e mais profundamente ainda a necessidade de oração, tais são as duas realidades subterrâneas (em Baudelaire) que parecem pertencer a jazigos mais profundos do que o é a própria fé. Recorde-se o dito de Flaubert: “Sou místico no fundo e não creio em nada”; Baudelaire e ele sempre fraternalmente se compreenderam». A esta interpretação da personalidade de Baudelaiie é que adere T. S. Eliot que diz (pg. 75) – «a sua tendência para o ritual, que Symons, com a sua tão aguda mas cega sensibilidade, observou, brota não de uma atracção pelas formas exteriores do Cristianismo, mas do instinto de uma alma que era naturaliter cristã. E, sendo a espécie de cristão que era, nascido quando nascera, tinha de descobrir por si próprio o Cristianismo. Nesta demanda estava isolado na solidão que apenas aos santos é conhecida. A ele, a noção de Pecado Original veio espontaneamente, e a necessidade de oração». Ao separar nitidamente Baudelaire dos esteticistas e decadentistas que dele decorreram em tão grande parte, Eliot chama precisamente a atenção para aspectos, como a «solidão dos santos» que é inseparável da experiência própria de Pessoa e que está na raiz do «escândalo» baudelairiano e do modernismo que, precisamente por isto e não pelos aspectos mais ou menos ante-simbolistas, em Baudelaire – e em Flaubert tão justamente aproximado dele por Du Bos, e que como ele caiu sob a alçada dos tribunais -, seinicia. As simpatias católicas de Eliot permitem-lhe notar, em 1923, coisas que o crescente anticatolicismo, para mais «pragmático», de Pessoa já lhe não permitia ver (a menos que in abstracto ou na sua pessoal experiência) em 1922. Mas é bem interessante que Du Bos tenha notado esse misticismo mais fundo do que a própria fé, e que tão largos frutos de ocultismo, e não de misticismo propriamente dito, dará, no fim do século dezanove e primeiro quartel do presente século, em literatura, como aqui nos importa.
25. Cit. por E. Bertram, ob. cit., p. 436. Conferido na correspondência de Nietzsche com Gast (em Nietzsche, Lettres à Peter Gast, trad. de Louise Servicen, Ed. du Rocher, 1957, T. II, pp. 60-61, única ed. então ao nosso alcance), o fragmento citado – pertencente à carta 59, datada de Génova, 10 de Abril de 1881 – aparece no seguinte contexto: «Lendo ontem a sua carta, “o meu coração saltou”, como é dito no livro sacro – não era possível dar-me duas notícias mais agradáveis! (O livro, pelo qual sinto desenvolver-se pouco a pouco em mim um apetite que não é dos menores, sem dúvida me chegará hoje às mãos). Então, assim seja! Mais uma vez, atingimos juntos essa cumeeira da vida, tão rica de perspectivas, e juntos olharemos em frente e atrás de nós, e dar-nos-emos a mão, em sinal de que muito temos em comum, muitas coisas boas, e mais do que as palavras podem exprimir. Mal você pode imaginar quão reconfortante me é o pensamento desta comunhão! – porque um homem só, com as suas ideias, pode passar por louco, e muitas vezes a seus próprios olhos: a sageza começa a dois, como a segurança e a bravura e a saúde do espírito». A parte citada por Bertram é esta em itálico, mas é de notar que os sublinhados anteriores e, na citação, o da palavra dois são do próprio Nietzsche. Deve reconhecer-se, em abono da exactidão, que Bertram forçou o sentido, ao destacar do contexto aquele trecho, já que Nietzsche expressamente se está referindo à comunhão de espírito entre dois homens cujos ideais se identificam na medida do possível, e que, no caso, são ele e Gast, tal como este último se lhe oferecera na carta a que Nietzsche responde. Acontece, porém, que o nosso uso da citação não extrapola do mesmo modo, se considerarmos que a dualidade do artista e do pensador (expressamente definida por Nietzsche no passo logo a seguir citado) não deixa de poder assimilar-se à comunhão de duas diversas pessoas a que a carta se referia. Porque essa comunhão, entre um Nietzsche e um Gast, não vai sem a projecção daquele sobre este, nem sem que este se submeta a ser o alter-ego que é reclamado pela saúde de espírito daquele. A conotação de saúde de espírito reveste-se, aliás, e neste contexto interpretativo, do maior interesse: as projeções heteronímicas são uma alternativa que defende da auto-destruição o espírito dividido, substituindo-se ficticiamente à «desaparição» esquizofrenicamente múltipla, tal como o amigo dócil, que partilhe as nossas ideias, nos defende dos males da solidão.
26. Desde muito cedo, são numerosas em Fernando Pessoa as referências a este sentimento de loucura, quer em poemas, quer em ensaios, quer em cartas, daquele que «se adiantou aos seus contemporâneos de viagem».
27. Cit. por B. Fondane, ob. cit., p. 249
28. Cit. por E. Bertram, ob. cit. p. 438.
29. In artigo sobre Ciúme, de António Botto (Pág. de Dout. Est., p. 95).
30. In A Origem da Tragédia, na tradução ingl. em The Philosophy of Nietzsche, Modern Library, p. 171-2.
31. Idem, p. 223.
32. Benjamim Fondane, ob. cit. p. 128, ao caracterizar os aspectos «demoníacos» de Baudelaire.