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Escritoras na Literatura Portuguesa do Século XX

  • Categoria do post:Ensaio

Assinalando o “Dia Internacional da Mulher”, lembremos o quanto Jorge de Sena valorizou a figura feminina em sua obra. Deixando de lado tanto as mulheres marcantes de sua prosa ficcional, como os incontáveis louvores poéticos ao corpo sedutor da mulher, voltamo-nos para o ensaísmo e aí encontramos não poucos textos dedicados a expoentes femininos de nossa cultura. Primeiramente, cumpre mencionar o vastíssimo trabalho (à volta de 800 páginas) dedicado à história e ao mito de Inês de Castro, nos Estudos de História e de Cultura (ver neste site). Depois, vale lembrar seu pioneirismo na focalização de “Florbela Espanca ou a Expressão do Feminino na Poesia Portuguesa” — ousada conferência proferida no Porto em 1946. Depois, as páginas especificamente dedicadas a Mariana Alcoforado (ver), Cecília Meirelles e a Sophia de Mellho Breyner Andresen. Depois, os poemas assinados por mulheres nas suas Líricas Portuguesas. E, para abreviar a lista, as várias menções a mulheres escritoras em estudos de conjunto. Destes, transcrevemos abaixo a comunicação destinada à PAOC – Pacific Association of Ocidental Coast, realizada em S. José, California, em novembro de 1975. Se escrito hoje, este texto não deixaria de destacar, dentre muitos outros nomes, o de Ana Luísa Amaral, que aqui trazemos, em voz e imagem, em magnífica leitura de famoso poema de Sophia — amiga de Sena ao longo de toda a vida e considerada por ele “a maior de todas”. O poema “Meditação do Duque de Gândia sobre sobre a morte de Isabel de Portugal” decerto seria da particular predileção de Sena, posto que do verso “Nunca mais servirei senhor que possa morrer” constrói uma das três “glosas” com “motes” colhidos em escritoras (as outras são Maria Teresa Horta e Luísa Neto Jorge) que compôem o livro Sequências.
Nesta comunicação, como o título diz, não estamos preocupados com o papel que as escritoras desempenharam na literatura portuguesa através dos séculos, mas apenas com o papel eminente que tem sido o delas no nosso século. Deixem-me contudo dar uma ideia das que as precederam.

A literatura portuguesa — escrita em uma das mais importantes línguas românticas, e uma das seis ou sete maiores línguas do mundo, como é sabido — é uma das mais antigas da Europa. Fragmentos de poesia portuguesa eram já citados nos poemas provençais em meados do séc. XII, pela altura em que Portugal se tornou inteiramente independente do reino de Leão. E é curioso acentuar que o começo da divisão foi obra de uma mulher: a condessa Teresa, filha de Afonso VI, de Leão e Castela, que após ter recebido como dote o que é hoje o Norte e o Centro de Portugal (a parte Sul estava ainda nas mãos dos Mouros, nessa altura), lhe deu início, e cujo filho veio a ser o primeiro rei português. Na sucessão de reis portugueses, desde o séc. XII até 1910, quando foi proclamada a República, duas mulheres ascenderam ao trono (e foram elas quem governou, não os maridos). Várias outras mulheres tiveram papéis importantes durante a idade média e depois disso. Na segunda metade do séc. XVI, quando Portugal atingiu o seu ponto alto imperial da expansão no mundo, um dos melhores centros de saber era a corte pessoal da princesa Maria, filha do rei D. Manuel I, cujo círculo de altamente educadas damas se tornou famoso. No séc. XVII, várias mulheres foram muito admiradas como escritoras quer em Portugal quer em Espanha. De entre elas sobressai uma freira, Soror Violante do Céu, que é um dos melhores poetas barrocos deste período. Ainda neste século, os portugueses têm uma lendária mulher com fama europeia, outra freira: Soror Mariana Alcoforado, cujas cartas de amor a um nobre francês (organizadas e editadas por Guilleragues na França, Lettres d’une Réligieuse Portuguaise, 1669) se tornaram num sucesso internacional e foram imensamente influentes na sentimentalidade do séc. XVIII, e que, no nosso século, foram traduzidas em alemão por nada menos que Rilke. No séc. XVIII, uma mulher brasileira de nascimento, Teresa Margarida da Silva e Orta, publicou (1753) um romance didáctico (num tempo em que o Brasil Colonial, como jamais aconteceu no mundo de fala espanhola, tinha um papel preponderante nas letras portuguesas). Este romance que segue o modelo de Fénelón, é, não só o primeiro romance brasileiro, mas uma obra com um tom feminista. No séc. XIX, muitas mulheres foram escritoras; e é curioso salientar, na viragem do século, uma alemã de nascimento, estabelecida em Portugal e portuguesa pelo casamento, que foi talvez a primeira mulher no mundo a ser catedrática, tendo sido nomeada para uma cátedra na Universidade de Coimbra: Carolina Michaëlis de Vasconcelos, cujos estudos medievais e filosóficos são ainda bibliografia básica, e não só para os portugueses.

Esta tendência continuou, e nas últimas duas ou três décadas muitas mulheres foram e são respeitadas «scholars» e professoras universitárias, tais como Maria Helena Rocha Pereira, em Clássicas, ou Andrée Crabbé Rocha e Maria de Lourdes Belchior em Românicas e Literatura.

A República, em 1910, contribuiu para a libertação das mulheres em vários aspectos; e de então para cá pode dizer-se que, em relação a empregos ou carreiras, e apesar do prevalecente «machismo», elas eram sobretudo impedidas, tal como os homens nas classes mais baixas, por discriminação económica.

A ditadura de Salazar, que durou de 1926 a 1974 (se contarmos os anos em que ele estava a prepará-la, e os anos em que o governo foi feito pelos seus sucessores), com todo o seu conservantismo e fascismo, não conseguiu fazer recuar esta tendência e até teve algumas mulheres «nomeadas» para a Assembleia Nacional e em posições do Governo. Por quase cinquenta anos, jornais, semanários e revistas, o teatro e o cinema foram submetidos a uma rigorosa censura tendo em vista não só esmagar a oposição política ou as chamadas ideias subversivas, mas também policiar a moral da mais ridícula maneira. A literatura resistiu de um modo extraordinário: e pode dizer-se que nenhum escritor de qualidade abertamente apoiou o regime, incluindo mulheres. Mas há que dizer que a sociedade, se aceitou as mulheres como escritoras, nas profissões e nos cargos públicos, não gostou muito de vê-las a usufruir abertamente a sua libertação como mulheres. Duas grandes escritoras, Florbela Espanca (1894-1930) e Irene Lisboa (1892-1958), a primeira um grande poeta nos melhores sonetos de amor, e a segunda uma crítica implacável da sociedade e da condição das mulheres nos seus poemas e prosas breves, ficarão como símbolos de antecipação da «nova» mulher. A primeira acabou por se suicidar; a segunda sobreviveu, e contam-se ambas entre as melhores escritoras portuguesas. Outra mulher da mesma geração, Maria Lamas (1893-1983) não é uma grande escritora, mas tornou-se uma das mais respeitadas activistas da oposição ao regime fascista: uma firme esquerdista, que escreveu importantes estudos sobre as mulheres em Portugal e no mundo, esteve exilada e foi perseguida várias vezes. Entre outras mulheres da geração seguinte devo salientar Maria Archer (1905-1981) pela sua coragem e a força e audácia do realismo da sua ficção; e ainda porque ela foi uma das primeiras escritoras em português a escrever sobre a África procurando a verdade (abrindo o campo, com outros escritores, para a nova literatura africana em português).

E chegamos às mulheres que cresceram sob o regime de Salazar, e temos de mencionar a maior de todas; Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919). Uma aristocrata da mais velha cepa (descende de S. Francisco de Borja, duque de Gandia, sobre quem escreveu um dos seus mais belos poemas), um dos maiores poetas do século em português, e mãe de filhos, tornou-se activista política nos anos 50, e é actualmente deputada socialista na Assembleia Nacional. Tão corajosa e tão franca como ela, é Natália Correia (n. 1922), poeta e ficcionista que alinha entre os melhores escritores actuais, que chocou os críticos e o público com a violência e o erotismo das suas últimas obras — é actualmente uma das mais activas jornalistas, escrevendo acerca da Revolução, como muitas outras mulheres têm feito (e a piada em Portugal é que algumas delas têm sido mais «viris» do que os homens, na atitude de desafio de tudo). Agustina Bessa Luís (n. 1922) e Fernanda Botelho (n. 1926) ou Maria Judite de Carvalho (n. 1928) contam-se entre os melhores ficcionistas da actualidade. Salette Tavares (n. 1922) e Ana Hatherly (n. 1929) são importantes poetas que desenvolveram excelente poesia experimental e concreta. Pelo menos três outras mulheres, Maria Teresa Horta (n. 1937), Fiama Hasse Pais Brandão (n. 1938) e Luísa Neto Jorge (n. 1939) são consideradas entre os melhores jovens poetas.

Poderíamos acrescentar muitos mais nomes — e importantes — a esta breve lista. Mas a nossa intenção era mostrar o papel importante que nas últimas décadas as mulheres tiveram na literatura portuguesa, lado a lado com os homens e escrevendo não no tradicional e «feminino» estilo, e, nos últimos tempos, sem que alguém se incomode com as suas vidas privadas. E há nelas toda a espécie de mulheres, como seria de esperar.

Outro ponto devo acentuar, porque é bastante diferente do que se passa nos Estados Unidos: a maior parte destas mulheres são livre-pensadoras ou indiferentes em matéria de religião, tal como acontece com a maioria dos escritores-homens, actualmente, em Portugal. O que pode parecer estranho em relação a um país de maiorias católicas. Mas a este respeito, embora a Igreja seja poderosa entre a gente do campo, em certas áreas, e tendo apoio de alguns sectores da média e alta classe urbana, há que dizer que o catolicismo português foi sempre muito diferente do espanhol: muitos deles se preocupam em observar estritamente os seus deveres, e o anti-clericalismo, através dos séculos, foi sempre bastante prevalecente. Na verdade, a religião estabelecida nem sequer desempenhou qualquer papel significante na literatura a partir das guerras civis liberais do séc. XIX. E é tanto assim, que Salazar, apresentando-se como piedoso católico, não conseguiu nunca modificar esta tendência. E as mulheres educadas alinharam nisto com os homens. Além disso, o puritanismo nunca foi coisa de portugueses. Já no séc. XVII uma freira como Violante do Céu podia escrever poesia que, longe de ser religiosa, é por vezes muito erótica.

O recente caso das «Três Marias» (todas distintas jovens escritoras Maria Teresa Horta, acima mencionada, M. Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) que publicaram uma réplica das cartas de Alcoforado num tom bastante pornográfico, e foram perseguidas por este feito nos últimos tempos do regime fascista, é muito curioso: um escândalo internacional, foi também em Portugal uma gritaria de tragicomédia, e uma excelente ocasião para a oposição pôr em foco o governo. E o governo tentava a todo o custo sair daquela trapalhada criada por censores demasiado zelosos e uma polícia que estava chocada, não tanto com o livro em si, como pelo facto de tão simpáticas jovens de boas famílias escreverem coisas tão impróprias. Se elas tivessem sido conhecidas mais abertamente na sua intimidade, talvez a hipocrisia do regime as tivesse deixado em paz. Tudo isto é agora história antiga. A nova história — e o tremendo sacudir disto, que agita o mundo Ocidental muito mais do que muitos se aperceberam — está a ser feita dia a dia em Portugal. E as mulheres — as que foram mencionadas e muitas outras — são, tanto quanto os homens, quem a está fazendo.

Santa Bárbara, Novembro de 1975