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Apresentação da poesia de Teixeira de Pascoaes

  • Categoria do post:Ensaio

Num artigo de 1951, sobre Teixeira de Pascoaes, o jovem Sena de 32 anos confessa: “eu tenho uma grande dívida para com o Poeta, ou ele a tem para comigo. Foi a leitura, feita ao sair da infância, da sua Terra Proibida que me abriu os sentidos para uma coisa que eu não sabia tão grande: a “terra proibida” da Poesia” . Fiel à sua admiração pelo poeta do Marão, largos anos depois e já em terras brasileiras, Sena chama a si a incumbência de organizar o volume dedicado à poesia de Pascoaes, para a coleção “Nossos Clássicos” da Editora AGIR, vindo à luz em 1965 [*]. A coleção, que Sena então dirigia ao lado de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Corrêa, gozava de grande prestígio nos meios acadêmicos (e não só), por permitir passos seguros e eficientes na abordagem dos autores selecionados, sempre a cargo de notórios especialistas. Possivelmente inspirada na vitoriosa coleção francesa “Que sais-je?” , a versão brasileira seguia modelo padronizado — “dados biográficos”, “apresentação”, “antologia”, “bibliografia”, “julgamento crítico” e “questionário” — e cada livrinho de pequeno formato primava pela concisão, pelo essencial disposto em uma centena de páginas. Do referido volume, abaixo transcrevemos a “Apresentação”, convidando nossos leitores a confrontar este texto “brasileiro” da década de 60, com os textos “portugueses” dos anos 50 igualmente dedicados a Pascoaes, a ver se houve variações nos julgamentos…
SITUAÇÃO HISTÓRICA — A Europa em que Teixeira de Pascoaes nasceu em 1877 é a que, após a Guerra Franco-Prussiana de 1870, a criação do nôvo Império alemão, e a unificação da Itália, consegue um equilíbrio competitivo das classes dirigentes aristocrático-burguesas, igualmente irmanadas numa civilização elegante e colonialista, que será, até à Guerra Mundial de 1914-18, a “Belle Époque”. Guerras locais, incidentes diplomáticos, opressão das massas, a corrida das potências para o domínio da África e da Ásia, nada disso altera o cosmopolitismo um pouco provinciano que era o da sociedade que se revia orgulhosamente na vida suntuosa das suas grandes capitais. É a Europa que Eça de Queirós, que morre em 1900 quando Teixeira de Pascoaes atingiu já a sua personalidade original, considera com certa ironia, mas não menos aderindo ao que de melhor o refinamento da época lhe proporcionava. À região nortenha e serrana em que Pascoaes nasceu e onde passou a meninice, tudo isso chegava com atraso, pelos jornais, em raros livros, e coado pelas perspectivas da grande cidade mais próxima que era o Pôrto — um Pôrto onde as farras de Camilo (1825-1890) haviam tomado proporções de medonhas orgias para uma capital de comerciantes operosos, e que era ainda a mesma cidade que Júlio Dinis (1839-1871) pintara em Uma Família Inglesa (1868), calma e simples, muito vitoriana nos seus costumes, e muito orgulhosa das suas tradições de baluarte do liberalismo político.

Em 1877, havia então apenas um quarto de século que Portugal emergira de quase cinquenta anos de invasões e ocupações estrangeiras, de revoluções e contra-revoluções, e de ferozes guerras civis, em que aquêle norte do país, e em especial a região de Amarante, onde Pascoaes nasceu, desempenhara papel de relêvo. Nas longas noites de inverno, à lareira da casa senhorial, as recordações da desordem bélica e sangrenta que longamente agitara as serranias e os vales, a que não chegara ainda qualquer indústria moderna, por certo ressoavam nos ouvidos do pequeno Joaquim, pois estavam na memória e na experiência de boda a gente. Desde os fins de 1807 a meados de 1814, Portugal sofrera três invasões sucessivas das tropas de Napoleão e a presença das tropas inglêsas que as combatiam, com o auxílio de contingentes portugueses. Depois, suportara até 1820 uma ocupação britânica, em nome do rei ausente no Brasil, e que se destinava a impedir que fermentassem as idéias liberais que a Reação, confundindo-as hàbilmente com o bonapartismo autocrático, esmagava por tôda a Europa. Em 1820, porém, foi a revolução liberal que provocou a saída das tropas e do “regente” inglês, e que fêz regressar do Brasil o D. João VI que, como Príncipe Regente, fugira, com a família real, ante a primeira invasão francesa. Dois anos depois, o rei jurava a Constituição, e o Brasil desligava-se de um Portugal liberal que não soubera, senão em inaceitáveis tôrmos coloniais, manter os laços dêle com a metrópole. Nos quatro anos que D. João VI ainda viveu, sucederam-se episódios de contra-revolução absolutista que culminaram na crise de os “legitimistas” não reconhecerem como herdeiro o imperador do Brasil (porque era liberal, e não porque fôsse brasileiro, na verdade), e terem transformado a tentativa de pacificação de D. Pedro, casando sua filha D. Maria da Glória com o tio D. Miguel, na aclamação dêste como rei absoluto, em 1828. D. Pedro, abdicando, pelas dificuldades internas, da coroa brasileira, partiu a defender os direitos da sua filha ao trono, e sobretudo os ideais liberais. A guerra civil prolongou-se até à derrota final de D. Miguel, e sua saída do país, em 1831. Mas só a luta contra o absolutismo impedira a eclosão de nova crise, agora no seio do liberalismo, entre os partidários da constituição votada por uma constituinte e os partidários da Carta Constitucional promulgada por D. Pedro, no fito de garantir as prerrogativas da realeza. Essas oposições, sempre exploradas pelos legitimistas, agitaram o reinado (1834-53) de D. Maria II, e atingiram a máxima violência na revolução da “Maria da Fonte” (1846-47), muito complexa, porque era uma aliança dos partidários da constituição “populaar” (e pequeno-burguesa afinal), do centrismo conservador e agrário, do legitimismo tradicionalista, e de um vago extremismo democrático, com o povo atrasado das aldeias, contra as oligarquias financeiras e especuladoras com o fomento público, que se haviam formado em tôrno da Corte. A revolução só foi sustada pela intervenção das potências que temeram a radicalização dela e a queda da monarquia; e só foi politicamente sanada por um compromisso de um Ato Adicional à Carta Constitucional, promulgado em 1852, graças a uma nova revolução. De 1853 a 1889, durante os reinados dos dois filhos de Maria II, o malogrado D. Pedro V, o amigo e discípulo espiritual de Alexandre Herculano (1810-1877), e D. Luís I, instalou-se no poder um rotativismo político dos grandes interêsses financeiros, tolerado pela classe média que é em grande parte formada por funcionários públicos, e pela frustração política dos elementos mais esclarecidos que vêem a máquina da democracia liberal, mantendo o povo agora como apenas eleitor de “cabresto”, servir a sancionar os litígios dos grupos dirigentes. Mas, no cansaço de meio século de lutas sanguinolentas, a população preferia a paz daquele simulacro que havia abolido a pena de morte (1867) e concluído a abolição da escravatura (1869). Em 1871, as conferências do Cassino Lisbonense, proibidas pelo govêrno, e em que se destacaram os jovens Eça de Queirós e Antero de Quental, foi o primeiro grito de denúncia contra a estagnação político-social do país. Precisamente o ano de 1877, em que morre Herculano e nasce Pascoaes, é típico das contradições do regime: Portugal dá início à exploração sistemática dos seus territórios africanos, com expedições de penetração e descoberta, e é publicado o primeiro Manifesto Republicano, a que os homens de 1871, na sua maior parte e com os seus amigos como Oliveira Martins, preferirão um reformismo dentro da monarquia, que fracassará no reinado (1889-1908) de D. Carlos I. Em 1884, as potências européias, reunidas na conferência de Berlim, procuram dividir a África em zonas de influência, e o sonho do capitalismo português, de estender-se de Angola à, como se dizia, “contracosta” de Moçambique, é desfeito pelo imperialismo inglês. Em 1889, a proclamação da República no Brasil, de cujas remessas de lucros em grande parte dependia o equilíbrio financeiro sobretudo da população do norte de Portugal, é saudada com entusiasmo pelos republicanos portuguêses que vêem nela o triunfo do seu positivismo filosófico. E, de súbito, em 1890, o país é sacudido por uma terrível crise. A Inglaterra, quebrando os acordos, exige que Portugal abandone territórios que lhe pertenciam e que estava ocupando, em Moçambique, e que eram de vital importância para as comunicações do hinterland com o mar. O Ultimatum desencadeou uma onda de antibritanismo, e reabriu tôdas as feridas e tôdas as frustrações acumuladas contra o regime, tendo os republicanos procurado capitalizar a indignação nacional contra o fato de o rei e o govêrno se haverem curvado, como não podiam deixar de fazer, às exigências inglesas. Em janeiro de 1891, estalou no Pôrto, e foi sufocada, a primeira revolução republicana: era a repercussão da república brasileira na região mais afetada por ela, era o antimonarquismo de reação popular ao Ultimatum, e era também a velha tradição de republicanismo pequeno-burguês, frustrada desde 1822. Até 1908, a coroa viveu ao sabor dos choques partidários das oligarquias monárquicas, do mesmo passo que se difundia um republicanismo anarquista que, nesse ano, assassinou a tiro o rei e o príncipe herdeiro. Quando o filho segundo, D. Manuel II, subiu ao trono, ninguém tinha ilusões quanto ao destino do regime, a menos que se desse uma radical modificação das estruturas sócio-políticas, como os homens de 1871 haviam preconizado e em que êles mesmos não acreditavam mais, e que tivesse oferecido uma verdadeira alternativa qu
e, apenas política, a República não era. Esta triunfou na revolução de 1910, para, como sucedera em 1822 com o constitucionalismo mais teórico que prático, ser logo combatida por tentativas de bonapartismo republicano, apoiado pelas classes conservadoras receosas de uma radicalização, e por revoluções e mesmo invasões organizadas em Espanha (cuja monarquia temia a vizinhança de uma república que a própria Inglaterra via com maus olhos) pelos monárquicos. Em 1914, rebentou a Guerra Mundial que selava o fim da “Belle Époque”, e Portugal entrou nela, tendo combatido em Africa contra a invasão alemã dos seus territórios (tolerada pela Inglaterra, que, em guerra com a Alemanha, tinha com ela um acôrdo secreto para partilha das colónias portuguêsas de Africa), e na frente francesa, para onde mandou tropas, a fim de, estando presente no eventual tratado de paz, não ser despojado dês-ses territórios que, às oligarquias portuguêsas, garantiam o status de intermediários coloniais no mercado internacional de matérias-primas.’ Em 1919, deu-se a mais grave e a última “incursão” monárquica no norte do País, chegando a monarquia a ser proclamada no Pôrto, durante alguns dias de terror. Era ainda e sempre o cartismo contra o constitucionalismo, na estagnação sócio-política das estruturas, que também a República, tão receosa de aproximar-se do povo como a monarquia constitucional, e envolvida pela permanência das mesmas rêdes de interêsses financeiros que mantinham havia décadas as finanças à beira da insolvência, não soubera nem pudera providenciar. Na medida em que a República se politizasse socialmente, e se estabilizasse como regime, aquêles interêsses coligar-se-iam contra ela. E foi o que sucedeu em 1926, com a instalação da ditadura militar que depressa evoluiu para o regime atual, sobretudo durante e depois da guerra civil espanhola (1936-39), em que a Europa ensaiou a Grande Guerra Mundial de 1939-45, na qual Portugal não participou, dadas as tendências de então do govêrno em favor do Eixo Berlim-Roma, a impossibilidade de participação ao lado dêste, com uma extensa costa à mercê das esquadras “aliadas”, e as vantagens dos dois lados contendores em não abrirem uma outra frente de combate. A ocupação das ilhas dos Açôres, durante a guerra, pelos anglo-americanos, e a eclosão da “guerra fria” facilitaram a reconversão da política oficial portuguêsa, com a adesão de Portugal à OTAN. Em 1945, rebentara a primeira bomba atómica. Em 1950, começou a guerra da Coréia. E mais não viu Teixeira de Pascoaes, que morreu em 1952.

ESTUDO CRÍTICO — A vida de Pascoaes, decorrendo de 1877 a 1952, assistiu assim à expansão colonial, à agitação republicana, ao regicídio, à vida precária da república, a vinte e seis anos dos quarenta e quatro do regime atual de Portugal. Não tendo sido nunca um político, no sentido militante da palavra, e apesar do seu tom retórico de profeta romântico e visionário, Pascoaes manteve sempre interêsse pelas realidades do mundo político (que êle interpretava à sua maneira), e soube evoluir, sem abandonar o idealismo de republicano liberal, desde os tempos áureos em que foi a maior figura do movimento da “Renascença Portuguêsa”, fundado em 1911 com a missão de elevar culturalmente os ideais da República democrática, até à nobre oração pela paz, que proferiu em 1950, a convite de grupos de extrema-esquerda, e ao discurso com que, em 1951, agradeceu a homenagem promovida pelos estudantes de Coimbra, e à qual aderiram, numa comovente consagração, tôdas as correntes literárias e políticas não-oficiais de Portugal, homenageando a grandeza poética e a independência intelectual e moral dêsse fidalgo republicano de Entre-Douro-e-Minho, nado e criado nas mesmas serranias em que o país se formou.

Desde o juvenilíssimo primeiro livro — Embriões — de 1895, que fêz Guerra Junqueiro (1850-1923) dizer ao pai de Pascoaes que distraísse o filho de fazer versos, porque não era poeta (e o livro, como os dois seguintes, era realmente muito mau), até aos póstumos Últimos Versos, de 1953, a obra de Teixeira de Pascoaes é imensa: cêrca de 75 títulos, se contarmos as reedições retocadas e ampliadas de alguns dos seus livros de poemas, que refundia constantemente, e os numerosos folhetos em que se dispersou. E, à primeira vista, é imensamente variada também: poesia, desde longos poemas como Marános e Regresso ao Paraíso, com milhares de versos, até coletâneas de poeminhas ou de aforismos poéticos, conferências de doutrinação crítica ou moral, peças de teatro, romances, e as biografias filosóficas que, tanto ou mais que a poesia, lhe deram renome internacional. Mas a variedade desta obra tão vasta é a da grandeza e da originalidade de uma personalidade excepcional, que, poderíamos dizer, transformava em Pascoaes tudo o que tocava. É um vento de lirismo desenfreado que devora tudo, uniformiza tudo, identifica tudo, eleva tudo a um egotismo cósmico, em que cristianismo e paganismo se congraçam num humanismo transcendente, eivado de panteísmo naturalista, e em que, singularmente, o homem que o poeta é apenas figura, mas avassaladoramente, como um estilo e uma visão, ainda quando usa das íntimas e singelas circunstâncias da sua própria vida. Desordenadamente e caòticamente muito culto, não se despegou nunca Pascoaes da estrita tradição próxima da poesia que lhe era imediatamente anterior — Antero, Junqueiro, Cesário Verde, João de Deus, Antônio Nobre, as novelas de Camilo —, que transfundiu numa síntese originalíssima; e pode dizer-se que, na poesia, foi primeiro contra êle e a influência da sua escola “saudosista”, que o modernismo português se revoltou, depois de um namoro infeliz (Pessoa e Sá-Carneiro chegaram a colaborar na Águia, a revista da “Renascença Portuguêsa”, e foi Fernando Pessoa quem, na sua estréia como crítico e polemista em 1912, proclamou, com um exa-gêro suspeito, e para escândalo dos próprios saudosistas, as excelências poéticas de Pascoaes e dos seus seguidores como Jaime Cortezão e Mário Beirão). A clivagem que Pascoaes e Pessoa representaram na poesia portuguêsa, entre um velho e um nôvo mundo (que, no entanto, também se reclamava de Cesário e de Nobre, mas também de Camilo Pessanha, e do pós-simbolismo europeu), é muito significativamente simbolizada na mútua atitude de ambos: Pascoaes, até à morte (e êle sobreviveu dezessete anos ao Pessoa que era mais nôvo que êle onze), sempre recusou a Pessoa a qualidade sequer de poeta, insistindo nas suas altas virtudes de crítico (pois como crítico elogioso dêle mesmo se estreara); e Pessoa manteve sempre, para com êle, uma correta deferência fria, como a veneração que é devida aos grandes deuses mortos. Não foi, porém, observado nunca que certo sôpro de epopéia, certa largueza panteísta do tom, certa expansividade retórica e evocativa, transparentes, sobretudo, no heterônimo Álvaro de Campos, são sob o versilibrismo métrico e estrófico, muito menos de Walt Whitman que do próprio Pascoaes que antecipara e realizara, em muito da sua obra, aquela atmosfera da granrle ode pindárica, no verdadeiro sentido originário, e não no das rígidas e artificiais imitações dos árcades.

Pela própria ideologia literária que desenvolveu, Pascoaes não se limita, todavia, àqueles antepassados próximos que citamos e que, para novos rumos e novos sentidos, ressuscitam nos seus versos. Em referências nestes, ou nas conferências em que propagandeou as suas tão pessoais e tão irrealizáveis idéias de redenção de Portugal pelo saudosismo (o que lhe valeu os acerbos e irónicos ataques de um vigilante do racionalismo como o grande crítico Antônio Sérgio), perpassam todas as figuras de relêvo da história da poesia portuguêsa. E, com efeito, tôda uma linhagem sonhadora, visionária, sentimental, abandonadamente retórica, vem, através daqueles nomes citados, consubstanciar-se nêle que foi, como ninguém, o desbordamento lírico do poeta que se sente investido de uma missão superior. O saudosismo, porém, isto é, a Saudade, como sentimento específico e característico da civilização portuguêsa, elevada à categoria de chave filosófica do destino, seria a consubstanciação ridícula de um tradicionalismo literário transformado em “escola”, se não fôsse um dos aspectos fundamentais do génio de um grande poeta, e o reflexo, nêle, de tôda uma situação social que assim encontrou, para morrer, a mais refinada expressão. É certo que, na personalidade complexa de Pascoaes — e é conveniente acentuá-lo, porque o não tem sido —, mesmo o culto da saudade não ia sem alguma dose de pós-romântica ironia. Mesmo nos mais desbragados delírios de visionarismo (às vêzes mais verbais que profundos), Teixeira de Pascoaes conserva um sorriso parecido com o de Heine. Mas o mundo em que êle nascera, que vira à sua volta, e de que colhia os rendimentos de grande senhor na sua aldeia, com modéstia e malícia muito camponesas, era um mundo imemorial que só agora vai desaparecendo. Há que considerar que Pascoaes não é um homem do centro ou do sul do país, mas de uma das regiões mais antigamente civilizadas da Península Ibérica e, ao mesmo tempo, mais suspensa no tempo. Uma das regiões que primeiro foi civilizacionalmente específica, muitos séculos antes de sequer se entender politicamente que Portugal existia: o noroeste da Península, espécie de Finisterra da Europa primitiva, e da qual o Estado português, quando se diferenciou, começou por ser a primeira realidade nacional. Da sua casa natal sobranceira ao vale do Rio Tâmega, correndo verdejante e nevoento em vasto espaço, o poeta tinha sempre ante os seus olhos as massas pardacentas e altaneiras da Serra do Marão, fronteira de Trás-os-Montes e último contraforte, até ao vale rasgado pelo Rio Douro, das cordilheiras da Galiza interior. Dessas montanhas agrestes e nuas, apenas povoadas de estêvas e pastores, e a que os bosques verde-negros só muito lentamente sobem, os ventos trazem um perfume de acre primavera ou, no inverno, a álgida frieza das neves que as coroam. E, nesses vales e nessas encostas, em que, ao longe, pequenas, ermidas branquejam, é prosseguida uma lavoura dispersa, que por sua vez dispersa as aldeias ou as concentra em torno de um pequeno solar senhorial cujos tratos de terra são dados de renda a uma população discreta e sonhadora que repete, com pouca diferença (e com a mesma instintiva desconfiança para com um govêrno central distante que não tem, para ela, realidade alguma nas comunicações escassas e difíceis), os gestos imemoriais de outrora. As invasões, as guerras, as lutas civis, que às vêzes penetraram até aos recessos das montanhas onde as guerrilhas se escondiam, apenas adicionaram camadas sobrepostas ou novos senhores que se miscegenavam aos antigos, àquela passividade alheada, que vivia tranquilamente rodeada de espíritos de tudo, que vieram a ser, depois da cristianização, almas do outro mundo. A civilização dos dólmenes, que se expandiu até a Inglaterra nas rotas dos metais, desenvolveu-se ali. A civilização dos “castros”, cujas ruínas ainda coroam quase todos os cabeços de Entre-Douro-e-Minho. Com os seus aglomerados urbanos de casas de planta redonda, e diferenciada assim dos povoados “celtiberos” do resto da Península, foi integrada incólume na ocupação romana que só definitivamente dominou aquela finisterra no tempo do Imperador Augusto, e que ali apenas durou quatro séculos perturbados por migrações de povos nórdicos, e mais interessada nas explorações mineiras que em romanizar culturalmente uma região de pouco interêsse tributário para o Império. O cristianismo chegou ali tarde, e logo assumiu as formas da heresia priscilianita, mais conformes com o animismo das populações dispersas em pequenos núcleos agrários. Foi coincidindo com essa região que os suevos, no século V, estabeleceram o seu reino que não resistiu à pressão imperial da centralização visigótica, nem às lutas triangulares do arianismo, do priscilianismo (que foi preciso ainda condenar, num último concílio já com as Espanhas ocupadas pelos árabes), e do catolicismo romano. Mas a centralização visigótica, em que as oligarquias administrativo-militares não conseguiram nunca a estabilidade da coroa, durou ali apenas pouco mais de dois séculos, até dissolver-se ante a invasão árabe e berbere, nos princípios do século VIII. Foi essa região que a resistência cristã, refugiada nas Astúrias, logo, décadas depois, primeiro libertou, desviando para o futuro reino de Leão o centro do poder político. Nas oposições feudais dos reinos hispânicos, em que as heranças dividiam os reinos, aquela região foi, num reconhecimento da sua realidade, muitas vêzes autónoma; e, do mesmo passo que os interêsses militares e tributários de Leão, e da Castela que se cindiu dêle, procuravam integrá-la na rêde senhorial de um centralismo político em cujas intrigas o espírito autonomista dos próceres galegos desempenhou longamente (até ao século XIV) papel de relêvo, a criação do Condado Portucalense, no fim do sécudo XI, sancionava a existência diferenciada, no seio da Galiza, de uma zona cujo centro rural precisamente se situava nos vales do Rio Douro e da parte norte da sua bacia hidrográfica, como o seu centro marítimo era a cidade do Pôrto, que drenava o hinterland atlântico, complementar de entre o Douro e o Minho. Quando isto sucedeu, a região em causa foi ficando simultâneamente separada de uma Galiza leonesa ou depois castelhana, destituída de autonomia, e de um govêrno central português que, para expandir o seu território, tinha de encetar, contra os domínios maometanos, uma marcha para o sul (que se concluiu, em 1249, com a conquista dos últimos redutos do Algarve). Isto explica que a língua galaico-portuguêsa tenha escolhido a corte portuguêsa para realizar-se autonomamente na literatura dos cancioneiros, e que, culturalmente mais desenvolvida, se tenha imposto, como língua da poesia lírica, à própria Espanha leonesa e caste
lhana, até aos meados do século XV. Mas explica também como foi possível que, cada vez mais afastada dos interêsses comerciais da costa e do sul, essa região interior e intermédia do norte português, tivesse ficado largamente entregue a si mesma, sobretudo depois que, na revolução nacional de 1383-85, as suas oligarquias galaico-portuguêsas (que haviam jogado a sobrevivência na união com Castela) foram preteridas pela nova aristocracia burguesa, do centro e do sul, que triunfou na revolução e na guerra com Castela, para logo lançar-se, obedecendo aos imperativos económicos da sua ligação com o norte da Europa e com os estados peninsulares e provençais do Mediterrâneo, à expansão ultramarina. Tôda essa aventura da pimenta e dos mares, mal ecoou nos vales do Marão, onde também mal chegaram a Inquisição, a ocupação espanhola, e as guerras da independência, de 1640-68, que se feriram sobretudo no Alentejo. E, quando, no século XIX, os filhos de família, que iam estudar a Coimbra, para lá levaram as idéias liberais e depois os anseios de uma república ideal, isso era ainda, na manutenção secular das estruturas, o desforço oligárquico de uma região que, através dos séculos, fôra abandonada a si mesma, sob a égide de governos mais interessados na expansão colonial (para que, na fase pré-industrial da Europa, mais o Minho que o Douro contribuía já com a sua emigração de populações rurais) que em integrar uma região que, quase ao nível do isolamento e da miséria, se bastava agrlcolamente a si própria. [1]

Tudo isto nos mostra o ambiente que frutificou na poesia de Teixeira de Pascoaes, sob o impulso do inconsciente germânico posto em sonêto por Antero de Quental (1842-1891), do visionarismo cientificizante de Gomes Leal (1849-1921), do panteísmo final e já simbolista de Guerra Junqueiro (1850-1923), do idealismo erótico de João de Deus (1830-1890), da segurança escultórica do verso de Cesário Verde (1855-1880), do narcisismo tradicionalista e simbolista de António Nobre (1867-1900). e do individualismo apaixonado e sarcástico de Camilo (1825-1890), que eram os grandes deuses ainda vivos ou recém-mortos, quando, em Coimbra, no Pôrto e em Lisboa, no esgotamento da agitação naturalista, a literatura enveredava pelo esteticismo, pelo simbolismo, pelo regionalismo nacionalista e pitoresco, como estava sucedendo análogamente por tôda a Europa, numa reação simultâneamente refinada e provincial contra o cosmopolitismo urbano do realismo e do naturalismo. Contemporâneo ainda dos últimos românticos e dos parnasianos, dos naturalistas e dos primeiros simbolistas, do individualismo anárquico e dos primeiros sonhos de reformismo socialista, e pertencente à geração do segundo simbolismo (Angelo de Lima, que o modernismo promoveria a precursor, José Duro, Antônio Patrício, Afonso Lopes Vieira, Antônio Correia de Oliveira, João Lúcio — que haviam vindo após o ainda parnasiano Antônio Feijó, e Antônio Nobre, Camilo Pessanha, Eugênio de Castro, e o prosador e dramaturgo Raul Brandão, um dos deuses tutelares da escola saudosista), Teixeira de Pascoaes, com os pés cravados num sincretismo primitivista e a cabeça nas nuvens fantasmáticas do simbolismo e das deformações sentimentais do nacionalismo literário, estava em condições excepcionais para realizar uma síntese original, antes que a repetição e a imitação literárias de todos êsses poetas, por poetas menores ou por êles mesmos, a tornassem impossível com autenticidade e grandeza. Foi isso que Pascoaes realizou; e desde a publicação de Sempre, em 1898, até à rebelião modernista em 1915 (com a publicação da revista Orfeu), êle foi o mestre incontestado da poesia portuguêsa que, como o público leitor, nêle se reconhecia tôda. E nisto se insinuou um dos maiores equívocos que íizeram o prestígio e o renome merecidos de Teixeira de Pascoaes.

O que se admirava nêle era a efusão lírica, transbordante e retórica, e não a acuidade intelectual que se ocultava sob versos de uma solidez estrutural que o romantismo e o simbolismo raro haviam conhecido. O que se aclamava era um sentimentalismo lacrimoso que transformava tôda a realidade desagradável em visões de espectros e montanhas, de neblinas e arvoredos, de rios e de fontes, docemente dialogando, ou entusiàsticamente apostrofando, em versos intermináveis, sôbre os mistérios da existência; e não a segurança com que êsse pretenso espiritualismo, êsse lirismo da “ausência”, em que a própria personalidade do poeta abrangia o mundo, transfiguravam um cristianismo muito pessoalmente entendido, de expiações e cruzes e Nossas Senhoras, num audacioso paganismo que elidia tôdas as fronteiras das convenções sócio-religiosas. E, ao ficarem os poetas e os críticos muito fascinados pelo caráter passivo e provinciano da “saudade” (uma saudade tão radicada na paisagem natal do poeta), não se davam conta de que essa saudade se voltava muito menos para o passado do que para um futuro em que tal sentimento desempenhava o papel de uma reminiscência platonizante que fôsse o motor de uma crescente humanização do universo. Para êstes equívocos contribuiu enormemente o próprio poeta, com o seu gôsto oitocentista e ainda parnasiano pelas figurações grandiosas (os deuses, os grandes homens, as belas frases, são de quando em vez evocados), com a sua confiança inspirada que não recuava ante as mais banais imagens e os mais vulgares clichês do romantismo tradicional, e com um fôlego vasto e portentoso que se espraiava em versos aparentemente destituídos de qualquer densidade expressiva, e apoiados numa desconexa racionalização dos abstracionismos líricos, meio cultos, meio ingênuos (como o enciclopedismo do século XIX), que eram a bagagem poética de Teixeira de Pascoaes. Por isso, a sua glória tinha então pés de barro mediocremente provinciano, com os quais, até ao fim da vida e muito por atitude, o poeta sempre fingiu comprazer-se. E, por isso também, durante as décadas de vanguardismo literário, êste foi deixando Pascoaes entregue à admiração algo por vezes fruste de quantos viam no modernismo, com o seu retôrno às exigências culturais e ao convívio extranacional da cultura, um perigoso agente de “desnacionalização” do país. Só nas décadas de 40 e 50, passado o mais intenso surto de polémica entre o modernismo e as sobrevivências académicas (muito desacreditadas na medida em que, nacionalìsticamente, haviam aderido ao regime político vigente), e extinto o saudosismo de escola, pôde Pascoaes emergir, para o respeito e admiração das gerações mais novas, como um dos raros e grandes cumes da poesia de língua portuguêsa. Ao lê-lo, hoje, depois de décadas de modernismo às vêzes mais ostensivo que autêntico, é preciso ter presente que êle é um poeta anterior ao melhor e inicial movimento modernista. Que a sua obra principal, em poesia, foi escrita entre 1898 e 1924, quando, durante dez anos, se dedicou a revê-la e refundi-la para as obras completas (cuja publicação ficou incompleta, e não dispensa a leitura das muito diversas edições originais), e se transferiu para a biografia e a novelística (tão irreais, na aparência, como a sua poesia o fôra). E que, portanto, a sua poesia tem de ser estimada e compreendida numa perspectiva histórica. Todavia, no fim da vida, os poemas postumamente publicados, e que representavam o seu retôrno à expressão poética, são no seu extremo esquematismo estrófico, métrico e retórico, a demonstração de que, no fundo daquele lirismo tão dispersivo e efusivo, se escondia — como sucedeu ao irlandês Yeats (1865-1939), que teve, na Renascença Irlandesa, um papel análogo e contemporâneo do seu — uma secura férrea e displicente de adolescente perpétuo em que a velhice é apenas um acidente físico.

A poesia de Teixeira de Pascoaes, sempre medida e muitas vêzes rimada, usa de todos os metros curtos e longos, tomando-os isoladamente ou misturando-os num total versilibrismo estrófico de que foi grande mestre, e que, ao lado de perfeitos sonetos, destruiu a regularidade estrófica e rímica que raro os simbolistas haviam abandonado. Mas a sua métrica, ao contrário do que à primeira vista seria de esperar de um poeta que, a muitos títulos, prolonga a poética simbolista do Vago e do Indefinido, não usa das flutuações acentuais com que os simbolistas deslocavam as cesuras tradicionais; e é muito firme sob as contínuas abstrações imagéticas e intelectualistas de que o discurso é tecido, com a Saudade personificada, as Sombras, os Espíritos, as nuvens e as névoas, os astros e as coisas simples da terra, um Jesus que é o deus Pã, a Nossa Senhora que é a Virgem-Mãe dos panteísmo» primitivos, e o próprio poeta presidindo a tudò, sempre presente na sua ausência individual transformada em poder profético e oracular.

É difícil, numa antologia breve, dar idéia da complexa riqueza de uma poesia tão rica e tão igual a si mesma, e da imensidade de uma obra que, em prosa e verso, se estende ao longo de quase sessenta anos. Essa obra, mesmo quando se concentra em curtos e fulgurantes poemas, nada tem de miniatural, porque Pascoaes é um poeta “in the grand manner“, na melhor tradição da grande poesia universal. Os Dantes, os Camões, os Miltons, os Wordsworths, os Claudels, poetas de obra vasta e profusa (mesmo quando densamente estruturada), não cabem nunca no espaço de uma antologia, sem falsear-se aquilo mesmo que os distingue e que é uma capacidade de ampla respiração criadora, que, se não é condição indispensável a que a poesia seja grande, é-o para que ela atinja aquela maioridade expressiva em que não temos apenas uma visão do mundo, mas esta visão absorve em si, para dar-lhe um sentido e uma estrutura, tôda a realidade. Por isso, e apesar da extrema unidade da obra de Pascoaes, em que verso e prosa são apenas diferentes meios de construir uma mesma expressão, e em que não há fronteiras entre a poesia lirica, o ensaísmo filosófico, o realismo novelesco e o biografismo historicista, nos confinamos apenas ao verso, e deixamos para ulterior oportunidade, as prosas poéticas, as conferências, as biografias e a novelística (como também as obras memorialísticas e de auto justificação crítica, como é, para êste último caso, o interessante O Homem Universal), que perturbariam desnecessàriamente uma primeira aproximação com a poesia de Teixeira de Pascoaes. Se não se entender primeiro essa poesia, aquelas obras poderão parecer um ensaísmo delirante apenas capaz de, a sério, fascinar mentalidades de cultura subdesenvolvida ou espiritualistas germânicos, enquanto que, relidas após a grande poesia de que vieram a ser o prolongamento, são obras dignas da melhor atenção pelas vistas originais e profundas que projetam no entendimento de figuras tão importantes (no caso das biografias) como S. Paulo, Santo Agostinho, São Jerônimo (muito significativamente os três santos talvez mais responsáveis pelas formas que assumiu a espiritualidade cristã), e como o Napoleão que primeiro deu à república burguesa as suas dimensões imperiais. E, de resto, no mar magno da produção de Teixeira de Pascoaes, é a sua obra poética o menos conhecido hoje e mais inacessível, perdida que tem estado em volumes muito raros, na sua maior parte.

Traduzido na Espanha (onde exerceu enorme influência), na França, na Holanda, na Alemanha e na Hungria, Teixeira de Pascoaes foi um dos raros escritores verdadeiramente grandes da língua portuguêsa a vencer as barreiras impostas pelo nosso provincianismo cultural e pela indiferença imperialística das grandes culturas estabelecidas. Foi, é certo, mais que outras obras, o seu São Paulo (recebido com muita reserva pelas ortodoxias a que o poeta nunca aderiu nem à hora da morte) que lhe abriu as portas da celebridade européia. E, no seu isolamento aldeão dessa casa de Pascoaes de que tomara o nome, sentado à janela fronteira ao Marão de que se apropriara (e que também pintou em quadros de violento “primitivo”), o poeta que proclamara a Saudade como “sobrevivente aos mundos e às estrêlas” por certo sorriria — e sorriu — das vicissitudes da grandeza. Completamente só (apesar de representar o papel de patriarca para os seus irmãos e sobrinhos), sem mulher e sem filhos que não teve nunca, e com o seu perfil escaveirado de velho sátiro aposentado, a casa sempre aberta a tôdas as invasões de hóspedes, a ponto de não saber-se ao certo quem lá estava vivendo, e rodeado dos mais heteróclitos e poeirentos objetos, Teixeira de Pascoaes manteve até ao fim a confiança em si mesmo que, se lhe dera as asas da mais rarefeita das poesias, o fazia, na bonomia aparente do seu convívio risonho, um adversário temível, capaz de, com a mais simples piedade cristã, perder um amigo com uma frase certeira. Na humildade rebuscada da sua poesia, há muito desse orgulho imenso de quem, no fundo, acreditava menos nos homens que na humanidade, e não se sentia prêso a nada senão àquele mundo de que, através dos séculos, êle acabara sendo o canto do cisne. Um cisne, porém, muito mais águia do Marão que rouxinol bucólico.

 

Nota:

1. Sobre as civilizações primitivas do noroeste peninsular e a formação de ‘Portugal, ver Jorge de Sena, “A Família de Afonso Henriques”, em Ocidente, ano XXV, vol. LXIV, n.°s 298, 299, 300, 302, de fevereiro, março, abril e junho de 1963, e ano XXVI, voi. LXV, n.°s 303 e 305, de julho e setembro de 1963 Estudos de História e de Cultura 1* vol., Lisboa, 1967. Sôbre a cultura galega, ver Otero Pedrayo, Ensayo Historico sobre la Cultura Calleja, de que há edição portuguêsa, Lisboa, 1954.

 

[*] Uma edição portuguesa, mais alentada no número de poemas antologiados, foi preparada por Sena em 1977 e veio a lume em 1982, pela Ed. Brasília, do Porto).