Sobre a poesia de Jose Craveirinha

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 Em 1972, ano das celebrações de mais um centenário da publicação de Os Lusíadas, não faltaram viagens a Jorge de Sena. Da viagem a Moçambique resultaram, além da enorme e confessada emoção de pisar um solo que Camões comprovadamente palmilhou, o extraordinário poema “Camões na Ilha de Moçambique“, uma entrevista memorável , algumas crônicas e algumas páginas críticas sobre autores que lá conheceu pessoalmente, como o poeta José Craveirinha e o multifacetado António Quadros. A este último consagrou o notável prefácio d’As Quibíricas  e ao futuro “Prêmio Camões/1991” as reflexões que a seguir reproduzimos, originalmente publicadas em Poesia de Moçambique-I, Ed. Minerva Central, Lourenço Marques.. Vale sublinhar que os dois textos datam de outubro de 1972.

 

Tem a poesia deste homem uma ambiguidade como de existir-se lá onde e como, mais do que e trabalho comum de ser-se humano, difícil é dizer-se ou afirmar-se o que ao próprio poeta e mais difícil. Não é, qual se diria em tempos de mau gosto, a poesia de um preto aflito por sentir-se de alma quase branca; nem a de um branco fascinado pelo ondeado rebolar das ancas e dos seios negros (que, nas Áfricas, até aos seios e ancas brancas ensinam algo de um rebolar diverso); nem é sequer uma incerteza de dois sangues se cruzarem, mais ou menos, na alma de um poeta. Isso do mau gosto, como das almas e dos sangues, já deu o que tinha a dar, no desvairado comércio de almas que as gastou, e no terrível derramar san­grento que o não gastou ao sangue mas o não deixa já ser de metáfora. É algo de diverso, mais profundo, e por tal, com tudo isso, mais trágico.

O crítico literário sabido em tradições formais tenderá a notar que o poeta hesita entre fáceis fórmulas recebidas e duras expressões insólitas com que lutaria contra aquelas. O político – de qualquer lado – verá, nestas últimas, afir­mações de “africanidade”, que lhe bastam para não cuidar das outras. E uns e outros não sabem, ou não quererão saber, que de outra situação é que se trata, de que esta poesia recebe o seu sentido, o seu equilíbrio, e o valor que tem.

As Áfricas – diz-se e é a verdade – encantam de um visgo de sedução quem as visita e vive. Muito tempo foi mais simples julgar que era o exotismo, o sonho de espaços vastos, o cheiro de animais e de ervas, como de queimadas ardendo, que tudo flutuava num ar vermelho e fundo. Tudo isso existe — e mes­mo o exótico mais — noutros mundos, e têm servido para explicar o fascínio deles. Mas o como as Áfricas fascinam quem nasceu nelas, e participa, pela afinidade étnica da consciência, na tradição que é mais do que paisagem, é questão diferente. E sobretudo o será onde, por razões ou permanências histó­ricas, que não importam aqui, a cultura europeia se sobrepôs como cultura ao que eram culturas autóctones assim rele­gadas ao folclore ou a uma vida marginal não chamada a contribuir, pela integração harmoniosa, na amplificação da cultura europeia sob novos céus. Isto, por sua vez, é também diferente do que sucedeu noutras áreas da África negra, aonde a cultura europeia não entrou enquanto tal, mas como mera administração económico-financeira que ignorou as outras culturas ou, delas, atraiu à sua língua, pela educação superior, e em bases europeias, alguns raros que nela dessem expressão àquelas. Assim, é mais fácil ser-se africano, lá onde a cultura europeia, retirando-se com os que a personificavam, não deixou de si senão um veneno de nacionalismo burguês e ocidental que se instala no poder, em promoção social que se faz, na verdade, e segundo um esquema tradicional não modificado, de umas tribos ou aglomerações tribais em detri­mento de outras. E também é fácil — ou mais — parecer-se africaníssimo, lá onde uns quantos cultos pelo modelo euro­peu escrevem, em francês ou inglês, da sua africanidade para as Europas do universo. Mas lá onde se instalou um pater­nalismo (dotado daquela maliciosa licença patriarcal com que, na variedade promíscua dos amplexos, às vezes se fazem filhos, alguns dos quais se adoptam pela tradição romana e ibérica) que, ao mesmo tempo, levou consigo uma cultura estritamente, menos do que europeia, “metropolitana”, quando será possível ser-se “africano” autenticamente (e que será essa “autenticidade”), sem reverter-se a esquemas de sonhado e ultrapassado primitivismo em que o romantismo populista da Europa como que se vinga de si mesmo, nem usar-se habilmente das conquistas expressivas das Vanguardas quase centenárias da Europa para ser-se um nacionalistanegro pelo modelo branco? E é isto, cremos, o que torna tão importante e significativa a poesia de José Craveirinha, e tanto pode, por outro lado, contribuir para não ser correcta­mente entendida e apreciada por qualquer foco demasiado focalizado por atenções de hoje ou por hábitos de ontem. Ainda que constrangimentos de vária ordem não houvesse a restringir uma expressão mais franca, é de justo supor-se o quanto, num abrir-se mais, a poesia de José Craveirinha apenas polarizaria mais intensamente, ou mais visivelmente, a divisão antagónica que nela se processa, e de cujo mesmo processo ela é o resultado.

Nenhuma poesia dita autêntica se criou jamais senão nestas divisões dolorosas entre o que herdamos e o que somos, o que foi de sempre como o nascer-se e o morrer-se (sem dúvida os antagonismos inicial e final, por excelência). Mas o que, nessa autenticidade, varia são as formas psico­culturais com que os pólos se, digamos, materializam, pouco a pouco, não tanto apenas por uma consciência de um poeta enquanto homem que se vê na vida que o rodeia, mas mais ainda pela arte do homem que, enquanto poeta, se força a dizer do que vê e sente. Arte, é claro, no sentido do fazer-se e ser feito, e não no das “artes” que se adquirem do trans­mitido património de habilidades da linguagem.

Deste modo, uma luso-africanidade, ou uma africanidade de expressão em português, é uma polaridade tanto mais ambígua quanto mais profunda, pelo que o próprio estilo social de vida super-imposta deixou que ficasse de estruturas arcaicas que, na verdade, tinham muito de afins do próprio paternalismo que se lhes sobrepunha. Por isso, também, é que o problema de poetas africanos de expressão portuguesa mas não africanos de pele, se coloca diversamente do que será o caso noutras regiões africanas: é que também eles são, de certo modo, Craveirinhas ali nascidos, ou ali criados, com os pés no mesmo barro em que se misturou o pó de aldeias da Europa com o pó das senzalas de África. Que ventos pos­sam separar poeiras, ou confundi-las mais, é outra questão.

Eis porque a poesia de um José Craveirinha é exemplar, e serve para todos (em Moçambique, ou alhures, sempre que uma cultura especificamente “crioula” se não formou de abandonada às ondas do Atlântico) se medirem a si mesmos, no que são ou no que pretendem ser. Mas — há que subli­nhar — não vejamos neste “exemplar” nada de apenas con­tingente (ou muito pouco só poderemos ver), apenas sinal importante de um estádio evolutivo que nos cumpriria olhar com paternal condescendência, porque receberia o seu valor de circunstâncias extrínsecas, e ficará, mais tarde, na histó­ria literária, como curiosa transição a registar de passagem, indicação de épocas pretéritas de um peculiar desenvol­vimento literário-cultural. Nós não sabemos nunca, hoje, o que serão as histórias literárias de amanhã, embora saiba­mos por quanto tempo tais escritos guardam e repetem prin­cipalmente a estupidez que as precedeu. Além de que todas as personalidades — ou não existem senão corno fantasmas do que o seu próprio tempo se imagina — são de transição entre o que havia antes delas e o que se lhes segue, se vistas forem na falsa perspectiva de tempos que se projectem em retrospecto. O “exemplar” estaria no que sejam fórmulas superficiais e imediatas e saltam primeiro aos olhos de críticos e não-críticos: mas, na verdade, está em algo mais secreto e que é menos uma herança recebida do passado que de uma aguda consciência do presente. Isto — longe de nós tal ideia — não é insinuar que certa revolta radique mais no “político” que no “mitológico”, quando só do choque dos dois senti­dos é que a revolta brota. Mas é recordar que Goethe dizia que tudo era poesia de circunstância, e só as circunstâncias dariam sempre os melhores poemas que as ultrapassariam. Assim, se entenderá mais exactamente o que aquele “exem­plar” significa.

Mas há mais. Quem falou com José Craveirinha, ou conse­guiu que ele dissesse, falando, mais do que o sorriso em que menos esconde timidez do que a desiludida amargura de que o entendam como ele se vê; e quem o tenha lido, sentindo nas entrelinhas dos versos, no ritmo quebrado em que às vezes se prolongam para lá de um seguro limite, no choque entre o literário e o não-literário, no ranger de expressões que se endurecem como um desafio a uma língua que não se adap­tou aos gestos circulares de outros estilos de pensar, e no crispar-se da linguagem em contrastes como de arranha-céus ao lado de aldeias do caniço, sentindo nisso tudo aquela terrível consciência do que Fontenelle, ao morrer dizia que sentia (“uma dificuldade de ser”) — esse saberá que a poesia não se faz só de elegâncias mas de entrechoques, nem só de calculados ritmos mas quebra deles, e, sobretudo, terá de reflectir, no nosso tempo, a consciência dividida daquela pre­cária unidade a que, se nos doemos de sermos confinados, seria a que, em qualquer caso, teríamos, por não desejarmos honestamente outra.

Poesia “negra”? Poesia “africana”? Por certo que sim a dele é. Mas tocada — ao revés do que pareça — de uma iró­nica e discreta melancolia, de uma sensualidade calma e distendida, de um contemplar de límpidos horizontes, de uma dorida tristeza de ser-se por destino voz, quando a vida pode­ria viver-se num amável e carinhoso silêncio de gestos e de olhares. Talvez que, profundamente, e como contrapartida de uma primigénia e espontânea alegria de viver, isto seja a África, mais do que o imediato do aparente exótico ou da memória ou a experiência de séculos de terrores vividos. Mas, sem dúvida, é — acima de tudo — aquela nobreza da poesia ante que a crítica se envergonha dos seus juízos, como a humanidade deveria envergonhar-se de apenas sê-lo às horas em que não trafica consigo mesma.

 

Santa Barbara, Califórnia, 25 de Outubro de 1972

In: Poesia e cultura. Porto, Caixotim, 2005 p. 165-169