Entrevista a Frederick G. Williams, 04/05/1978

entrev._JLA presente entrevista foi organizada e realizada por Frederick G. Williams, e gravada em videotape na Universidade da Califórnia (Santa Barbara) em 4 de maio de 1978. Sua transcrição integral, aqui reproduzida, foi originalmente publicada pelo JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias – nº 149, 14/20 de maio de 1985, p. 18), com tradução do inglês por Mécia de Sena (datada de 2/5/1984).
Frederick G. Williams – Dr. Sena, o que o fez deixar Portugal para ir ao Brasil, em 1959, e depois, em 1965, deixar o Brasil e vir para os Estados Unidos?

Jorge de Sena – Em 1959 eu tinha já vivido anos e anos de ditadura portuguesa que não mais podia suportar e tinha-me envolvido em muita actividade política da oposição. Além disso buscava uma transformação da minha vida, uma vez que eu não podia continuar a ser o administrador e técnico que era e o escritor e conferencista, etc., que também era. Por isso, quando em 1959 fui convidado para um congresso (um congresso internacional), no Brasil, convidado pelo governo brasileiro e pela Universidade da Bahia, decidi ir. Uma vez lá, fui convidado (e já tivera alguns contactos para aceitar uma posição de catedrático – como eles dizem – em diferentes lugares) acabei por escolher São Paulo. Lá fiquei e tive bons momentos, muito bons, no Brasil. Fiz-me cidadão brasileiro, por sinal.

P. – Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: Por que diz que deixou Portugal em 1959 por causa de certas actividades? Foi por causa de poesia que tinha escrito?

R. – Não, claro que não. Não teve nada que ver com literatura.Tem que ver com actividades políticas impróprias que não eram do gosto do dr. Salazar. Depois, no Brasil, onde vivi de 59 a 65, houve a revolução militar de 1964 e, se bem que eu não tenha sido perseguido directamente ou coisa parecida, senti que tinha escapado uma vez, mas que não era do meu gosto viver numa segunda coisa semelhante. O caso é que dos Estados Unidos me tinham vindo convites perguntando se eu queria vir para ensinar aqui, o que finalmente aceitei. Esta é, pois, a razão pela qual me mudei do Brasil para o Wisconsin. Mais tarde, como acontece na vida universitária americana, mudei do Wisconsin, onde estive seis anos, para a Califórnia, onde estou.

P. – Foi cidadão português até 1963, tornou-se brasileiro, hoje a sua casa é aqui, nos Estados Unidos. Encontrou aqui o que não teve ou lhe foi negado em Portugal ou no Brasil? Tenciona tornar-se cidadão americano?

R. – Bem… não sei… pode ser. É possível realmente porque uma das razões pelas quais conservei a minha cidadania brasileira, foi não só porque amo o Brasil, mas porque nascido português, os brasileiros não gostam muito disso, e, uma vez que nasci português, os portugueses também não gostam disso. Por isso, e só para irritar os dois, conservo a cidadania. Esta é a principal razão pela qual eu não virei a ser cidadão americano, uma vez que alguns dos meus filhos o são já.

P. – Foi alguma vez impedido de escrever o que queria escrever em algum destes países, ou impedido de publicar o que queria publicar?

R. – Bem… nunca no Brasil durante o tempo que lá vivi, sobretudo entre 59 e 64. Mas mesmo depois, de certo modo, não fui impedido de escrever. Em Portugal foi diferente porque tínhamos aprendido a escrever por entrelinhas. Era uma arte especial que todos os escritores tinham desenvolvido por si próprios e que fez com que muitas coisas não tivessem sido escritas desde então. E foi o que se viu quando a revolução chegou a Portugal em 74. Toda a gente aguardava belas obras primas guardadas na gaveta. E, pode parecer vaidade mas há quem diga que a única pessoa que tinha algo na gaveta era eu, com uma tremenda colecção de contos que tinham sido escritos no Brasil, pensando que jamais os publicaria uma vez que Salazar nunca mais morria. Finalmente morreu, como sabe, porque uma cadeira patriótica colapsou por baixo dele.

P. – Muito bem, uma vez que outras pessoas se sentiram impedidas de escrever por causa da censura etc., mas aqueles que têm grande talento como o Senhor foram capazes de escrever entrelinhas, como diz, foi então a censura uma espécie de ajuda para os escritores?

R. – Não, não acho. A sorte que tivemos foi que por muito tempo desde o começo do golpe de estado que pôs Salazar praticamente no poder, a censura esteve nas mãos de oficiais militares, muitos deles de cavalaria, o que foi grande vantagem porque eles tinham dois pés e os cavalos têm quatro. Ora este facto ajudou-nos imenso durante muitos anos uma vez que eles não podiam entender a maioria das coisas que tínhamos aprendido a escrever para benefício deles. Claro, isto não evitou que eles cortassem coisas. Eu tive muitas e muitas vezes artigos inteiramente cortados ou, em dois dos meus contos, tive de cortar dois pedaços agora restaurados nas novas edições desses livros.

P. – O Senhor é na verdade um homem da Renascença, interessado em tudo, especialmente em coisas de criatividade e erudição. Foi reconhecido e bem sucedido em diversos géneros de escrita. Mas, por que escreve poesia? O que o leva a escrever poesia?

R. – Ora bem, deixe-me dizer-lhe, poesia foi o que em primeiro lugar comecei por escrever. E por alguns anos apenas escrevi poesia. E o meu primeiro poema foi publicado em 1938 – há quarenta anos exactos. E sempre achei que poesia é a minha principal criação, mesmo quando estou fazendo coisas inteiramente diferentes de poesia. Penso que o sentimento poético está sempre por detrás de tudo o que escrevo. Por isso considero-me realmente um poeta, mesmo quando escrevo estudos eruditos.

P. – Sente-se motivado por algo de fora ou algo vindo de dentro?

R. – Penso que posso sentir-me motivado… é uma espécie de dialéctica sempre entre dentro e fora. E nunca sei como é que as coisas me vêm. Olhe, quando eu era ainda jovem, pelo fim dos anos trinta e começos dos anos quarenta, treinei-me sozinho em algumas técnicas surrealistas. Mas comecei a assustar-me porque descobri que não era graça nenhuma – era até muito perigoso e que deveria afastar-me ainda que mantivesse o contacto com alguns dos poderes de liberdade que as técnicas surrealistas nos podem dar. Mas ao fazê-lo e tendo começado desta maneira, isto me ensinou uma muito curiosa lição que ainda recordo: quando sinto que estou para escrever um poema recuso-me a saber ou pensar sobre o que o poema vai ser, porque quero que o poema seja inteiramente livre de se desenvolver… de dentro e por si próprio sem que eu me intrometa. Acontece que muitas vezes estou esperando uma coisa que não sei o que é e que finalmente vem. Mas é muito curioso que quer com poesia quer com outra qualquer espécie de trabalho em que deixo o meu subconsciente construir ou quando estudo alguma coisa e tenho de tomar notas e elas se organizam por elas mesmas na minha cabeça, sempre quando escrevo escrevo, e raras vezes tenho paciência para copiar seja o que for de novo ou fazer mais do que uma correcção aqui ou ali. É assim que eu escrevo. Penso que escrevemos para o futuro, evidentemente, mas escrevemos para o nosso tempo. E o que escrevemos tem de ser o momento que escrevemos.

P. – Deixe-me fazer-lhe uma última pergunta. O Senhor escreveu sobre os mais variados temas, alguns de política, alguns acerca do amor, alguns sobre cultura e música. Qual destas coisas diria que melhor caracteriza a sua poesia?

R. – Bem, penso que todas elas. Até mesmo a veia satírica que vai de par com a maneira irónica com muitos poemas deste tipo. Quanto a cultura ou seja o que for, sempre fui contra a ideia de que um poeta para ser importante deve ser estúpido ou analfabeto. Eu considero que se eles não são estúpidos ou analfabetos (o que muitos deles são) temos de aceitar que como parte do ser, do viver, da experiência e contacto com os seres humanos, o que é essencial para mim, tudo quanto é humano me interessa. Eu diria – mesmo que isto choque algumas pessoas -, a natureza interessa-me se os seres humanos ou marcas humanas estão nela. De outro modo, não estou interessado nada na natureza.
Notas:

Na realidade J. de S. começou a registar (o que não quer dizer fazer ou escrever, evidentemente) escrita em prosa quase simultaneamente à poesia, já que a primeira poesia tem a data de 11/6/36 e a primeira prosa é de Agosto desse mesmo ano. Quanto à primeira publicação de poesia, este foi um persistente engano de J. de S., visto que a primeira vez que se publicou foi em Movimento, em 1939, com “Nevoeiro” (v. nota deste poema em Quarenta Anos de Servidão). – Mécia de Sena.