É frequente encontrar-se a expressão “espírito polêmico” associada à personalidade de Jorge de Sena. No entanto, não se conhece polêmica que ele efetivamente tenha alimentado. O que poderíamos chamar de uma “quase-polêmica” surge nos textos abaixo transcritos, estampados no Jornal do Fundão em 14 de novembro, 12 e 19 de dezembro de 1971, gentilmente enviados por nosso amigo e colaborador João Tiago Pedroso de Lima.
Tudo começa com o longo artigo do escritor e advogado Fernando Luso Soares (1924-2004) a deslouvar com veemência o poema “Paráfrase de Melina Mercouri”, pouco antes publicado noutro jornal, e datado de 24/9/1971, cujos 6 versos transcreve na íntegra. Ressalte-se que Sena apenas responde brevemente ao signatário, sobejamente conhecido pela “reflexão sobre o materialismo dialético aplicado à estética”, pela “vinculação ideológica como categoria inerente a toda a renovação e opção
artística” e pela defesa, na esfera jurídica, de réus perseguidos pela PIDE.
No dia 19/12/1971, sob o título de “Jorge de Sena ao ataque”, o Diário de Lisboa reproduz o substancial da resposta de Jorge de Sena (de “É uma total mentira…” até “…já dissera certeiramente o resto”), precedida da seguinte apresentação: “Transcrevemos, com a devida vénia, parte da carta enviada ao Jornal do Fundão (de 12 do corrente), por Jorge de Sena, em resposta a uma crítica de Fernando Luso Soares publicada naquele jornal e que versava um poema basto rebarbativo feito publicar no Diário de Notícias pelo conhecido poeta, ensaísta e professor.” Ao final, apenas este comentário, sem qualquer assinatura: “Assobiamos pelo facto de Jorge de Sena ter como seu documento de identidade um passaporte brasileiro”.
Hoje integrando a coletânea Quarenta Anos de Servidão, o poema vem acompanhado de uma nota cujo teor não seria do conhecimento do articulista: “Explosão provocada por o governo grego ter retirado a nacionalidade a essa atriz que ele muito estimava e alusão à frase-reacção dela. Em carta de 30/9/71 a Luís Amaro o Autor dizia: Não será um elegante epigrama, mas é muito verdadeiro, qualidade de louvar em epigramas, segundo as melhores poéticas“. Nessa mesma carta dizia pertencer o poema a Dedicácias — livro editado postumamente, que reúne poesia seniana “de escárnio e maldizer”.
Não se sabe se logo chegou ao conhecimento de Luso Soares o poema escrito um mês depois de “encerrado o assunto” nas páginas do jornal beirão… Trata-se do sirventês “Nota a uma paráfrase”, datada de 20/1/1972, que, decerto, faz com que seja de Jorge de Sena a última palavra sobre o caso.
Esclareça-se: uma coisa é literatura
comprometida ou não, e uma outra coisa
é literocambada, ou seja uma pandilha
ou várias assaltando à naifa e gritos
de a bolsa ou a vida. Inútil é fingirem
que são das letras ou qualquer política:
vieram para elas, baba da afluência,
por não haver já viela onde as facadas rendam.
UM POEMA DE JORGE DE SENA [1]
(para esquecer)
A página literária do «Diário de Notícias» da última quinta-feira (dia 4 p.p.) publicou três «Poemas de Viagem», de Jorge de Sena, entre eles um que se intitula “Paráfrase de Melina Mercouri”, e que diz assim:
Nasci português e morrerei português
ainda que mude de nacionalidade vinte vezes.
A líterocambada lusitana
nasceu portuguêsmente pulha
e portuguêsmente pulha há-de morrer
seja qual fôr o ismo a que pertença.
Trata-se evidentemente de um «poema circunstâncial», no sentido que a esta expressão empresta Jorge de Sena em «Isto não é um prefácio» (de Peregrinatio ad loca infecta) integrado — como aliás resulta da aludida página literária — na futura continuação do seu diário poético. Tais poemas assim o afirmou expressamente Jorge de Sena naquele prefácio-não-prefácio, nascem «suscitados por e contra acontecimentos notórios, ou no terem tomado alguns escritores como pretexto de existirem». Ora resulta por demais evidente que aquela «paráfrase» foi provocada por qualquer facto, por um evento capaz, em termos impróprios do timbre comum e habitual da poesia do autor de Coroa de Terra, de ter sublevado tão agressivamente aquele seu ânimo olímpico a que nos habituou. Não se encontra, neste poema agora posto em causa, a fria finura cerebral que uma vez lhe detectou Hernâni Cidade. E ocorre perguntar se a verdadeira poesia deve descer à representação ofensiva de um pensamento, seja ele qual for. Porque é na verdade pena vermos o autor desse magnífico exemplo de patética ironia, como é o caso de O Indesejado, poética aventura de D. António, prior do Crato, descer a um tipo de prosaísmo o mais dogmático (até pela sua generalização) e o menos poético (até pela sua agressividade), não menos dogmático aliás do que todos os dogmatismos que sempre, tanto e tão acertadamente Jorge de Sena viera a impugnar. Para um poeta, dramaturgo e ficcionista de uma ironia com tão alta craveira, como é da sua constante experiência, esta “Paráfrase de Melina Mercouri” é na verdade um acidente (ou incidente). Para esquecer, já que até traduz, por excepção em Jorge de Sena, aquela incapacidade de ironia que, na esfera mental superior, caracterizava o sindroma provinciano de que nos falou Fernando Pessoa. Contra o seu hábito de um alto nível de linguagem, de inquietação filosófica, de reflexão íntima, tudo numa simbiose tensa para o seu constante «combate pela consciência livre» — esse combate a que António Ramos Rosa tão lucidamente aludiu um dia [2] —ao ler esta «paráfrase» (lamentável) não podemos deixar de lhe sentir um terrível contraste, por exemplo, com aquele seu belíssimo poema, intitulado «Crisma»[3], onde o poeta ainda se não deixara arrastar pelo ódio: «…venham árvores e árvores sem que o ódio cante…»
Não creio que o «eu» prepotente, irritante pela sobranceria, pelo orgulho e pela causticidade, sejam só a mera aparência que pretendeu Eduardo Lourenço em “Jorge de Sena e o Demoníaco”[4]. O facto de viver à distância geográfica de nós despontou-lhe em grande esses defeitos, certamente de raiz. É ver como no seu ensaio sobre “Sistemas e Correntes Críticas” — escrito em Madison, 1966, e publicado nos nos 38-39 de «O Tempo e o Modo» (de outro tempo e de outro modo)[5] — ele dizia que «se não entende, e muitas vezes com razão, por que são estimados e considerados tão grandes alguns escritores cuja celebridade é intraduzível para fora de uma linha que vai de Melgaço a Vila Real de Santo António, passando pelo Chiado e o Bairro Alto».
Viver lá fora, especialmente sendo catedrático (mesmo em Madison, Wisconsin, U. S. A.) causa às vezes destas enfermagens, desvios de um cosmopolitismo autêntico. Lá que a sua Peregrinatio faça parte da mania portuguesa de viajar e de relatar as demandas feitas nos espaços e nos costumes, isso não está mal! O que não está certo é o seu sorrir (que é pior do que rir) daqueles que segundo ele não são suficientemente universalizados e viajados.
Não há dúvida que nos remonta, ao tempo (triunfante) da contra-reforma, a irresistível tendência dos nossos ancestros se haverem ensimesmados, recusando na base as solicitações de fora. O estrangeiro passou a parecer-nos então o Diabo, e a cultura para lá da Península desenhou-se-nos à vista como o caminho do Inferno. E, certamente a partir disto mesmo, nós teríamos passado a venerar, com o mais desvelado respeito, aqueles que se fazem às partidas do Mundo e andam por lá a beber do fino-cultural. À admiração provincianoide dos grandes centros lá de fora, e das grandes personalidades estrangeiras (corolário de um desdenho risadinho do que nos mexe portas a dentro do ventre lusitano) o português até o mais do que médio na consciência de ser — venera o que está longe ou o que lhe vem à distância. É melhor o treinador que vem futebolizar da Inglaterra, da Hungria ou do Brasil; está melhor apetrechado o técnico que, evidentemente, estagiou na Suiça; é muito mais génio, enfim, o escritor que vive em Paris, em Londres, ou em Madison, e que já um dia teve a dita de ver (como Jorge de Sena viu) as lágrimas de uma Edith Sitwell [6] quando um crítico lhe comemorou as décadas com um artigo sobre Graves [7] (efemérides que os escritores que por cá ficam no Chiado e nas redacções do Bairro Alto não podem, òbviamente, partilhar para a sua grandeza). É, como se vê, uma coisa quase teológica: os deuses também não seriam tão adorados se o poeta os não tivesse colocado no Olimpo!
Mas a que propósito vêm estas minhas últimas palavras?… Naturalmente, do seguinte: que, indo nós falar de «ismos» e «partidarismos» — como tema mesmo assim aproveitável em função da “Paráfrase de Melina Mercouri”— e tendo eu a mais sincera admiração pela obra literária de Jorge de Sena, não quero incorrer naquela que considero a pior forma do sectarismo, ou seja, a circun-navegação em torno de um patrono, de um ser intocável, de um tabu. Eis-nos com um espírito brilhante, decerto, mas de uma arrogância perfeitamente intolerável, aquele singular misto de inteligência (cativante, sem dúvida) e de sobranceria (irritante, sem menor dúvida) que uma noite, quando ele perorava nas Belas Artes me fez ganhar a rua em poucos minutos. Nunca tinha ouvido Jorge de Sena, e por isso lá fui. Porém, fugi ao sentir-me incomodado: tive a impressão de que, esperando ir ouvir simplesmente um pregador de cultura, me tinha saído na rifa o próprio deus da mesma. Falemos, entretanto e antes, da ideia que está no centro deste poema o qual, paradoxalmente, considerando-o para esquecer, me está no entanto a provocar este texto.
No pseudo-irónico, despoèticamente agressivo e, por tudo isso, bem lamentável poema, referem-se dois tipos de «nascimento», o primeiro dos quais é certamente um privilégio quase divino, e o segundo um demérito irremediável. Explicando melhor, direi: enquanto Jorge de Sena diz que nasceu com o dom de ficar, mesmo mudando juridicamente de nacionalidade umas vinte vezes, tão português como João das Regras ou Luís Vaz de Camões, a por ele deselegantemente dita «lítero-cambada lusitana» nasce portuguêsmente pulha e portuguêsmente pulha há-de morrer seja qual for o «ismo» a que pertença.
Além do mais, neste caso até mesmo pela sua perigosa ambiguidade, a “Paráfrase de Melina Mercouri” é um Poema pouco corajoso. Já agora teria sido melhor atirar a um alvo mais concreto, não se enfie a carapuça nalguma cabeça enganada. Quais os «ismos» que não remedeiam? Todos?!… Então quais os da cambada irremediável?… Ou Jorge de Sena haverá sentido em si o receio de particularizar ou concretizar demais? E eu (que nada tenho a ver com o problema, excepto a revolta que senti ao ler tal «paráfrase», experimentando uma veemente necessidade de apostrofar este triste desvio, marcado pelo ódio, e arrepiado de uma obra com alta dignidade) — eu, repito, só venho a capítulo para aproveitar, de cartas na mesa, a oportunidade de uma reflexão que me parece útil.
Normalmente, os escritores não constituem uma cambada. Nem é bonito que um escritor chame isso a outros. Poderá ser que os considere medíocres ou talentosos, e então até é justo que o diga (tanto mais sendo crítico). Cambada, e em forma de poema, isso não!… Porque, nesta emergência, fica patentemente claro que há um ódiozinho, um despeitozinho, ou um ciumezinho subjacente — e Jorge de Sena tem categoria literária de sobra para suportar quaisquer subjacências, mesmo na sua cave moral.
Na hipótese da “Paráfrase de Melina Mercouri” constituir, em última análise, um poema contra os «ismos», então — além de mau — ele falha redondamente. Todavia, antes de irmos adiante, e interrogando-me sobre quais os «ismos» em que Jorge de Sena pensava como não-redentores da lítero-cambada, no momento de fazer o seu poema, parece que não acomete nem contra o «ismo» supra-realismo, ao qual ficou umbilicalmente ligado desde os «Cadernos de Poesia», nem contra todos os outros «ismos» decorrentes do personalismo, nos quais se cascatam as torrentes poéticas que provêm do romantismo, em negação cada vez maior de todas as pressões exercidas por valores que não sejam os resultantes de um «eu» libérrimo. O título completo da «paráfrase» posta em causa indica, muito presumivelmente, o «ismo» que Jorge de Sena sorrateiramente pretende atingir. Com isso ele serve, afinal, a teoria burguesa da literatura, que considera tendenciosa toda a atitude literária cujo fundamento e fim de classe se mostra hostil à direcção social dominante. Sem dúvida, aceito que o crítico nunca deve impôr a sua formação ideológica, nem deve ser directamente um tribuno de juízos políticos. É exacto o que diz Jorge de Sena no seu ensaio “Sobre o Realismo de Shakespeare”[8]: «…quando determinados críticos (que fazem da sua crítica literária tribuna de juízos políticos) acusam alguém de estar «desvinculado da realidade», o que apenas importa é saber se a pessoa em questão não estará só desvinculada de uma obediência partidária que não é a sua».
Esta passagem, vinda de ser transcrita, faz até lembrar o poema de Herwegh [9], dedicado a Freiligrath [10], que reza assim:
Uma espada em vossa mão seja a poesia.
Escolhe um partido, e estarei satisfeito,
ainda que seja outro diferente do meu.
O curioso é que Jorge de Sena tem o partidarismo extremo de ser uma pessoa apartidária. Esse é, aliás, um fenómeno fatal para todos os que têm pretendido o mesmo «anti-ismo» em geral. A própria teoria da «impassibilidade», de Flaubert, que provém da teoria kantiana do desinteresse, o romancista francês a contraditou na sua obra. Veja-se, em exemplo, a forma de ironia com que se lhe representa nos textos o mundo burguês. Porque a desvinculação absoluta é uma pose-falsa que só serve para enganar os beócios. O próprio Sena reconhece, no referido ensaio “Sobre o Realismo de Shakespeare”, que «a realidade depende, sem dúvida, da visão filosófica que tenhamos dela». Com efeito, os mais altos expoentes da arte, desde Dante a Camões, de Shakespeare a Brecht, de Miguel Angelo a Picasso, não teriam sido possíveis se se excluísse do trabalho artístico a conceitualidade. Na arte, é imprescindível não esquecer isto, as concepções do mundo (universais, gerais por estrutura) aparecerão sempre superadas pela categoria da particularidade; porém, tal não significa que esta não constitua, precisamente, uma tomada de posição. Se o conceito e a ideologia não são directamente o objecto do trabalho artístico, constituem no entanto o factor direccional de uma vida consciente, em situações concretas de homens concretos. Pois poderia um poeta, vivendo no respectivo tempo, ser apartidário na polémica geocentrismo-hélio- centrismo, perante as então novas concepções de Copérnico? Ou de Darwin, sobre a querela criação-evolução? E poderá sê-lo diante da ruptura que representa Marx e a sua filosofia de transformação (isto é, não meramente interpretativa)? Pois coisa curiosa: falando precisamente da atitude artística que conduz à composição poética dos idílios, demonstrou Schiller que o simples fato de se escolher esta matéria já implica uma tomada de posição crítica em face do real, e assim o idílio (como forma) contém em si mesmo um partidarismo.
Um «ismo» é sempre, portanto, uma tomada de posição, que não pode deixar de existir mesmo na arte. A arte não representa nenhum facto ou relação fora do seu partidarismo, e este manifesta-se na representação de cada detalhe, pois de outro modo não existirá o próprio facto artístico. Conceber a realidade (que a arte reproduz) como sendo um mero fragmento desvinculado, mais ou menos casual, espontâneo no sentido de gratuito, vale o rebaixar a zero o carácter dialéctico do reflexo respectivo, valendo esse zero o nível de uma simiesca imitação. «É inevitável a tomada de posição na obra de arte», escreveu Lukács na sua Introdução a uma Estética Marxista: a frase de Lucano, «victrix causa diis placuit, sed victa Catoni»[11] traduz a atmosfera, a posição de muitas importantes obras no interior das contradições antagónicas das sociedades de classe, mas isto não exclue, até antes confirma, a teoria de que o partidarismo das obras de arte é sempre inevitável.
Terei descarrilado, sem propósito, de tema-objecto do poema de Jorge de Sena que me moveu a estas linhas? Concordo com a ideia do ensaísta de “Sistema e Correntes Críticas”, de que «só escrevem segundo uma ‘ortodoxia’ estreita, aqueles que são incapazes de pensar e de viver por si mesmos aquilo mesmo a que aderiram». Mas será que a «cambada literária» se constitui só por um complexo de escritores de determinado «ismo» ortodoxamente sustentado — ou será antes que esta coisa do «seja qual for o ismo a que pertença» não passa de um disfarce (que portanto estivemos aqui a falar para o vento), e que a cambada é alguém que desagradou, ou alguns que desagradaram, ao tom de Magnífico Reitor de letras que o catedrático lá de Madison não gosta que lhe venham conspurcar?
FERNANDO LUSO SOARES
JORGE DE SENA
(catedrático da Universidade da Califórnia e não da de Wisconsin)
responde a uma Crítica de F. Luso Soares [12]
Do poeta, ensaísta e professor Jorge de Sena recebemos a carta que segue:
Ex.mo Senhor
Acaba de chegar-me às mãos um recorte do artigo a meu respeito, impresso no jornal de V. Excia em 14 do corrente mês, e assinado pelo Snr. Fernando Luso Soares. Ao abrigo da legislação em vigor, solicito de V. Excia a publicação das seguintes linhas:
Desde 1 de Julho de 1969 que não sou catedrático da Universidade de Wisconsin, em Madison, Wisconsin, mas, ao contrário do que os seus leitores são erradamente informados, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, Califórnia.
Quanto ao facto de saber-se se o autor do artigo «descarrilou» ou não, conforme ele mesmo se pergunta, a resposta cabe aos leitores que não se alimentem de jogos de porta de falsa esquerda. É uma total mentira que eu não tenha tido sempre uma posição política definida, pela qual durante mais de vinte anos joguei a minha segurança e a dos meus — apenas ela (republicana e socialista) nunca se pautou pela obediência aos ditames de quaisquer partidos ou agrupamentos, a que nunca pertenci nem pertenço, mas com os quais nunca recuei de colaborar por vezes em circunstâncias bem graves. Há mais de trinta anos, todavia, que é parte do jogo de descrédito contra intelectuais independentes o apresentá-los como «a-politicos», como «anti-ismos» (em literatura de favores literários, sim, que o sou), enquanto outros que notòriamente jamais arriscaram coisa alguma passam por sacrificados heróis. Tudo isto e mais, porém, faz parte da. História a ser escrita um dia, e em que me não consta, pelo conhecimento directo que tive dela, que a maior parte desses senhores tenha sido dramaturgo, encenador, actor ou figurante de peças que não chegaram a subir à cena. Se desde 1965 não tenho tido qualquer participação na política portuguesa, é porque a tal me não dá direito o passaporte brasileiro que é meu documento de identidade — mas o português que sempre fui hei-de continuar a sê-lo, quer queiram, quer não queiram. E mais não é necessário esclarecer, porque o meu poema em causa — como se viu — já dissera certeiramente o resto.
Passe V. Excia. muito bem, mais as vestais que se abrigaram nas suas páginas, e queira aceitar os melhores cumprimentos do
JORGE DE SENA
N. da R. – Se nos conhecesse melhor, Jorge de Sena dispensaria a invocação da lei. Como habitualmente fazemos, a sua carta sai no mesmo lugar e no mesmo tipo de crítica em causa. Quanto à resposta, Luso Soares, se quiser, que lha dê.
EM FIM DE CENA…[13]
Do nosso colaborador Fernando Luso Soares recebemos um cartão cujo conteúdo a seguir se publica:
Soube do meu lapso, o da transferência (em 69) do Senhor Professor Doutor Engenheiro Catedrático (americano) Jorge de Sena, de Wisconsin para Santa Bárbara, Califórnia. Peço a V. Ex.a que por este meio — ainda que tardio — felicite aquele Mestre pelo facto notável. E já agora, mercê da quadra festiva do momento, mais agradeço que também lhe transmita os meus desejos de boas festas.
Quanto àquilo que eu dizia no meu artigo, o Senhor Professor Doutor Engenheiro Catedrático (americano) Jorge de Sena evidentemente não desceu (do 3.o piso do Olimpo — o dos pavões — que o 1.o é o de Zeus e o 2.° o dos deuses de segunda) a comentar, e eu próprio acho bem. Sua Excelência não desce, e eu (pobre de mim) não subo, que me falta o fôlego. Sena é hidrogràficamente um rio de ciência e de letras. Luso não passa de uma fontícula de termas portuguesas.
Referencias
1. Jornal do Fundão, 14.nov.1971, p. 1, 3, 13
2. “A poesia de Jorge de Sena ou o combate pela consciência livre”. In: A.R. Rosa, Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Moraes, 1962. p. 97-109
3. Do livro Coroa da Terra
4. Originalmente publicado na revista O Tempo e o Modo (Lisboa, abr. 1968, nº59, p. 324-31), encontra-se reproduzido em E. Lisboa, org. Estudos sobre Jorge de Sena (Lisboa, IN-CM, 1984, p. 49-590 e E.Lourenço, O Canto do Signo: Existência e Literatura (Lisboa, Presença, 1994, p. 172-79).
5. Reproduzido em J. Sena, Dialécticas Teóricas da Literatura. Lisboa, Ed. 70, 1977, p. 109-67
6. Escritora britânica (1887-1964) que Jorge de Sena visitou em Londres, com a qual se correspondeu e sobre cuja obra escreveu.
7. Robert Graves, escritor britânico (1895-1985)
8. Datado de “Araraquara, julho de 1964”, foi originalmente publicado na revista O Tempo e o Modo nº 19 (set. 1964, p. 6-26) e encontra-se reproduzido no livro J. Sena, Maquiavel, Marx e Outros Estudos (Lisboa, Cotovia, 1991, p. 71-100)
9. Georg Friedrich Rudolph Theodor Herwegh, poeta alemão (1817-1875)
10. Ferdinand Freiligrath, poeta alemão fortemente engajado em lutas políticas (1810-1876).
11. A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida a Catão. (Lucano, em Farsália, I, 128). Alusão à fidelidade de Catão a Pompeu, quando este foi derrotado por César. Emprega-se para expressar apoio a uma causa, embora vencida.
12. Jornal do Fundão, 12.dez.1971, p. 13
13. Jornal do Fundão, 19.dez.1971, p. 1