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Ilha de Moçambique, Jorge e Mécia de Sena com Rui Knopfli. Ao fundo, a Capela de Na. Sra. do Baluarte.

Angola e Moçambique

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Das quatro “Crônicas de viagem” publicadas no Diário Popular, entre 4 e 20 de agosto de 1972, transcrevemos a última — não só por resumir as “andanças africanas” de Sena numa data tão camoniana; como ainda pelas achegas que nos dá aos poemas que aí escreveu, como ainda pela sua veemente conclusão, em nítido diálogo com a conhecidíssima frase pessoana “minha pátria é a língua portuguesa”.

 
Estive por Angola há trinta e quatro anos, nos meus tempos de rapaz e marinheiro. Em Moçambique não estivera nunca. A minha visita a este oriente das Áfricas durou cerca de um mês; e em três dias foi que revi Luanda, ou antes procurei pela cidade baixa o que lembrava dela, além de revisitar os monumentos – as igrejas e os fortes – que continuam ainda no mesmo sítio onde estavam, apenas mais pintados de fresco do que os lembrava ou mais restaurados da ruína em que se desfaziam. Entre Angola e Moçambique passei, na viagem de ida, horas e horas encalhado no aeroporto de Joanesburgo (por falta do “visto” que me haviam dito não ser necessário para sair-se dele, estando em trânsito), cidade que visitei, à volta, em dia e meio. Não se conhecem nem se julgam assim países, ainda quando a gente tenha anteriormente lido muito sobre eles, e neles depois converse com pessoas que longamente os tenham vivido e meditado.

É certo que as Áfricas já eram e continuaram a ser uma presença viva na minha família, quando eu nasci – desde que, há cerca de um século, minha avó materna, Isabel dos Anjos Alves Rodrigues Teles Grilo, a “Senhora Grande” para os indígenas do Sul de Angola, a esta aportou para lá viver décadas de orgulhosa “Professora Régia”, que o rei D. Carlos nomeara e a República reconduziu em pitorescas circunstâncias.

Desde a Madeira a Moçambique se espalha, como na metrópole, a sua numerosa descendência que ela, mais tarde aposentada em Lisboa onde morreu tão de pé como sempre vivera, continuou a chefiar com mão de ferro, contas correntes a partidas dobradas, e altissonantes cartas pastorais e encíclicas a que a dúzia de filhos, as dezenas de netos, e o inefável belo homem de barbas que o meu avô foi, todos se curvavam num calafriado terror que era também respeito perante um ardente coração. Alguém que pisasse o risco em dois continentes, ou fizesse o que ela considerasse menos digno – e lá seguia, por cópia, para todos, a carta de excomunhão, que isolava o pária, castigadoramente do convívio da tribo matrilinear. E quem não cumprisse o édito, levava outra. Não poderei esquecer nunca essa mulher espantosa que foi, na sua esclarecida velhice, a primeira pessoa a compreender e animar a minha poesia modernista. Guardo, no meu primeiro livro de poemas, há trinta anos publicado, o exemplar que foi o dela.

Eu mesmo, na verdade, vim a nascer destas Áfricas – sem elas, minha mãe, voltando dos metropolitanos estudos para Angola, menina e moça e ruiva, não teria conhecido a paixão romântica e brutal do capitão de navios, jovem e de bigodes retorcidos, que foi o meu pai. E por estas navegações que duraram a minha infância e adolescência (e evoquei num conto, “Homenagem ao Papagaio Verde”, publicado em “O Tempo e o Modo”), a África continuou presente na minha formação, par a par com as memórias e as idas e vindas de uma família inteira, extremamente tribal até nas suas rivalidades e intrigas. De modo que as Áfricas me não são, somado tudo, menos estranhas do que a muita gente, e certamente do que aos “reinóis” (como o Brasil dizia) que lá vão sacudir, altos funcionários, comerciantes de aventura, ou as duas coisas, a árvore das patacas.
Posto isto, que dizer em resumo do que vi e ouvi agora? Antes de mais, os arrepios que a África do Sul me deu, e se distinguem do quanto possa, em Angola e Moçambique, angustiar a gente. Com paternalismo ou sem ele, aquele “apartheid” grotesco não é comigo: e não serão a hospitalidade de sul-africanos gentis e cultos, ou o esplendor moderno de Joanesburgo, o que me fará esquecê-lo. Como foi possível que um povo com o passado cosmopolita da Flandres e da Holanda inventasse aquilo, tomando dos ingleses o pior deles, e o justifique com a Bíblia, que não há dúvida poder servir para tudo, eis o que ultrapassa não só o sentimento humano mas mesmo o senso comum aos homens e aos animais. Tudo o que pode desejar-se – e deve impedir-se, por todos os meios – é que uma imagem, mesmo pálida, de tal monstruosidade, tente repetir-se em Angola ou em Moçambique, em quaisquer circunstâncias. Ou que as lições, senão da humanidade, ao menos do comércio internacional (que na África do Sul, faz que os japoneses sejam legalmente “brancos”, como os chineses ainda não…), desfaçam aquela mitologia trágica, antes que seja tarde para toda gente.

Depois, cumpre dizer e acentuar que Angola e Moçambique são radicalmente diferentes. Não só se formaram em colonizações diversas e com diverso passado histórico, como o actual resultado foi duas sociedades de complexidade inteiramente divergente. Em Angola há brancos, mulatos e pretos, educados ou deseducados na tradição católica, ou inseridos nas tradições gentílicas do seu passado negro. Em Moçambique, uma variedade de raças e de religiões, uma mistura de Ocidente e de Oriente, em que os mulatos não chegam a constituir grupo social, formaram uma vasta complicação em que as áreas negras, ètnicamente regionais, se variam das camadas culturais que a História pousou sobre elas.

Paradoxalmente, poderia afirmar-se que Moçambique, cujo papel histórico ocidental se define logo no princípio do século XVI, na ilha do mesmo nome mas cuja colonização efectiva não tem muito mais de um século, será, nas suas contradições, talvez mais estável do que Angola que, entrada para a História quase um século depois (independentemente das descobertas do século XV), teve mais cedo e mais amplamente colónias de fixação, e conheceu, recentemente, uma expansão económico-demográfica de atracção europeia, muito maior que a de Moçambique. É talvez isto o que dá a Lourenço Marques (onde velhos monumentos são realmente inexistentes, dado que a cidade não é muito antiga) um ar de grande capital aristocrática e cosmopolita e a Luanda, hoje muito maior, a atmosfera curiosíssima de uma gigantesca cidade aventureira, aonde a maioria da gente parece ter chegado ontem para enriquecer depressa, na tradição dos Brasis além defronte, do outro lado do Atlântico. E isto, à face dos fortes e das igrejas do século XVII (quão belas a da Sra. da Nazaré e a dos jesuítas – e nesta última vi uma negra velha, sentada no chão, em animada conversa particular com o Cristo crucificado), e nas barbas consideradas respeitáveis do Paulo Dias de Novais, do André Vidal de Negreiros e do Salvador Correia de Sá e Benevides, que por ali andaram à ordem dos interesses brasílicos (deles mesmos ou da Coroa portuguesa), e já me inspiraram poemas publicados ou inéditos.

Não quero que me entendam mal. O direito à promoção social e à riqueza, considero-o inalienável e merece-me o maior respeito. E, sejamos francos, nunca grande parte dos portugueses, em séculos de História, nobres ou plebeus, saiu da sua mesquinharia lusitana para ser herói ou santo, que alguns foram, mas para encher a burra, se possível honestamente. E os outros povos que atirem a primeira pedra, porque nunca foram melhores. O que eu quero dizer é que se sente em Luanda um frenesi de crescimento – sùbitamente suspenso pelo problema das transferências que é, aliás, mais agudo ainda em Moçambique –, o qual se existe também na costa oriental, não é análogo por não ser lá um fenómeno de massas populares e da pequena burguesia metropolitana, acorridas à cavação do Eldorado. Mas há muitas maneiras de os grandes países se fazerem, como se diz que as há de matar pulgas. Tudo está em não confundir os seres humanos, cujos direitos devem ser resguardados ou promovidos em perfeita igualdade, com aqueles desagradáveis animais. Quanto digo é, porém, um misto de informação e impressionismo; e não pretende ser um daqueles juízos ponderosamente definitivos que aliás, na situação actual, tão extremamente fluida, prudente será que ninguém faça.
Em Moçambique, estive em Lourenço Marques e arredores, na Beira, em Nampula, e na ilha de Moçambique, essa miraculosa fusão de civilizações. Conheci ou revi, ou interroguei, pessoas de todos os grupos e categorias sociais – e até tive a honra de conversar, na Cabaceira Pequena, em frente à ilha, com um negro centenário, mendigo de óculos na ponta do nariz, que vive das memórias de haver conhecido o Mouzinho e o príncipe D. Luís Filipe. Foi, para mim, comoventíssimo encontrar amigos de juventude, que não via há décadas, e que vieram abraçar-me carregados dos seus anos de África. Falei em público quatro vezes em Lourenço Marques, duas na Universidade que considero, se lhe não faltarem o apoio e a autonomia necessários à sua tão especial função num país muito mais complexo do que a metrópole e as suas tradições administrativas são capazes de imaginar, uma esplêndida e promissora aventura africana.

Fiz, além disso, uma conferência na Beira; e fui várias vezes e em vários lugares entrevistado para programas de rádio (a televisão não existe ainda em Moçambique, pelo que me vi poupado às maldições encomendadas por uns cafés lisboetas). A minha última conferência – na Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, entidade que tomara a iniciativa de convidar-me e a minha Mulher para darmos meia volta ao mundo (vão 160 graus de longitude, de Santa Bárbara, na Califórnia, a Lourenço Marques) – e a despedida, na manhã seguinte, no aeroporto, ficarão ambas como instantes inesquecíveis da minha vida. Não me envergonho de dizer que, em lágrimas de emoção (só os cavalos empedernidos da má vida e as vacas sagradas da politicagem literária se envergonham de as chorar, até porque as não têm senão de crocodilo), foi que eu afirmei que partia com Moçambique no coração.

 

Em Angola passei alguns dias de incógnito repouso e calmo turismo solitário por Luanda e um pouco dos arredores, e só no último dia encontrei um agradável convívio e tive oportunidade de, como em Moçambique, trocar as queixas que a portugalhada (ou sejam os filhos de uma cultura madrasta) sempre troca, quando se encontra nas voltas do mundo. As ruas, os velhos monumentos, o museu dito de Angola (notáveis algumas peças antigas ou gentílicas, e excelente a colecção de pintura moderna) preencheram em maior exclusividade o nosso tempo que sempre acabava nos cafés da Arcada, a observar os manejos da juventude ociosa. Claro que apresentei os meus cumprimentos a Paulo Dias de Novais, André Vidal de Negreiros, etc., ou àquele Álvaro de Carvalho Matozo, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, que, no ano de 1787, fundou, numa colina discretamente dominando a beleza de baías e de ilhas ao sul de Luanda, uma capela que a gente desconfia que lhe servia de capa para traficâncias impróprias, senão da Ordem que tinha nisso antecedentes gloriosamente henriquinos qual Zurara descreve com humanística piedade, pelo menos indignas daqueles tempos esclarecidos. Tudo isto próceres felizmente falecidos há séculos. Cumprimentara, antes, na ilha de Moçambique, os meus amigos Camões e Gonzaga, infelizmente defuntos; e, em Lourenço Marques e na Beira, convivi com escritores e críticos que chegam, pela cultura, a informação e a qualidade literárias para meter no saco os carapaus de corrida lisboeta (ou de outras partes mais africanas), esses noveis salvadores da pátria e da cultura católica e anticatólica em doce conúbio, que não tardaremos a ver, aquietados e felizes, nas administrações de bancos e companhias, pela mesma razão que faz o sr. Nixon e o sr. Chu-En-Lai abraçarem-se alegremente em cima das sepulturas, ou nem isso, de tantos milhões.

Conhecer pessoalmente em Moçambique José Craveirinha, Rui Knopfli, Eugénio Lisboa, Rui Nougar, Glória de Santana, Sebastião Alba, o pintor António Quadros, que é também o poeta João Grabato Dias, uma das mais notáveis revelações dos últimos anos, e tantos outros que não nomeio por menos estima e consideração, é coisa que não acontece todos os dias, na língua portuguesa. Mas estou em crer que, com umas semanas de Angola me teria acontecido algo de semelhante – da mesma forma que trinta e cinco anos não apagaram da minha memória afectiva as ilhas de Cabo Verde, de cuja autónoma literatura fui dos primeiros a falar em Portugal, há trinta anos.

 

Não quero encerrar estas breves notas sem acrescentar-lhes mais duas. A minha estada em Moçambique foi, de certa altura em diante, marcada por um desgosto profundo, daqueles que ficam connosco para sempre: a súbita notícia (ainda que esperada a qualquer momento) do falecimento em São Paulo, Brasil, de um dos meus maiores e mais velhos amigos (de exactamente trinta e três anos), essa grande figura de homem e de poeta português que foi Adolfo Casais Monteiro. Tomei já a iniciativa de fazer ressuscitar, eventualmente, os “Cadernos de Poesia”, para homenagear a memória honrada de uma das glórias da cultura portuguesa neste século.

A outra nota é esta: não sei o que o futuro reserva a Portugal e aos territórios africanos, nestas horas cruciais em que a história do mundo é feita na mais sinistra e cínica das irresponsabilidades, à custa da pele de populações inteiras, ou da alma desesperada dos melhores humanos. Mas quero supor que esse futuro não deixará morrer longe das pátrias em que nasceram e cuja cultura ampliaram e honraram, ou cuja história fizeram quando outros a desfaziam, muitos mais dos seus filhos ilustres ou anónimos. A diáspora lusitana já deixa na sombra a do povo judaico, de que tanto sangue nos corre nas veias de vagamundos. Daquele número me excluo: primeiro, porque não sou ilustre nem anónimo; e, segundo, porque, como o grande poeta latino, prefiro pensar que “non possidebis ossa mea” que o mesmo é dizer: não roereis os meus ossos, depois de tanto me haverdes esfolado para várias obras literárias e não literárias. A minha pátria são a literatura portuguesa e as culturas de língua portuguesa, seja onde e como forem. Quanto ao mais, eu não me quero dessa aldeia entalada entre o Terreiro do Paço e o Bairro Alto, enquanto ela persistir em ignorar-se à escala universal e não aprender a rever-se na grandeza do Brasil, de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, etc., como dos milhões de portugueses e descendentes de portugueses de todas as cores que povoam (e repovoam) o largo mundo. E este, eu entendo que ele pertence efectivamente a quem o faz, e não a quem vive nele como um parasita.